Obsessão

Como era impossível aplacar minha fixação pela atriz Keira Knightley – ela tão distante lá em sua terra natal, a misteriosa Londres, ou incursionando na esplendorosa Hollywood, eu aqui nessa cidade onde Judas perdeu as botas –, resolvi que se encontrasse alguém com nome idêntico, com beleza ao menos aproximada, eu bem poderia redirecionar esse meu obsessivo desejo de posse. Não foi fácil, mas consegui; ela trabalhava no caixa de um banco e trazia no peito um crachá de identificação – ali, no peito, o nome mais lindo do mundo, o nome mágico: Keira. Em poucos dias, vasculhando o seu dia a dia, eu sabia de sua vida muito mais que seus primos, tios, irmãos, muito mais que os seus próprios pais – ou pelo menos assim eu acreditava, ignorando a verdade filosófica duríssima: todos nós temos segredos indevassáveis.

Pela Keira Knightley brasileira fiz coisas absurdas – como uma sombra a perseguia por onde quer que fosse. No seu encalço, recolhia ao bolso o papel de bala que ela chupava. Varava madrugadas na calçada oposta ao prédio onde morava, velando seu sono e muitas vezes chorando minhas mágoas a um guarda noturno que achava tudo muito engraçado e ria como louco. Fui despedido do escritório por falta de atenção aos cálculos contábeis e tive que me submeter ao subemprego como vendedor de telessenas. A dona da pensão onde eu morava obrigou-me a procurar o Posto de Saúde – desconhecendo os males do amor, aventava que meus olhos fundos estavam relacionados aos problemas do fígado. As olheiras a complicações renais; a falta de apetite a distúrbios hepáticos. A magreza à tênia, lombrigas e outros vermes estomacais. Quanta ignorância! Na minha solidão, gemia com as exigências da carne. Keira Knightley! Mergulhava em febris masturbações, à musa escrevia quilométricos poemas sentimentais.

Abri uma conta no odioso estabelecimento bancário que aprisionava seus pensamentos, atenções e dedicação, fiz do local quase uma morada, todos os dias ali eu estava, esquentando as cadeiras na ala de espera pelo atendimento – assim que chegava o momento de chamar o número de minha senha, imediatamente a trocava com alguém impaciente com a espera. Com esse artifício, passava ali tardes inteiras embevecido com a figura de Keira, adorando seus lábios inebriantes quando sorria para os clientes, amando seus dedos longos e finos, admirando seus grandes olhos de corça. Penso que ela no começo se envaidecia com a intensidade de minha paixão, depois percebi que seus olhos cintilantes foram ficando mais escuros, mais tensos, mais tristes. Um dia, ao atender-me – eu ia depositar dez reais na minha conta – ela me disse sem erguer os olhos do balcão:

– Me espera lá fora após o expediente.

Sai do banco em estado de graça. Não me dei conta da passagem do tempo, mergulhado em êxtase – até que ela deixou o trabalho, cruzou por mim sem me dirigir um olhar e entrou num Corsa cinza com uma mulher na direção. As duas se abraçaram e deram o beijo na boca mais escandaloso que eu já vira. Com os olhos marejados, permaneci estático ao lado do veículo. Findo o beijo, ela olhou-me nos olhos e gritou com raiva:

– Entendeu agora?!

Acenei com a cabeça, bovinamente. O carro arrancou. Eu estava tão desalentado que me sentei no meio-fio e acendi um dos meus três cigarros diários. Minha decepção maior era o fato de ela ser lésbica. Estava assim, vazio de emoções e ideias quando um casal parou à minha frente e a mulher pediu-me o isqueiro emprestado. Enquanto ela acendia o cigarro, analisei os dois: usavam aliança de casamento, o homem era de meia-idade, fortão, talvez um ex-atleta ou um desses malucos que vivem numa academia de ginástica – a mulher teria uns vinte e sete anos, trinta no máximo, loura, as coxas sugerindo boa musculatura sob as calças apertadas, seios imponentes, provocativos. Devolveu-me o isqueiro como se ao emprestá-lo eu não tivesse feito mais que a minha obrigação.

– Agradeça ao rapaz, Keira – disse o marido.

– Obrigada, cara – ela agradeceu com um piscar (involuntário?) de olhos.

Fiquei observando-a, perplexo, enquanto ambos se afastavam de braços dados. Keira! Mas que baita sorte eu tinha, ali, se afastando, eu via mais uma Keira Knightley brasileira. Como tamanha coincidência era possível neste mundo? O nome maravilhoso dedilhou as fibras do meu coração. Levantei-me do meio-fio e, impávido, segui o casal – antes de qualquer coisa, eu teria que dar um sumiço definitivo no marido.

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 24/06/2016
Código do texto: T5676979
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