Essa Foi Por Pouco

Ao iniciar esta narração preciso estar ciente de que minhas palavras não causarão nenhuma espécie de revolta ou constrangimento em certas pessoas. O leitor que estiver tomando contato pela primeira vez com o texto poderá achá-lo em distonia com a ordem natural das coisas, mas depois de analisá-lo mais detidamente irá se convencer da realidade.

É um assunto sobre o qual não costumo falar com frequência; para falar a verdade, acho que nunca tratei disto antes. Mas depois de haver presenciado a tal cena achei que estaria fazendo um bem social ao prevenir as pessoas sobre o perigo de conviver, mesmo profissionalmente, com alguém sem antes pesquisar suas ações e o seu passado.

Eu estava a poucas horas da minha chegada àquela cidade; não conhecia ninguém com exceção da pessoa a quem estava indo visitar. Ao ler a carta de Aurélia fiquei como que paralisado pelo conteúdo enigmático e ao mesmo tempo assustador. Meu nome era o terceiro de uma lista de sete, quatro homens e três mulheres, condenados a morrer nas próximas quarenta e oito horas caso não seguisse detalhadamente as orientações que Aurélia punha na carta. Viajara quatro horas ininterruptas e me encontrava exausto e faminto quando desembarquei na estação.

A cidade era totalmente desconhecida para mim; sequer ouvira alguma vez a menção de seu nome. Só soube mesmo que existia ao informar-me na rodoviária sobre como chegar até ela. E agora, já em seus domínios, vejo-me como um estranho amedrontado. O ambiente do pequeno bar onde me encontro tomando a minha refeição parece assustador, ou melhor, é totalmente assustador para mim. Cheguei às sete e quinze da noite e, de todos os passageiros que desembarcaram comigo eu fui o único a entrar no bar. Todos sumiram de chofre e eu me vi solitário em frente a um atendente incapaz de mover um único músculo do rosto.

Comi alvoroçado o sanduiche e empurrei para o fundo da minha garganta o café fraco e requentado e procurei sair dali o mais rápido que me foi possível. As ruas não eram asfaltadas. O calor era intenso e ao deixar o conforto do ar condicionado do ônibus e agora tendo que caminhar portando a enorme mochila, comecei a suar profusamente. Ali não chovia há dias; eu percebi isto pela secura incomum do barro que cobria a estrada. À medida que eu caminhava a poeira fétida subia-me pelas pernas; a marcha sobre um terreno íngreme e irregular dificultava-me a respiração.

Não tinha visão de nada; levava bem nítida na memória a descrição de Aurélia; do percurso que deveria fazer até alcançar o local do meu destino. Aos poucos, à medida que eu me afastava do centro, as luzes iam diminuindo e as moradias também. Comecei a me preparar para a escuridão que deveria encontrar pela frente. Abaixei a mochila e retirei de lá a minha lanterna. Foi neste exato momento que me senti arrepiar, perdendo totalmente o autocontrole. Com a cabeça baixa e concentrado na cata da minha lanterna, senti o toque nas costas e a voz horripilante.

- Desculpe se o assustei - disse a voz atrás de mim.

Virei-me e deparei com um tipo esquisito, meio anão, e com uma cabeça desproporcional ao seu corpo raquítico. Mas apesar dos defeitos tinha um sorriso cativante que me fez, a princípio, sentir aliviado do enorme desconforto do susto.

- Pela descrição de madame Belliot é o senhor Augusto Lennox - disse o pequeno sujeito, apresentando-se e estendendo-me a mão grande e calosa. - Queira me acompanhar; ela já o espera.

Seguimos, silenciosos, o restante do percurso. Embora agora recuperado da aparição repentina e ‘protegido’ pelo anão não conseguia livrar-me da sensação de insegurança que me causava aquele lugar fantasmagórico. Passava pouco das oito da noite e, no entanto, não havia um movimento de pessoas, nenhum comércio; nada além de ruas escuras e esburacadas. As casas distanciavam-se cada vez mais umas das outras à medida que caminhávamos e entre elas extensos matagais, charcos isolados ou simplesmente um breu através do qual nada se distinguia. O coaxar de rãs chegava intermitente aos nossos ouvidos; morcegos esvoaçavam entre nossas cabeças.

Para o estranho homem isso parecia normal, mas eu me via espantado a cada passada. Não fosse a escassa luminosidade da minha lanterna talvez não conseguisse dar mais um passo sequer, pois que a escuridão já era total e assustadora. Punha-me a imaginar para onde teriam ido as pessoas que comigo desembarcaram e isso me deixava ainda mais confuso e amedrontado.

De repente, como a surgir das profundezas de uma caverna, um grito horripilante ganhou o ar. Era um grito de mulher. De estridente e possante, foi perdendo intensidade até tornar-se grave e quase imperceptível. Como numa brincadeira ou num filme de monstro aquilo se transformou em uma sonora e incompreensível gargalhada. O medo voltou a me dominar. Tão absorto eu ficara que não havia percebido que meu acompanhante, que ia à frente, havia passado para trás de mim. Então virei-me para pedir-lhe explicações do que estava ocorrendo e, qual não foi minha surpresa: ele havia desaparecido no breu da noite.

Vi-me totalmente desprotegido; não sabia o que fazer e nem em que direção continuar. Senti por instantes, que me pareceram séculos, as pernas presas ao solo e por mais que tentasse movimentá-las mais paralisadas elas ficavam.

-Sr. Lennox! Sr. Lennox! Por que está parado? Continue; siga nesta direção e encontrará nossa casa.

Era a voz de Aurélia. Mas de onde vinha? Não conseguia, por mais que apurasse os meus ouvidos, identificar sua procedência. E o mais assustador: vinha do alto; para mim, de lugar nenhum. Procurei, num ímpeto de coragem, esquecer os pormenores e tomar a direção que me fora indicada. Caminhei alguns passos e vi uma casa, uma única casa de cujo interior provinha uma luz intensa e avermelhada. Esta luz piscava à medida que eu me dirigia para lá. Não tinha mais dúvidas; era o meu destino. A metros da minha chegada surge no portão uma mulher. Reconheci Aurélia por sua forma de caminhar e pelos gestos. Apressei os passos e me vi a seu lado.

- O que está acontecendo? - perguntei ainda ofegante - que lugar é este que escolheu para me encontrar?

Sem dizer palavras, me puxou pelo braço e conduziu-me para o interior da casa. Aurélia estava transformada por algo que, até aquele momento, eu não conseguia identificar. Empurrou-me para a sala iluminada e trancou a porta atrás de si. Olhei ao meu redor e não encontrei sinais de anormalidade no ambiente. Contudo, não poderia ainda afirmar que éramos os únicos ali dentro; havia outros cômodos, todos fechados. O silêncio me era ainda singular e tenebroso. Fui em direção a uma das portas e, antes que minha mão girasse a maçaneta arredondada, um repelão lançou meu corpo para trás impedindo meu gesto.

-Não faça isto! Não abra esta porta; não agora.

-Aurélia! - disse indignado - o que está se passando; onde estão os outros?

-Não importam os outros agora. Você será o próximo; é o número cinco.

Esta frase de Aurélia me fez subir à garganta uma sensação amarga e espasmódica.

- Mas, confie em mim. Farei o que for possível.

- Conseguiu salvar as outras pessoas?

- Não; infelizmente.

- O que está dizendo?

-Espero que não estejam mortos. Não tenho culpa se não seguiram os meus conselhos; faria o que prometi.

- Está então me dizendo que não compareceram ao encontro?

- É isso. Quanto a Cíntia ...

Ao ouvir o nome de minha namorada não controlei a emoção e o desespero.

- Onde está Cíntia; o que houve com Cíntia? Enviei-a para você. Ela veio na minha frente. - Percebi nesse instante o olhar de Aurélia em direção à porta que eu tentara abrir.

- Ouça! - me disse ao perceber minha intenção.

- Cíntia vai ficar bem. Ela está naquele quarto. Mas não poderá vê-la por enquanto; não será bom para você; nem para ela. Está sob o efeito da droga.

- Que droga, Aurélia? O que fez com ela - perguntei, transtornado.

- Ei! Acalme-se! Acaso não confia em mim? Falo da droga que dei para que dormisse a fim de não presenciar ...

- Presenciar o que? O que está dizendo?

-As mortes. Venha. Vou mostrar o que está acontecendo.

Conduziu-me pelo braço a outro cômodo da casa. Ela entrou antes de mim. Chegando ao meio do que parecia ter sido uma enorme sala, pois estava vazia de mobília, com alguns livros velhos empilhados em um dos cantos, duas cadeiras estofadas, uma ao lado da outra, sinalizou-me que me adiantasse. Já do seu lado, puxou-me por um dos braços e conduziu-me até a janela.

Ali era uma área murada sem acesso para o lado de fora, a não ser pelo pequeno muro. O que vi, deixou-me arrepiado e ainda mais nervoso e abalado. Era o corpo de um homem. Sandro, nosso companheiro de equipe, tinha, no pescoço, uma corda. Estava encostado ao muro e havia sido deixado ali pelos que o haviam assassinado. Amarrado à corda, com um barbante, o número 4, escrito em uma folha de papel branco de cartolina. Em seguida, ouvimos tiros, muitos tiros e retornamos para o centro da sala.

Por não aceitarmos fazer parte da quadrilha de Romero Abraão, fôramos todos jurados de morte e parece que ele estava cumprindo a sua palavra. Eu, minha namorada e mais três amigos estávamos entre os marcados para morrer. Trabalhávamos em sua empresa que, por dois anos e cinco meses, julgamos perfeita, dentro de todos os padrões de honestidade e limpeza.

Ao descobrirmos ter sido Romero, no passado, um exímio traficante de drogas e que, mesmo tendo deixado de agir no tráfico diretamente, ainda auxiliava o velho grupo a que pertencera, por isso a rica empresa, financiada por eles, entramos em um beco sem saída. Um dos jurados entregou-o à polícia e morreu assassinado; ele foi o primeiro. E nós, eu e minha namorada e os restantes, deveríamos morrer como queima de arquivos e para não haver testemunhas.

Eu estava pálido e tremia dos pés à cabeça.

- Agora entendo porque deu aquele calmante para a Cíntia. Ela viu o cadáver, não é isso?

- Sim; não tive outra escolha. Seus gritos poderiam atrair os assassinos.

- Mas, de que adianta?! Eles sabem que estamos aqui; vão entrar a qualquer hora. Precisamos chamar a polícia, Aurélia. Você se arrisca conosco sem ter nada que ver com a história.

- Aí é que você se engana. Romero me deve; e muito. E já chamei a polícia, já estão a par de tudo. Se é que isto pode servir para acalmá-lo. Ainda está pálido e tremendo. Tome esta pílula - disse-me, mostrando-me um comprimido azulado. Cheguei a desconfiar que Aurélia pudesse agora estar do lado dos meus inimigos. Pelo jeito que me olhava.

Dei-me como perdido. Eu e minha namorada. Tão mal estava que me joguei sobre uma cadeira. Aurélia olhava-me. Parecia ter adivinhado meus pensamentos. Sem dizer palavras, virou-se e foi até a cozinha. Comecei a orar, baixinho, comigo mesmo. Chegara a hora da minha morte. Ela retorna; nas mãos um copo com água.

- Beba isto; está precisando.

Entendendo minha desconfiança agônica, virou na garganta dois goles do líquido antes passá-lo a mim. Neste momento, batem à porta. Batidas fortes e insistentes. Eu não tinha reação para nada mais e tudo o que fiz foi, impassível, esperar o que estava para acontecer. Dois homens uniformizados estavam à porta e falavam com Aurélia.

Escutei toda a conversa. Haviam perseguido e encontrado Romero e seus comparsas. Na troca de tiros que há pouco ouvíramos mataram dois de seus homens e ele, devidamente preso e algemado, aguardava, no carro, o momento de ser conduzido e devidamente enjaulado por todos os crimes que cometera. Não fiz outra coisa se não jogar-me para trás em minha cadeira e respirar aliviado.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 22/02/2015
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