Minha Pequena Democracia

Era semana de pós-feriado, com ela, a preguiça residual. Começo de trabalho devagar. No hiato entre as palavras digitadas, emergiam colossais bocejos. Daqueles envolventes em que o sono quase cai como uma manta sobre os olhos.

Parecia ser uma semana como qualquer outra, as discussões e prosas de rotina, quase fervorosas, não fosse o medo que tínhamos que as paredes nos ouvissem. O tema da vez era o Feminismo.

Três homens e uma mulher discutindo o feminismo nas suas mais diversas infiltrações na sociedade.

Os debates nunca tinham uma conclusão ou a vitória de um pensamento sobre outro. Tudo não passava do ecos de liberdade, gritos de uma geração que ansiava por ser ouvida. Naquela sala digladiavam-se amigos, as melhores ideias, os mais belos diálogos, e no final um café preto com pães de queijo selava a coligação política.

Às vezes um pão francês com mortadela roubava a cena.

Com toda certeza, a sala mais democrática que já trabalhei.

Mas naquela semana fatídica algo estava diferente, algo cheirava mal debaixo daquele assoalho que imitava a textura de madeira.

Certa vez aprendi que as risadas e os bons momentos só fazem sentido porque uma hora a tempestade há de chegar. Após um ano de fartura o vulcão entrou em erupção. Espalhou sua lava infernal e sua fumaça sufocante sobre tudo. Como numa serra neblinada eu tentava tatear para encontrar apoio nas paredes da nossa acolhedora sala, vão esforço.

Tentei me refugiar no ceticismo da minha mente. Pois tudo não devia passar de um mal-entendido, afinal era óbvio que eu estava preso num pesadelo! Era como se a noite tivesse me engolido em pleno dia. Até meus pensamentos eram difíceis de ler.

Meus amigos chamavam-me ao longe, apenas murmúrios numa escuridão inexplicável. Foi quando a luz adentrou em minha alma, meus olhos queimaram e as lágrimas envolveram minha face. Tudo começou a fazer sentido, as pessoas que eu mais admirava naquele edifício haviam sido cúmplices.

Não haveriam outra semanas, nem discussões e nem mais trabalho. No minuto que abri aquele e-mail foi o fim... o impeachment veio como um trem descarrilhando e tirou de mim a minha pequena salinha, o meu ar condicionado, a minha pequena democracia...

ProjetoProsa
Enviado por ProjetoProsa em 20/04/2016
Reeditado em 19/08/2016
Código do texto: T5610428
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