Até Onde o Céu Alcança

Durante duas noite e um dia, Malaka navegou no pequeno barco pesqueiro, junto de não menos de trinta outras pessoas, todas fugindo do Iêmen. Entre elas estava Bahir, seu irmão mais velho (de dezenove anos, sete anos mais a mais que Malaka) e único parente. Fugiam para a Croácia.

O barco azul escuro de tintura descascada possuía, normalmente como lhe convém, um porão e lá os homens passavam as noites, procurando abrigo do frio e da chuva. Mas somente os homens, não havia espaço suficiente para todos. Bahir porém não os acompanhava, preferia cuidar de Malaka, mesmo durante o frio da noite. Estas eles passavam juntos no convés, e olhavam para as estrelas, que brilhavam mais no meio do oceano do que nas cidades. A chuva que caia era fraca, se confundia facilmente com as gotas que fugiam do mar para encontrar seus corpos, por sorte tinham vestimenta suficiente para não sofrer tanto com o frio, diferente das outras mulheres com que dividiam o convés. Em sua primeira noite, logo após embarcarem, todos os homens desceram com pressa para o porão, Malaka e Bahir estavam cansados da longa caminhada que fizeram durante todo o dia, se abrigarão sob as estrelas e lá ficaram juntos, cercados por tantos, mas sozinhos.

- Bahir, por que você não dorme no porão com os outros homens ? – Perguntou a garota

- Se eles te deixassem ficar lá também... – Respondeu com uma voz carregada de cansaço e sono.

Notando o peso com que o irmão falava, decidiu deixa-lo em paz nesta noite. Contudo, a quietude que manteve não foi o suficiente para deixa-la dormir, e logo sua mente pôs-se a viajar por lembranças antigas, procurando por dias felizes em meio as conturbações pela qual passava.

Enquanto olhava a lua, que estava distante e possuía pouco brilho naquela noite, se lembrou da mãe, no ultimo dia em que a vira. Parecia tanto tempo, anos, mas na verdade fazia apenas alguns dias. A mãe a enfeitava toda com anéis, pulseiras e colares, feitos de ouro e prata, enchia-a do mais doce perfume e a vestia com bela seda. Ambas tinham lagrimas nos olhos, e a mãe de Malaka dizia e repetia a cada joia que colocava na filha:

- Tão linda minha menina, tão pura – E novamente chorava, varias e varias vezes.

E agora, deitada sobre o convés do barquinho, quando Malaka via o céu incrustado de estrelas, lembrava-se do véu incrustado de pequenas pedras brilhantes, tão brilhantes quanto os astros podiam ser, o último adorno que a mãe lhe dera no dia de seu casamento.

Passara mais algumas horas pensando na mãe antes de dormir, nas duas irmãs mais novas e nas tias, mas não no pai, nunca no pai. Pensara neles até adormecer.

Durante o dia não havia muita distinção de gênero, e tanto os homens quanto as mulheres dividiam a proa procurando raios de sol, que em meio ao inverno acudia-lhes o rosto com seu breve calor, breve pois nesta ocasião haviam muitas nuvens no céu, de forma que as sombras frias eram mais comuns, e também obviamente menos queridas.

A única refeição que recebeu no dia (servida ao meio dia, quando a fome já lhe fazia sofrer de dor a algumas horas) foram algumas poucas e finas fatias de pão, junto de um copo plástico cheio até a boca de água, entregue de forma rude pelo ajudante do capitão. Mas como descobriu mais tarde, o capitão em si era um dos homens mais cavaleiros do barco, a verdade era que ambos, ajudante e capitão, formavam um estranho contraste.

Como é muito raro nos dias de hoje, neste barco de refugiados a única criança era Malaka, que depois de fazer sua refeição foi sozinha para a popa, com seus braços finos e morenos sobre as barras de segurança, a água batendo aos pingos em seu rosto (a única parte de seu corpo descoberta), mas sem se importar, na verdade sentia um leve prazer.

Quando o capitão veio a popa falar-lhe ela estava sozinha em meio a tantas outras mulheres, que assim como Malaka tinham seus corpos cobertos por vestes negras, que davam a impressão, se vistas de longe, de que o navio era uma embarcação fúnebre. Seu nome era Latif e trouxe para a garota uma pequena bola vermelha, tão pequena que cabia inteira em sua mão, disse que era o único brinquedo abordo.

Brincaram um pouco com a bola e depois Latif a convidou para conhecer a sala de comando, e lá durante toda a tarde os dois conversaram, ele a falava sobre sua esposa e seus filhos, como haviam abandonado o islamismo e hoje Sabah, sua mulher, faz parte de um grupo que busca um mundo em igualdade para homens e mulheres. Quanto a religião, não tinham nada certo, já haviam frequentado a católica, a protestante e até mesmo a ortodoxia, mas ainda não haviam se decidido. Também conversaram sobre musica, politica (se mostrou muito surpreso por Malaka conhecer tanto do assunto), cinema e literatura. Momento antes do pôr-do-sol, a garota falou sobre seu irmão:

- Bahir não acredita em Ala, na verdade eu acho que ele não acredita em nada, eu o ouvi gritando isso para nosso pai antes de fugimos. Foi no dia de meu casamento, os dois gritavam bastante, por sorte o noivo ainda não havia chegado, Bahir dizia “Pai, ela é uma criança, você não pode vende-la como se fosse carne” e papai respondia “É minha filha, eu faço o que eu quiser, quando você for pai ira fazer do seu jeito, agora deixe-me fazer do meu”, mamãe chorava muito, e eu ouvia tudo de dentro de meu quarto, depois da discussão eu ouvi também o barulho abafado de golpes e de coisas se quebrando, depois disso, por alguns instantes tudo ficou silencioso, foi quando Bahir abriu a porta de meu quarto com violência, seu rosto estava vermelho e inchado e ele disse “Vamos rápido Malaka, antes que seu noivo chegue”. Nós dois não estamos fugindo da guerra, estamos fugindo de nosso pai e de meu noivo – Concluiu a garota com lagrimas nos olhos ao se lembrar da mãe.

Latif a ouviu atentamente, olhou para o mar a frente e passou alguns segundos em silencio, e a primeira coisa que disse foi uma pergunta, se Malaka gostaria de pilotar o barco, o que a garota aceitou encantada, e lá ficaram, em completo silencio até o sol cair totalmente na linha do horizonte e o céu tornar-se escuro. Após algumas horas Malaka sai a procura do irmão, e encontra-o deitado novamente sobre a proa, com os olhos abertos, fincados e perdidos nas estrelas, com anormal interesse, era como se Bahir buscasse nelas conforto e respostas para seu futuro incerto ao lado da irmã. Um olhar perdido de um homem que perdeu tudo.

Malaka apenas sentou-se ao seu lado, com os braços em torno dos joelhos e olhando o céu junto de Bahir, conseguiu ver entre as constelações que ao amanhecer chegariam na Croácia, viu também muitas coisas incertas, coisas indecifráveis para uma menina de doze anos. Mas antes mesmo que percebesse as lagrimas que caiam de seus olhos, a chuva fraca, igual a da noite passada, já se misturava a seu corpo e as disfarçara. E assim continuou por toda a noite, os astros foram-lhe pai e mãe, amigo e amante, trocaram sonhos e segredos por horas a fio e quando acordou na manhã seguinte, não conseguira se lembrar de ter ao menos dormido.

O irmão a sacudia, seu rosto carregava um sorriso escondido a tempo “Acorde Malaka, estamos quase chegando” dizia ele “Olhe, depois daquela grande pedra que cobre nossa visão da praia, lá iremos desembarcar”. A menina animou-se, não mais do que os outros tripulantes que fugiam de outros motivos, fugiam da guerra e da fome. A medida que o barco se aproximava, via cada vez mais perto de si o futuro prometido pelas estrelas, um novo começo, onde cassar-se-ia somente se quisesse, com quem ama-se, um pais longe da guerra e do fanatismo, um pais em que ela seria igual a qualquer outra pessoa.

Era isso o que via sem olhar, o que vislumbrava antes de chegar a praia, o que via através da grande pedra. Mas enquanto o barco se aproximava mais e mais da costa, enquanto ele manobrava a grande pedra, a visão sonhada se mostra diferente, se mostra menos real da que Malaka imaginava, a visão que agora tem é um tanto quanto deprimente, um tanto quanto realista. Uma costa com milhares de pessoas, pessoas com os corpos molhados e cobertos pela lama causada pela insistente chuva, elas disputavam violentamente pela pequena quantidade de comida recebida por homens armados, homens que cercaram uma grande parte da costa com arame, os imigrantes eram prisioneiros de um sonho de liberdade. Mais se aproxima, mais nítida a visão ficava, idosos de cadeira de rodas atoladas na lama, crianças magras com olhares vazios em direção a cerca, bebes deitados em farrapos estendidos no chão enlameado. Um pedaço de terra, longe de sua casa, onde os homens ainda se sentiam, por motivos religiosos, mais importantes que as mulheres, eram eles que primeiro pegavam o pão. E foi nesta praia que o navio aportou.

Vinícius R F Silva
Enviado por Vinícius R F Silva em 18/03/2017
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