A noite dos crimes obscuros

Uma bala atingiu-me o pulmão – por alguma complicação cirúrgica nunca pôde ser retirada. A outra me estraçalhou a espinha. Assim, reduzido a morto-vivo, vou suportando esta maldita cruz, ora na cadeira de rodas, ora na cama, a depender de favores múltiplos, além de ouvir desaforos constantes da esposa, da empregada e ainda aguentar as brincadeiras cruéis de meus netos que nada mais veem em minha figura paraplégica senão um polichinelo, uma coisa, um objeto para diversão. Às vezes penso que melhor seria ter morrido naquela noite. Oh, insana noite! Uma noite como a de hoje, de nuvens negras, de ventos uivando nas copas das árvores, nas rodas dos carros, um vento mordendo as esquinas, as quinas dos prédios, um vento que varria poeira, lixos, papéis, ilusões – um vento embrutecido. Tão embrutecido que às 23 horas Manolo, o proprietário da churrascaria onde eu era me apresentava como cantor de boleros, tangos e música popular brasileira, resolveu fechar o estabelecimento. No local havia uma mesa ocupada por dois casais, bêbados, e outra, onde imperava uma mulher solitária. Manolo, com mil pedidos de desculpas, solicitou a retirada dos fregueses. Os casais saíram. A mulher não. Permaneceu estática em sua cadeira.

– Ainda não ouvi o Phoebus cantar a música Ronda, do Paulo Vanzolini. Ele não leu meu bilhete?

De fato, ela me mandara através do garçom um bilhetinho, solicitando a canção. Manolo olhou desesperado o rosto impassível da mulher, depois o tempo lá fora, vomitando os prenúncios da tempestade. Coçou a cabeça, indignado – mas nada podia fazer: a não ser que metesse a mão na cara daquela loura de meia-idade ridiculamente vestindo trajes juvenis para disfarçar a inexorável passagem dos anos. Rígida na cadeira, ela me encarava, desafiante. Senti uma raiva momentânea, mas do alto da minha experiência de cantor da noite há mais de quarenta anos, sabia que a coisa era assim mesmo. Olhei os músicos da banda, bem mais jovens que eu. Todos queriam dar o fora.

– Toquem essa porra de música! – bradou Manolo após constatar que ela, a mulher, tinha no semblante um ar não só desafiante, mas demonstrando a determinação de permanecer ali, sentada, pelo resto dos séculos, caso não fosse atendida.

– Eu não vou me curvar ao capricho de nenhuma porra-louca – disse Vadico. Arrumou seu trompete no estojo e se foi sem ao menos se despedir. Pouco depois toda a banda caiu fora, só ficou no local a mulher, Manolo e eu.

– Ela quer você, então se vira. Você tem dez minutos para despachar essa maluca – disse Manolo. E dirigiu-se para a cozinha.

Enchi o peito de boa vontade resignada, peguei o violão, fui sentar-me na beirada do tablado onde nos apresentávamos e comecei a tocar Ronda em surdina. A mulher pegou o copo de vodca e veio acomodar-se ao meu lado. Desafinadamente acompanhou-me na melodia. Sua mão vadia pousou-me numa das coxas e ficou ali numa carícia lenta e obscena. Parei de cantar, encarei-a. Ela devolveu-me o olhar, um brilho canalha nas pupilas.

– Venha, vamos transar – disse ela, sibilando como uma serpente.

Sem veículo, aventei a possibilidade de chamarmos um táxi. Ela estava de carro. Saímos para a noite uivante.

– Você guia – falou-me. – Estou um tantinho bêbada.

*

Seguindo a orientação da mulher – cujo nome disse ser Cleusa – desembocamos numa rua de nome Vietnã, na periferia, e estacionamos em frente a um predinho de dois andares – no térreo havia duas portas, dessas de correr, arriadas, corroídas pela ferrugem. No segundo andar, com aparência de moradia, todas as luzes estavam acesas. A ventania parara por completo e o tempo fechado estava inchado por um mormaço de mau agouro, pesado, fazendo suores brotarem-me na testa, costas e axilas. A bem da verdade, não sei se suava por causa da temperatura ou se de algum medo obscuro – esse medo premonitório que às vezes nos arrasa, um medo abjeto, vergonhoso e cruel porque arranca de nosso íntimo toda a covardia que nos impõe o instinto de sobrevivência.

– Estão dando uma festinha íntima para a minha irmã – disse Cleusa, apontando o apartamento no segundo andar. – Hoje é o aniversário dela e você, meu caro, é o meu presente.

Cleusa tomou-me a mão e subimos por uma escadinha lateral de acesso à residência. Entramos no apartamento. Na sala, quatro ou cinco gatos pingados. O local era imundo, sofás rasgados, uma mesa sobre a qual um bolinho minúsculo, ou restos dele, avisava que a festa estava terminando. Cleusa olhou para uma mulher sentada num canto e gritou:

– Jeritza, este é o Phoebus! O Phoebus, Jeritza!, lembra?

– Oh, meu Deus! – exclamou uma mulher destroçada pelos vícios, enquadrando-me com um olhar raiado de sangue. Com algum esforço levantou-se do sofá e, copo de cachaça na mão, veio ao meu encontro, um enorme sorriso na boca.

Reconheci-a depois de algum esforço de memória. Mantivéramos um curto, mas memorável caso – na época ela tinha quinze anos, eu já começava a ficar com os cabelos grisalhos. A bem da verdade, depois de brincar um pouco com o seu corpo em formação, fresco e saudável, cansei-se de seu papo bobinho e, sem me despedir, fui com minha família para Buenos Aires, só tinha voltado ao Brasil havia seis meses. Tive tantos casos ao longo da vida que aquela relação fugaz com Jeritza aparentemente havia mergulhado no esquecimento. E agora, o seu nome incomum e o sorriso belíssimo penetraram em meu cérebro como estilete.

– Como vai? – eu disse, estendendo a mão. Ela avançou, cingiu-me a cintura e grudou a boca fedendo a álcool fermentado na minha. Depois se virou para um homem grande, vestindo camiseta do Corinthians, forte como boxeador peso-pesado e, em voz pastosa, quase aos berros, anunciou ao mundo:

– Pedrão, este foi o homem que me descabaçou! – Ainda grudada em mim, confidenciou: – Pedrão é o meu demônio pessoal. Muito, muito vingativo.

O homem, de pé junto à mesa, acabou de servir-se de cerveja, virou o copo num trago e despejou-me uns olhos brilhantes de animosidade. Fiz-lhe um gesto amigável de saudação – ele mostrou a mão fechada e esmurrou o espaço vazio, os lábios espumando de cerveja e raiva descaídos nos cantos da boca.

Jeritza desalojou duma poltrona um menininho e pôs-se a niná-lo junto ao peito. Um monstro, a criança. Só o braço direito era normal; no lugar do esquerdo, grudada nos ombros havia uma mão minúscula, insignificante, com dedinhos gorduchos. O rosto, enorme, mostrava um olho vazado e o outro estalado como o de sapos. A boca, aberta e inundada de espuma cinzenta, sorriu-me, mostrando dentinhos irrisórios e negros de podridão. O corpo estava encoberto por uma camisola longa e sem mangas, de tecido grosso, certamente escondendo mais atrocidades. Nas pontas das pernas os pés eram duas bolas de tênis, sem tirar nem pôr, exceto pelos dedos em miniatura.

– Lembra de quando me fez esse filho, Phoebus? – perguntou Jeritza. Eu dei uma risada sem graça. Aquela piada era de um mau gosto medonho. O menininho devia ter uns vinte meses, nós – lembrei de repente –, havíamos tido relações sexuais há pelo menos uns sete anos.

Pedrão arrastou uma cadeira junto à mesa e com gesto autoritário mandou que me sentasse. E chamou dois sujeitos sentados no chão a um canto, bêbados: um branquelo de cabelos de um louro encardido e pastoso e o outro, um mulato completamente banguela. Ele próprio se acomodou e apontou uma cadeira para Jeritza. Ela sentou-se, o monstrengo grudado em seu tronco.

– Tragam a cadeirinha do menino e desliguem essa porra de vitrola! – berrou o cara. Desligaram o aparelho de som e trouxeram uma cadeira com o assento quase à altura do tampo da mesa, tendo um espaldar comprido, de onde pendiam duas tiras de couro com presilhas. Afivelaram o monstrinho na cadeira, cingindo-lhe o tórax. Então colocaram à frente de cada um de nós uma garrafa de cachaça e copos, desses tipo americano.

– Você se julga muito macho comendo meninas de quinze anos. Vamos ver se é macho mesmo – disse o homem. Encheu o copo até a borda e virou-o num único e prolongado trago. Os outros dois homens fizeram o mesmo, olhando-me com um sorriso de tamanha superioridade que senti meu corpo encolher-se ao peso da humilhação. Jeritza iria beber? indaguei-me, voltando os olhos para o lugar em que ela se sentava. Não só já bebera como se servia de uma segunda dose. Para meu espanto, em frente ao menino havia uma caneca de plástico – ele também participava da libação. O problema é que eu não podia ingerir álcool – estava me tratando de um começo de cirrose. Pensei em argumentar sobre meus problemas de saúde. Apenas pensei. Um braço surgiu sobre meu ombro encarregando-se de me encher o copo. Lancei um olhar em torno, os convidados em peso observavam a cena – e esborrachavam-se de rir deste grandíssimo pateta.

Acuado, emborquei a dose de pinga, sentindo o estômago a princípio rejeitar o líquido, revolucionar-se, um golfo de vômito azedo subiu-me à garganta, queimando tudo em sua passagem. Eu mesmo voltei a encher o copo – ao virá-lo senti que minhas entranhas estavam apaziguadas. Uma confiança súbita transbordou em meu cérebro. O que aquela cambada estava pensando? Eu tinha mais de sessenta anos, quarenta e cinco deles em íntimo convívio com o álcool – ora, que se danassem, iria derrubá-los um por um, como se fossem moscas dedetizada. No terceiro copo imaginei, jubiloso, que começava a impor respeito.

– Como foi que ele te estuprou, Jeritza? – perguntou Pedrão.

– Eu não estuprei ninguém!

– Pedófilo filho da puta! – berrou Pedrão. – Cleusa, vá buscar meu revólver lá no criado-mudo!

– Não vá! – disse eu, inaudivelmente. A bruaca foi. Pedrão deslocou o tambor da arma, retirou um punhado de projéteis.

– Só tem uma bala, agora – Pedrão disse –, e nós vamos brincar de roleta-russa. Você topa, Gomes?

O mulato, o tal Gomes, confirmou com a cabeça.

– E você, Liminha?

O branquelo anuiu.

– Bem, quanto a você... – olhou-me com supremo desprezo –, que merda, cara, você não tem escolha.

Voltou-se para Jeritza:

– Leve o guri pro quarto. E fique por lá.

A mulher obedeceu. Pedrão colocou o revólver sobre a mesa, junto aos restos do bolo e da faca empastada de fragmentos pegajosos.

– Vamos então acabar com a bebida – disse o homem, enxugando o litro de aguardente a mamar no gargalo. Os dois sujeitos o acompanharam. Tentei fazer o mesmo, mas acabei vomitando. Um vômito marrom, a cor do pânico.

Terminamos de beber, Pedrão girou o tambor da arma e levou o cano ao ouvido. Clic. O modesto barulhinho reinou no silêncio como a explosão de um míssil. Com um sorriso demoníaco, Pedrão passou os olhos por nós e entregou o revólver para o Gomes.

Com uma naturalidade de enregelar, o sujeito acionou o gatilho, o cano enfiado na boca, apontando ao palato. Novo clic. Liminha teve a mesma sorte e então chegou a minha vez. Assim, sem aviso nem nada, começou a chover, um barulho ensurdecedor no telhado. Como se ocorresse uma simbiose entre o temporal e minha bexiga, senti que urinava nas calças. E veio lá do quarto uns berros insanos de criança.

– Maldita criança! – berrou Pedrão. Tomou-me a arma, recarregou-a com as balas retiradas ainda há pouco. – Maldita! – gritou novamente. Levantou-se e dirigiu-se ao cômodo anexo. Ouvimos dois tiros.

Logo Pedrão retornava, nos braços a criança com a cabeça estraçalhada.

– Ninguém vai mais nos importunar – sentenciou. Jogou o menino sobre os restos de bolo na mesa. – Vamos continuar a roleta.

De um canto qualquer explodiu um grito inumano. Foi uma coisa de átimo: Cleusa saltou para o centro da sala, segurou a faca suja de bolo – rápida como um raio degolou o Liminha, em seguida cravou o instrumento no estômago de Pedrão, uma, duas, muitas vezes. Pedrão ainda teve reflexo para puxar o gatilho, uma enorme flor vermelha abriu-se na testa da mulher. O resto foi cena de pesadelo, delírio, horror absoluto: Jeritza saiu do quarto, uma trilha de sangue esvaindo-se de um orifício na garganta. Abaixou-se e pegou o revólver. Mirou na direção de Gomes que se arrastava pelo chão tentando esconder-se atrás do sofá, abateu-o com um único tiro. Em seguida Jeritza voltou-se para mim:

– Você foi o culpado! – berrou com voz espasmódica saindo pelo buraco na traquéia. E me apontou o canhão. O instinto de sobrevivência, há tempos comprimido dentro de mim como uma mola, impulsionou-me da cadeira. Disparei escadaria abaixo, ganhei a rua sob a chuva torrencial. Jeritza perseguia-me, implacável. Senti uma bala picar-me o pulmão. A outra me partiu a espinha. Tombei, arrastei-me pela calçada coberta de enxurrada escura de lama, entulhos, borbulhas de morte. Jeritza alcançou-me, agarrou uma de minhas pernas e arrastou-me para as entranhas do prédio – antes de perder a consciência, uma pergunta torturava meus miolos: onde aquele ser debilitado pela depravação física e moral conseguia tanta força para puxar escada acima meu corpo pesado e inerme?

Saí do coma dois dias depois, estava num quarto branco, arejado, um sol forte, brilhante, benigno, infiltrando-se pela vidraça. Primeiro vi uma árvore gigantesca, ali no pátio do hospital, oscilando ao tocar do vento matutino. Depois bati os olhos em dois homens ao lado da cama, o médico e um investigador da policia civil que eu conhecia bem, já que era freguês da churrascaria onde eu trabalhava como cantor. Aquele cara não me suportava – eu havia fodido a amante dele.

– O que aconteceu? – perguntei ao médico.

– Você foi encontrado por uma mendiga sangrando dentro de um prédio em ruínas. Um prédio mal-assombrado, no dizer dos crédulos.

– Como assim?

– É o que desejo que você me explique, meu caro – intrometeu-se o policial. – Quero que me explique direitinho. O que você fazia num prédio que só não assusta aos mendigos, o que você procurava naquele antro mal-assombrado? Há uns cinco anos naquele prédio aconteceu uma carnificina, foi assassinado um punhado de gente, inclusive uma adolescente chamada Jeritza e o filho deficiente que, estranhamente, se chamava Phoebus, como você. O caso da matança nunca foi solucionado. Não acha que há muita coincidência nisso tudo? Ahn? Não acha?

Não respondi. Estava mudo de espanto. E mudo estou até hoje.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 20/04/2016
Código do texto: T5610493
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