Não importa como vencer
 
Toda a ação é designada em termos do fim que procura atingir”.
 
Maquiavel
 
          O homem debatia-se num lago sanguinolento de urina e vômito; a torção da cabeça e dos olhos para um dos lados dava-lhe o aspecto de um fantoche. Levava as mãos trêmulas à barriga como tentando retirar dali a dor que o afligia, enquanto macerava o rosto contra o chão duro em movimento pendular e uma mancha rubra nascia das narinas. As contrações musculares generalizadas duravam segundos, paralisavam por um instante e recomeçavam mais violentas. Era uma dança frenética ao ritmo de gemidos, do atrito dos dentes e gritos que vinham das celas vizinhas.

         O carcereiro de plantão apareceu bocejando, preocupado apenas em estar acontecendo mais um motim. A cena que encontrou deixou-o desorientado e confuso. O prisioneiro 17 rolava pelo piso, jogava-se contra as grades, tinha as roupas rasgadas, deixando à vista a pele azulada, da boca escorria uma baba grossa e entre as pernas brotava, vermelha e fétida, uma rosa podre. As pupilas cruentas e dilatadas pareceram fitá-lo num pedido de socorro. Mas, antes que tocasse o apito de alerta ou destrancasse a pesada porta, toda aquela agitação involuntária cessou, como se houvesse desligado da tomada o aparelho que sofria uma descarga elétrica desorganizada.

 
              "... Para os seus mercadores eram os grandes homens da terra, pois por sua feitiçaria todas as nações foram enganadas.”
Apocalipse 18.23
 
***
 
         Jeremias não teve tempo para sorver novas possibilidades. Desmaios, lágrimas e dor, assim foram marcados o velório e sepultamento dele.

         E foi dada continuação à burocrática investigação O médico legista passara informações para o Diretor do presídio:

         — Envenenamento. Cianeto. Na autópsia verificamos a ingestão de alimento contaminado.

         — Como entrou isto aqui? É conveniente Jeremias morrer logo depois de pedir para confessar quem foi o mandatário para o crime que cometeu. Ele afirmou que se fosse condenado, não ficaria na prisão sozinho. Queria um bom advogado, sem ser o da Defensoria Pública ou um dativo.

          A investigação progredia, já fora executado minucioso exame do cubículo onde Jeremias estivera, na tentativa de identificar com a maior precisão possível a causa daquela situação.  Mulher, antigos companheiros de trabalho, advogados, pessoal da cozinha do presídio, agentes de plantão foram convocados para depoimentos. Buscaram vestígios do veneno na casa da viúva. Nada encontrado. Jeremias recebera um pacote anônimo no dia anterior à morte. Nenhum guarda soubera explicar como chegara a encomenda às mãos do detento.  A polícia é lenta... Nada ficou provado.

             E se fica esperando, esperando. Ninguém nota que a angústia vai crescendo... 
 
“Ai de você, destruidor, que ainda não foi destruído!
Ai de você, traidor, que não foi traído!
Quando você acabar de destruir, será destruído;
quando acabar de trair, será traído.“
Isaías 33.1

 
 
***
 
          Cassiano visitava, mais uma vez, a viúva do amigo assassinado por Jeremias; os três cresceram juntos, havia um vínculo forte entre eles; precisava ajudá-la com os negócios, as fazendas que então ela deveria arcar. Enquanto tomavam café juntos, entabularam longa conversação.


         Ana Lúcia era magra, cabelos castanhos, lisos, corte chanel, muito distinta. Tinha as mãos nervosas, olhos úmidos e ausentes, como se estivesse perdida em reflexões. Meiga, delicada, surpreendentemente decidida deixava transparecer a preocupação com os filhos, e a com os bens era enorme. Estava desorientada naquela situação, buscando apoio no visitante, ora falava ininterruptamente, ora calava e chorava. Tinha pouco mais de quarenta anos, mas aparentava muito mais velha.

          Cassiano mantinha-se com ar inexpressivo, falava com mais facilidade. Um homem de aparência vigorosa, que parecia resistir à chegada da meia idade. A musculatura era realçada pelo jeans e pela camiseta justa. A cabeleira preta emoldurava o rosto oval, alongado com queixo dominante, bem proporcionado, marcado por uma cova no centro. Baluarte na comunidade, atitudes sensatas e responsáveis, pai amoroso, marido fiel, amigo sincero — era como todos o julgavam. Temperamento forte, acostumado a ter tudo que quisesse. Teimoso e dissimulado. 

         Na despedida, as vozes passaram a sussurros:
         — Fiz o que me pediu, seu marido pode descansar em paz. O pacote já foi enviado.

         — Obrigada! Sabia que podia contar com você. É um amigo de verdade. — sussurra Ana, com um esgar desprovido de expressão.

         — Foi complicado, é uma atitude que vai contra meus princípios. Mas você pediu e não poderíamos deixar o bandido se safar... — Cassiano deixou escapar um sorriso amargo e conspirativo.

            —Sim. Entendo. Não quero saber detalhes.

         — Também... sobre aquelas terras. Não quero que você pense que estou aproveitando... Elas são amaldiçoadas, já causaram muitas desgraças.

         — Eu sei, pode ficar com elas.

         — Não posso pagar muito. Só fico com elas para lhe diminuir o fardo. O mesmo valor pago no leilão? Em quantas vezes?

         — Está bem, chorão. Um ano? Preciso de um pouco para as primeiras despesas. Ah! Também dê um jeito de socorrer a família dele, não têm culpa daquela loucura.

           — Ah, amiga, o que não faço por vocês...

 
“Guarde a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade.”
Salmos 34.13


 
***
 
 
Cassiano entrou no BMW preto estacionado em frente ao hotel cinco estrelas e seguiu pela avenida. Adiante, cinco quarteirões, o motorista avistou, aguardando na esquina, a moça magra, alta, com seios ostensivos, cabelos castanhos com reflexos avermelhados, densos e encaracolados, bem tratados. No calor carioca da noite, Miriam usava um top jeans com alças, muito justo no corpo, um short branco e sandálias pretas ridiculamente altas que deixavam entrever as unhas brilhantes pintadas de carmim. Do ombro nu pendia a alça da bolsinha de couro cru. O homem pedira que se vestisse assim e ela parecia bem à vontade ostentando o corpo. O dinheiro que recebera fora suficiente para o salão, para a maquiagem, as compras e o hotel indicado. Os dois precisavam conversar, finalizar as pendências.

          Miriam chegou até o automóvel com passos largos e ágeis. Nem sinal de timidez, uma jovem resolvida. Entrou sem medo, mesmo percebendo que os vidros negros a esconderiam de quaisquer olhares. Iriam até um motel, daqueles em que se tem acesso em total privacidade.

          — Viemos somente dialogar. Preciso saber o que você quer. Devo muito a você. Aceita uma bebida? Comece a apreciar o que há de bom na vida. — Cassiano ofereceu-lhe uma taça de vinho servindo-se de outra, contou-lhe de Paris, de Berlim, alimentando os devaneios e a ambição da moça.

           Miriam ouvia encantada aquela fala macia, algo inocente. Cassiano brincava com a confiança dela, que logo reclamou que estava zonza, entorpecida de sono.
       
        Assim que ele percebeu que não haveria mais reações, calçou luvas plásticas, pegou na maleta uma seringa cheia que cuidadosamente desembalou; ergueu as mãos da moça fazendo que a segurasse e foi injetando com leveza todo o líquido no pescoço moreno.  O efeito foi devastador, espasmos tomaram conta do corpo já desacordado, a depressão respiratória levou a jovem em minutos.


          O homem estava muito perturbado com toda aquela experiência, mas não podia haver mais testemunhas. Deu trabalho e despesa. O BMW fora alugado e pago com depósito em caixa eletrônico, tudo com nome falso, assim como o registro no hotel. Sempre disfarçara bem sua presença, evitando ser visto de frente. Estava tudo acabado, as terras que tanto queria eram suas, vingara-se do amigo que achava que poderia tomar dele o que quisesse. Era limpar as impressões digitais, apagar todos os vestígios, consumir com os documentos e o celular dela. Então... voltar para a sua rotina no interior, cuidando dos seus...
 
         Três dias depois, uma nota simples na página policial de um jornaleco local:

 
Jovem é encontrada morta dentro de motel no RJ
Uma jovem não identificada teria sido morta por overdose de heroína que ela mesma teria injetado, na noite de segunda-feira (7), dentro do motel Paraíso, no Leblon, RJ. A informação foi confirmada pela Polícia Militar.
 
 
          A moça fugira de casa há dois meses, deixara um bilhete dizendo que “ia ganhar o mundo”, que não voltaria nunca para aquela vida medíocre. Ela sabia de tudo, que Cassiano pagara o pai para executar o amigo; com o dinheiro Jeremias comprara a casa onde sua mãe e irmãos moravam agora, na cidade próxima, porém distante do falatório. Fora ela também que conseguira envenenar o pai na cadeia; esperta bastante para não aparecer, contaminou os doces que a mãe levara para ele. Jeremias os comera escondido, com gula, todos de uma só vez, sem querer ter que dividir com os colegas...

         — Ele nunca permitiria que eu fizesse tudo com que sonhava, estava convencido de que era depravada e que devia me manter sob controle. — justificava a moçoila.
 
                                       “Antes, que o direito corra como a água e a justiça com rio caudaloso!”
Amós 5.24

 
 
***
 
         Jeremias aguardava o julgamento por assassinato. Era réu confesso. Matara o patrão, mas não por algum desentendimento no trabalho. Foi crime de honra. O advogado determinou que essa fosse a defesa a ser sustentada, que não abrisse o bico, que estivesse atento às palavras, que não se desviasse do que haviam acordado. O falecido era mulherengo, sempre contando bravatas, enumerando conquista. Não respeitava a mulher ou os filhos, abusava de álcool. O administrador já avisara o fazendeiro de que não fosse à casa onde morava com a família quando não estivesse ali; a construção pertencia à fazenda, porém era ocupada por eles, era o seu lar.
 
         Naquela manhã, Jeremias saíra para organizar a capina do cafezal, do outro lado do morro, nas terras novas que foram arrematadas por leilão. Tinham que assumir a propriedade, anexá-la.

         — Eh... Foi uma briga e tanto!— comentava o patrão — estavam lá o Bruno, o Emilinho e até o Cassiano, com lances e mais lances; consegui enrolar todos eles, parecia uma das nossas brincadeiras de infância. Aquele lote é muito bom e agora é meu.

         O capataz voltou ao barracão para buscar o trator. De longe avistou a prosa animada, achou o momento oportuno, teria o álibi necessário, que o forçou a apressar o passo; quase corria ao passar pelo tronco de onde arrancou o machado e, com ele erguido, seguiu pelas costas do homem que não compreendia a expressão aterrorizada da mulher, que perdera a voz. Já no primeiro golpe o outro tombou, a nuca rachada, a lâmina ali presa. Dava os últimos suspiros com o nariz enfiado na terra que tanto amava. O sangue esguichava mesclado com nacos de massa cinzenta, represado numa poça macabra. Convulsões provocavam movimentos no corpo ferido; o matador, desatinado, catou a foice encostada na parede e com movimentos largos cortou os membros, para cessar aquelas evoluções perturbadoras. Uma mocinha assustada veio de dentro:

         — O que é isso! Pai, o que está fazendo? —abraçada à mãe, ambas desesperadas clamavam por Deus, por todos os santos.

         O serviço estava feito. Jeremias desemborcou o toco restante; retirou-lhe o celular da camisa e ligou para o 190.

         — Acabei de matar um safado aqui na Fazenda Esperança. Se quiserem me prender, venham logo antes que eu faça mais estrago...

 
  “Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias.”
 Mateus 15.19


 
 
 
Tema: TRAIÇÂO
Este conto fez parte do Dtrl 28, mas como foi considerado como “não terror”, portanto, agora postado nos contos de suspense. 


Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 20/08/2016
Reeditado em 24/08/2016
Código do texto: T5734422
Classificação de conteúdo: seguro
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