24 horas de Horror - 22:00

Minhas melhores lembranças foram naquela casa onde passei minha infância. Depois do incidente, e da mudança que se seguiu, nunca mais vivi algum momento mais feliz. Se bem que, considerando a reviravolta que ocorreu em minha pobre existência, nunca mais tive um momento feliz em minha vida.

Qualquer pessoa que passasse à frente da Av. General Lupino, 105, veria o retrato mais perfeito de amizade no planeta: um menino loiro, magricela, e seu cachorro labrador, também de pelagem dourada. Éramos inseparáveis, eu e David. Até hoje sinto a falta dele…

Maldita seja a hora em que perdi meu melhor amigo!

Nada havia acontecido de importante naquele dia. A escola fora normal, sempre íamos e voltávamos juntos, e nossa mãe – sempre a consideramos mãe de nós dois – estava se arrumando para sair. Mamãe trabalhava todo dia e, em algumas noites, ela tinha que sair também. Era uma vida difícil, mas suportável.

Chegou, então, a garota que tomaria conta da gente. Ela tocou a campainha e nossa mãe desceu. A porta se abriu e ela entrou. Ela deveria ter um metro e setenta de altura, talvez. Tinha olhos claros e cabelos pretos, escorridos. Mamãe a encarou, disse que voltaria às onze e que dez horas era o horário limite para ficarmos acordados. Dito isso, saiu.

Devo confessar que a menina, como sempre fazia desde que começou a cuidar de nós, não demorou muito também. Era o prazo de mamãe estar longe e ela, rápida como uma bala, pulava na garupa da moto do namorado e ganhava o mundo. Era bom porque ninguém mandava em nós, mas não é algo muito aceitável deixar um menino de doze anos e um cachorro de dois sozinhos em uma casa, ainda mais na nossa.

Creio ainda não ter falado, mas nossa casa ficava no limite da cidade. O quintal era junto a uma cerca que nos defendia da floresta. Era uma floresta velha, com árvores retorcidas e altas. E, embora atraísse alguns turistas durante as férias, não era muito convidativa durante a noite. Porém, como não havia nada para fazer, resolvemos ir até lá.

Ou melhor, o David resolveu. Enquanto assistíamos tevê, ele se levantou do sofá e foi à porta. De lá, ele me chamou e saiu correndo para a cerca. Fui atrás, pedindo que ele voltasse; mas quem disse que ele ouviu? Nunca vi alguém tão teimoso como ele…

Sem alternativas, fui atrás dele. Já era dez horas quando saímos de casa. Em breve mamãe voltaria e, bem, eu não podia estar em casa sem ele. Pulei a cerca e o segui.

A floresta erguia-se imponente perante a nossa pequenez. Nossos corações batiam, sincronizados, na mesma passada. A Marcha do Medo imperava em nossas pobres almas, sedentas de sossego. Quando finalmente o alcancei, percebi que estávamos perdidos. E, pela minha experiência com ele, soube que ele também sentia isso.

Foi quando ouvimos o primeiro barulho. Parecia uma passada ao longe. O vento começou a rugir de todos os lados, sem nos dar chance de descobrir a origem do barulho e, principalmente, o caminho de casa.

Pássaros negros como a noite subiram à nossa esquerda. Tomei isso como um presságio e segui naquela direção. Apesar de estar claro, pois era noite de lua cheia, a luz prateada refulgia parcamente através das folhas. Pé ante pé, pata ante pata, chegamos a uma clareira.

Tal qual a sombra, ao sair da frente do sol, libera a luminosidade antes obstruída, a visão que tivemos fez com que uma luz surgisse em nossas mentes: estamos ferrados!

A primeira coisa a notarmos foi um líquido vermelho-escuro, quase marrom, que estava por todos os lados. Sangue seco, pelo cheiro. Mas era outro odor, muito mais pungente, que amedrontava-nos. Aquele lugar exalava o perfume da Morte.

Corpos retorcidos, alguns como se destruídos por um ser furioso, ou vários deles, ajudavam a completar o cenário. Havia órgãos estendidos pelo chão e cabeças secas em todo canto… Alguns animais carniceiros rodeavam o lugar, receosos de se aproximar.

O silêncio reinava na floresta. E cria eu que ele duraria toda a eternidade quando ouvi um fortuito Crec ao meu lado. Era Dave que, ao dar um passo atrás, aterrorizado, quebrara um galho seco.

O barulho acordou-nos de nosso torpor. E, infelizmente, despertou também o maligno ser que escondido estava, alheio à nossa presença. Um som foi ouvido à nossa direita: uma mistura de um rugido amaldiçoado com um urro de causar arrepios até nos corpos que descansavam o sono dos justos. Congelamos.

Mas, ante a presença de dois olhos vermelhos, odiosos e odiadores, corremos para a direção que parecia a certa. A entidade maldita que residia na floresta seguiu-nos para o mesmo lado que, felizmente, era o certo.

Conforme a cerca se aproximava, mais perto a criatura dantesca ficava. E eu já estava quase na cerca quando percebi que David não estava mais ao meu lado; ele estava um pouco para trás, mais perto do monstro do que eu gostaria.

E o ente aterrorizante alcançou-o quando eu pulei a cerca. E em todas as noites, desde aquela, vejo a cena mais uma vez: meu amigo, olhos inchados, trêmulos, nas garras de um ser alto, com os braços e as pernas peludas, um daqueles sorrisos que só possuem os viciados na tortura e na morte estampado em um rosto desfigurado, sem metade da pele facial.

Até hoje, quando me vem à mente aquela situação, encharcam-me os olhos. Porém, ainda que esse pensamento me corroa intensamente, não posso deixar de agradecer por não ter sido eu a passar por aquilo.

Por aquele demônio não gostar de cachorros!