O MISSIONÁRIO

Em local ermo de uma cidade qualquer uma alma era entregue aos braços do Pai.

Carmelo tirou do bolso um grande rosário e iniciou as orações que sempre fazia naquelas ocasiões. Deitado no asfalto um moribundo e ensanguentado homem pedia clemencia nos seus derradeiros momentos. O padre estava ali para auxilia-lo nessa passagem, pois esse era o acordo. Sua missão sempre foi mostrar aos homens o caminho da salvação. O agonizante tentou dizer algo; seus olhos assustados denunciavam a surpresa e a certeza de que teria poucos minutos. O sangue que corria por seu corpo estava se esvaindo pelo ferimento no pescoço. Certamente sufocaria nesse meio tempo engasgado com o próprio sangue. A morte viria em minutos. Talvez menos.

Assim que finalizou sua breve prece Carmelo declarou: “Pai, a Ti entrego o Teu filho”. Dito isso cravou a lamina no peito do sujeito. A ação foi rápida. Não era a primeira vez que fazia aquilo. Estava consumado. O morto ganharia o céu.

Foi na sacristia que o assassino recebeu sua primeira missão. Estava em momento de adoração ao Senhor quando ouviu a voz divina dizer-lhe que havia sido escolhido devido a sua vida de entrega, humildade e oração. Deus tinha um plano e contava com a sua ajuda para coloca-lo em pratica. Na ocasião o Pai revelou a Carmelo que o fim estava próximo, que grandes tribulações afetariam o mundo e que por esse motivo era chegado o momento de recolher as almas dos filhos amados, pois esses não deveriam perecer nas provações anunciadas no Apocalipse.

Carmelo de inicio não se sentiu preparado para tal responsabilidade. Era um velho e devido a seus 75 anos não se sentia habilitado para a função. O Senhor, porém tirou as duvidas de seu coração lembrando-o que Ele era o Deus que capacita os escolhidos, o mesmo Deus que fez o pequeno exército de Gideão invencível, que tornou José de escravo a rei do Egito e ainda habilitou Moisés para conversar com o faraó. O velho convenceu-se de que não deveria temer, pois o Senhor estaria com ele e se eram esses os designíos e a chance de provar a sua fé deveria obedece-Lo, afinal Ele era o Alfa e o Ômega, o conhecedor de todas as coisas e que ofereceu seu Filho para expiação dos pecados. Agora era o momento de Carmelo se sacrificar obedecendo ao chamado e cumprindo a missão.

Desde esse dia o padre Carmelo saia quase todas as noites de sua casa sacerdotal e perambulava pelas ruas vestido com seus trajes típicos até encontrar o homem a qual Deus lhe direcionava. Claro que qualquer um que visse o pároco caminhando sozinho pelas vias escuras não desconfiaria tratar-se de um assassino missionário. As vítimas inúmeras vezes lhe ofereciam ajuda ou pediam-lhe a benção, ludibriadas pela simpática figura do idoso.

Um psiquiatra reconheceria no padre evidencia de um transtorno mental com alucinações auditivas e delírios de grandeza se tivesse a chance de examina-lo. Carmelo provavelmente desconfiaria de qualquer diagnostico e pediria a compaixão divina por esses "homens de ciência" incapazes de reconhecer um milagre e de entender que ele, Carmelo, era o novo profeta a quem Deus se revelou. O padre às vezes pensava se o próprio bispo da diocese acreditaria nele. Se sim, de certo ficaria orgulhoso, mas caso contrário poderia afasta-lo da homilia. O velho evitava o orgulho, deveria guardar a humildade e, além disso, não contar a ninguém, pois era um segredo. Parte do acordo entre ele e o Salvador. Sem conhecer sua real condição restava ao pároco agir como acreditava correto.

Seguia os planos do Senhor, pensava Carmelo. Os homens bons indicados conheceriam a graça de se salvarem sendo retirados desse mundo de profanação. Ao padre, como devoto e obediente às vontades de Deus que era, cabia à missão de ser um bom pastor e por isso juntava e recolhia as ovelhas. Na sequencia pagaria penitencia e ficaria a espera de novas ordens. Tinha fé que viriam e esperava a hora que seu Deus pediria seu próprio sacrifício. Ficaria feliz em obedece-Lo na certeza de que foi usado para cumprir a Sua Vontade.

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P.S: Não é intenção do autor ofender nenhuma religião, mas sim narrar um possível quadro de psicopatologia: Transtorno psicótico com delírios e alucinações e que podem acometer qualquer pessoa, inclusive (e porque não?) os padres.