Aquela Dor Atroz

Em um dia chuvoso, há alguns anos, resolvi que deveria sair e retornar à casa de um velho conhecido. Estava sentado em um dos estofados, com os olhos fixos no teto, mas com os pensamentos volitando sem controle em sua jaula. Aquele ruído incessante, provocado pelo choque dos grossos pingos d'água com a vidraça, contribuía, em parte, para chamar-me de volta ao meu próprio ambiente, o que ocorria em intervalos de alguns minutos. Se eu pudesse de antemão conhecer o destino para que minhas antigas reflexões me guiariam, teria possivelmente empenhado-me à talvez sábia tarefa de direcioná-las para outros assuntos. De fato, minha mente traiçoeira levou-me a pensar que o resultado daqueles momentos em intenso raciocínio proporcionaria em mim, em um futuro próximo, a paz de espírito que almejava. Entretanto, o destino que a mim aguardava era certamente hostil e, sentado sob a fraca luz do luar que penetrava pela vidraça, eu apenas vislumbrava em minha mente a consequência daqueles intensos sentimentos que há muitos anos nutria...

Retrocedo agora a um ponto específico do tempo, o qual deu-se antes daquela noite, depois do qual passei a possuir certo receio por dias chuvosos. Naquela época, estava ainda no colegial. Era um rapaz temperamental, cuja fama de arrogante alastrara-se rapidamente pelos demais alunos. Mantinha-me, modéstia à parte, como um dos mais brilhantes de nosso período, com poucos, mas fiéis amigos, que compartilhavam comigo pensamentos e ideias similares, o que em nós provocava aquele peculiar senso de mutualidade. Havia uma fazenda próxima à divisa de Caravelas, onde morei com meus pais e meus irmãos mais novos, e a cidade de Imperador João. Ao longo de três anos, eu e meus amigos tivemos o costume de invadi-la, e nos esquivarmos pelas árvores até alcançarmos uma clareira, próximo à qual havia um riacho cujas águas produziam um constante e suave ruído, onde permanecíamos por um longo período dialogando sobre a vida de forma generalizada, sobre a escola, os professores, os vizinhos, o avanço do movimento modernista, e qualquer assunto que viesse-nos à lembrança.

Em certa terça-feira, numa manhã singularmente chuvosa, o mais novo de meu habitual grupo de amigos não compareceu à aula. Guilherme era o seu nome, e fazia parte de uma família famosa em Caravelas. Seu pai era o proprietário da loja de sapatos Rangel, e sua mãe trabalhava em um conhecido escritório de advocacia. Desde que nos conhecemos, passamos a cultivar o hábito de visitar nossas respectivas famílias em finais de semana alternados, de modo que não éramos simplesmente colegas de classe, mas de fato amigos íntimos. Debatíamos sobre as questões mais comuns de nossa época, especulávamos sobre nossas futuras condições sociais, trocávamos conhecimentos sobre autores e suas obras, e Guilherme era a pessoa de quem mais tomei livros emprestados. Não me espantaria se descobrisse que meu próprio comportamento visivelmente se alterasse enquanto estivesse em sua companhia, e até mesmo percebia em minhas ações certa cordialidade durante estes não poucos momentos.

No dia em que Guilherme à aula faltara, tal ocorrido não passara despercebido por mim, nem pelos demais integrantes de nosso grupo. Artur, Gabriel, Roger e eu resolvemos que nos dirigiríamos à casa de Guilherme antes de nos colocarmos à caminho da fazenda, pois o clima melhorara durante o tempo que havíamos passado na escola, com apenas algumas nuvens ainda ocultando o sol. Outra foi nossa trajetória, e no caminho vinham também alguns estudantes, de forma que não estávamos sós. Lembro-me que Marina Stahl, uma das mais belas garotas, ia logo à nossa frente com suas amigas bajuladoras, e não pudemos evitar trocar alguns olhares durante o trajeto. Caminhávamos tranquilamente, nunca permanecendo por muito tempo contemplando as casas e comércios pelos quais passávamos, pois nossos olhares e ouvidos eram sempre atraídos para frente. Repentinamente, em certo ponto do caminho, notamos que três rapazes vinham caminhando apressados na direção oposta, os quais imediatamente reconheci quando nos aproximamos. Por pouco meus membros inferiores não foram de súbito acometidos por uma desagradável paralisia, mas meu coração iniciou batidas descompassadas em meu peito. Uma sensação crescente de desgosto formou-se em algum lugar dentro de mim, pois aqueles de quem nos aproximávamos eram os famosos primos Rafael, Marcos e Jorge, o trio mais temido de nosso período — e por mim o mais desprezado. Conhecia Rafael mais do que meus próprios companheiros, e ele havia se tornado meu grande inimigo após suas constantes perseguições a Guilherme, por razões que descobri com certa repulsa. No momento em que por nós passaram, entretanto, nem mesmo ousaram nos fitar, e continuaram seu caminho após terem cumprimentado apenas com um aceno de cabeça as garotas que nos precediam. Apesar da baixa temperatura, constatei claros sinais de sua transpiração incomum. Nada mais, além da repugnância, teve lugar em minha mente por vários minutos. Contudo, além dos habituais sentimentos que me possuíam sempre que os encontrava, um ainda desconhecido naquele momento penetrou em mim com uma inesperada sutileza. Não saberia identificá-lo até algum tempo depois.

Precisamos separar-nos dos demais estudantes e assim fizemos. Desviamo-nos para uma rua transversal até que chegamos à casa de Guilherme. Já em nosso destino, aproximamo-nos da porta, e fui eu quem nela deu três firmes toques. Aguardamos algum tempo, até que a senhora Rangel atendeu-nos com um leve sorriso. Ao ver-nos, pareceu imediatamente supor o motivo por que ali estávamos, e informou-nos que Guilherme saíra havia algum tempo, mas que não a dissera aonde iria. Após agradecê-la, deixamos o lugar e seguimos para a fazenda.

Tão logo chegamos ao local onde era nosso costume deslocar um das estacas de madeira, a fim de permitir nossa passagem pela cerca, ficamos realmente espantados quando percebemos que a mesma fora já tirada de seu lugar. Admito que pensei imediatamente em Guilherme, e indaguei-me no mesmo instante se ele não nos antecipara, pretendendo talvez causar-nos alguma surpresa. Nossa curiosidade era certamente mui grande. Lembro-me que a minha própria era de tal forma arrebatadora, que não me permitiria retornar sem que antes descobrisse o que se passara em nosso local de encontro. Resolvemos assim que atravessaríamos a pequena floresta e acessaríamos a clareira.

Absolutamente nada poderia preparar-nos para o que se seguiria...

Avançamos em direção à floresta, alertas e atentos a qualquer som ou movimento. Afastamos arbustos e ramos de nossa passagem até que, por fim, alcançamos nosso destino. Inicialmente, notamos que o silêncio ali reinava. Nada vimos de anormal, e o riacho parecia deslizar calmamente. Uma fina garoa começara a cair. Repentinamente, no entanto, Roger chamou nossa atenção para algo que vira em meio as árvores. No mesmo instante, pude também ver do que se tratava. Era uma camisa azul, e parecia ter sido ali jogada às pressas. Artur foi o único que teve coragem para erguê-la e, no momento em que o fez, reconheci imediatamente aquela peça de roupa. Contudo, logo desejei que isso não houvesse ocorrido, pois também notamos que a camisa estava suja e abarrotada, o que me causou inquietantes sentimentos.

— Não é essa a camisa do Gui? — indagou Gabriel, com um olhar grave.

— Será que ele ainda está aqui? — perguntou Roger, olhando ao redor.

Preferimos gritar juntos por ele, ao menos eu com a esperança de que aparecesse por detrás de alguma árvore. Entretanto, a apreensão que me tomava era já grande e, a despeito de minhas tentativas de manter-me calmo, o fato de que esconder-se ali não condizia com o Guilherme que eu bem conhecia opunha-se fortemente à elas. E, de fato, algo realmente marcante nos aguardava. Artur tomou a iniciativa de mergulhar entre a espessa vegetação, por algum motivo que eu totalmente desconheci. Segundos depois, soltou um grito realmente angustiante, fazendo com que meu corpo inteiro gelasse. Larguei a camisa no mesmo instante. Não importei-me com nada mais, e corri o máximo que pude em sua direção. Palavras me faltariam para que eu as usasse, a fim de descrever o que senti quando meus olhos encontraram o motivo do desespero que vi em Artur.

Ali estava ele, a quem procurávamos. Reconheci-o imediatamente, minhas pernas tremeram e caí de joelhos próximo a ele. O Guilherme que buscávamos estava ali, mas estava ensanguentado. Gritei o mais alto que pude. Não me importei que minhas mãos pudessem sujar-se com seu sangue, mas o ergui, trazendo-o contra mim mesmo, apertando-o, enquanto via minhas próprias lágrimas caindo sobre seu peito inanimado. Estava ali alguém que eu verdadeiramente amara. Alguém por cuja amizade faria até o maior dos sacrifícios possíveis. Estava ali alguém por quem eu daria minha vida, mas por quem, daquele momento em diante, estaria inteiramente disposto a tirá-la de outro... Já não sei por quanto tempo lamentamos, totalmente feridos e angustiados, por nosso amigo. Quando voltamos da floresta, no entanto, aquele sentimento desconhecido, que mais cedo em mim originara-se, foi finalmente consumado. Sim, pois eu bem sabia quem provocara nossa angústia! De forma involuntária, sinceramente o digo, a repulsa que sentia pelo causador daquela desgraça transformou-se em algo ainda pior. Meu coração transformou-se em um caldeirão de fúria, tão implacável que não a pude controlar. Depois daquele dia, meu ódio contra o criminoso tomou o controle de minha mente. Aquele dia chuvoso marcou minha vida para sempre.

Retornemos, pois, àquele dia em que senti-me impelido a visitar a casa de Rafael. Enquanto sentado em um dos estofados, meus pensamentos estavam concentrados naquele meu amigo dos tempos de escola, com quem havia por muito vivido. Não era à lembrança de Guilherme que minhas reflexões estavam direcionadas, pois, naquele mesmo dia, algo que seria digno de repulsa e repreensão para alguns fora por minhas próprias mãos já executado. Nunca imaginara, contudo, que algo realmente cruel seria a causa de minha tranquilidade algum dia. Sim, pois a imagem de Guilherme trazia consigo a quase insuportável lembrança de que seu assassino nunca recebera sua merecida punição. O castigo que lhe era devido nunca fora executado. E isso me perseguira, sendo a causa de minhas muitas e inquietantes insônias e frequentemente o desvio de meus raciocínios. Afligira-me, deixara-me à beira de um precipício imaginário, fruto de minhas mais longas reminiscências. Fruto da dor que nunca fora aliviada. E, em minha mente, tal pensamento transformara-se sutilmente, e atingira seu ápice até que não pude mais suportar com ele conviver. Naquela noite, contudo, deixei minha casa, pela segunda vez no dia, com a mente em muito aliviada e, após percorrer alguns quilômetros dirigindo sob forte chuva, meu objetivo não era propriamente o de fitar novamente os olhos de Rafael, e tentar imaginar o que haviam visto naquela manhã de terça-feira. Tampouco era minha vontade contemplar seus fortes braços, e tentar trazer à mente a forma como haviam obedecido à suas cruéis intenções de provocar o pior dos sofrimentos a Guilherme. Muito menos ainda desejava encará-lo enquanto lutava contra mim mesmo, contra uma parte de meu ser que ardentemente desejava sua morte. Não, pois uma outra vontade já havia possuído minha mente, e fora irrevogavelmente encaminhada à região do intelecto que logo a transformara em atividade externa.

Naquela noite, estava apenas retornando para o local onde minhas mãos haviam repetido os atos daquele criminoso. Para onde meus olhos haviam contemplado o mesmo que ele próprio já vira, uma pessoa desesperada a seus pés, suplicando pela vida. Estava retornando para onde meus braços haviam executado os mesmos movimentos empregados por Rafael naquela manhã de terça-feira, onde meu ódio, assim como o seu, fora direcionado para alguém indefeso. Onde um sentimento indomável havia guiado-me até o momento em que tudo fora consumado...

William Estaquio
Enviado por William Estaquio em 10/04/2015
Reeditado em 20/04/2015
Código do texto: T5201446
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