A Herança

Ele estava nervoso. Batia os dedos na beira do sofá de modo impaciente. Aquele consultório completamente branco e estéril, cheirando a antisséptico lhe dava arrepios.

Nunca fora adepto a médicos e a essas modernices todas, achava coisas de gente fraca e fresca e ele era um grosseirão por natureza, forte como um cavalo. Porém há três anos sofrera um acidente ao qual milagrosamente fora o único sobrevivente. O carro que guiava,  bateu num muro de contenção em uma curva. Além de embriagado estava muito além da velocidade permitida. O choque  fora tão violento que o carro se partira em dois. Ele ficara preso entre as ferragens e passara um ano inteiro internado, metade deste em coma. O amigo que estava de carona, no entanto, não tivera a mesma sorte, fora reduzido a pedaços, que precisaram ser recolhidos ao longo da estrada.

Recuperara-se consideravelmente bem e lembrava pouca ou quase nada do acontecido. Sentira-se terrivelmente culpado por estar guiando bêbado e o remorso às vezes roía suas entranhas, perdera um amigo e camarada de longa data.

Depois dessa tragédia tudo aconteceu em sua vida como uma bola de neve. A esposa o abandonara, a filha lhe dera uma neta e ele não fora se quer informado. Passara a ser uma pessoa não aceita no seio familiar. Começara a beber com muito mais frequência e se tudo isso não bastasse, pesadelo terríveis se iniciaram, fora por esta época também, que as dores começaram. Uma dor pungente e permanente no pescoço,  havia dias em que até o ato de virar a cabeça lhe era penoso. Era uma dor cruciante que descia pelas costas e se irradiava em seus membros inferiores. Era um frêmito de dor que pareciam  se estender por horas a fio, e nada que fizesse parecia aliviar toda dor e peso que sentia. Era tanto e tão intensa e o afligia de tal modo que parecia curvá-lo quando andava.

O médico fora atencioso fizera os exames preliminares, argumentou a hipótese de alguma sequela do acidente ou que todos os anos que trabalhara no porto como estivador, pudesse ter massacrado sua coluna. Achara razoável fazer exames mais aprofundados. E foi então que eles começaram. Foram exames, ressonâncias e tantos outros que ele nem sabia pronunciar o nome, alguns dolorosos outros apenas incômodos, mas necessários.

Por isso estava ali agora, para saber o que o estava afligindo por tanto tempo e esperava que o tratamento a que fosse encaminhado o curasse. Entretanto, para sua surpresa todos os resultados estavam normais, por fim não havia nada de errado com ele. Estava tão forte como sempre fora de acordo com aquele amontoado de papéis. O médico fora sucinto ao explicar-lhe isso e acabara de dispensá-lo rapidamente com a receita de um analgésico.

Não ouve, porém alivio em sua fisionomia, ao contrário, ficara ofendido. Acaso já não estava tomando analgésicos e nada melhorava aquela dor e aquele peso insuportável? Estaria o médico pensando que ele estava fingindo sofrer aquele martírio? Não havia a menor possibilidade de aqueles exames estarem certos ou daquele médico incompetente tê-los decifrado e ter feito um diagnóstico correto de seu estado de saúde.

- Seu charlatão de araque!

Insultou o médico, saindo do consultório num alarde de palavrões e gritos. Os pacientes que estavam na sala de espera se assustaram e alguns chegaram a levantar de seus lugares assustados.

As semanas passaram e a dor insuportável  não dava trégua. Ele se esforçava como nunca para fazer seu trabalho e cumprir sua meta, mas tinha momentos que precisava parar para se recompor. O peso em suas costas não o deixava ficar ereto. Nem todo o empenho no entanto o poupou e fora dispensado do trabalho sem premeios, quando seu rendimento baixara. Passara uma semana bebendo e em depressão até conseguir emprego em uma velha e antiga madeireira.

O cansaço e a carga que carregava, no entanto lhe acompanharam, e ele tentava fingir que não sentia nada. O resultado é que dia após dia estava se entupindo cada vez mais de remédios para dor. E o pior que isso não o fazia se sentir melhor.

Num dia de cansaço extremo, em que estava sentado em uma tora no chão cheio de serragem e fumava um cigarro atrás do outro, um rapaz que vira por ali se sentou ao seu lado e disse-lhe em voz baixo como se proferisse um segredo.

- Minha avó consegue resolver seu problema.

O olhar duro que ele lhe dirigiu não intimidou o rapaz.

- Ela esteve aqui outro dia, quando veio me trazer o almoço. Ela pode te ajudar.

Não respondeu, jogou o toco de cigarro no chão e o apagou com a ponta da bota surrada. O que o garoto esperava? Que tivesse reparado numa velha? O que ela poderia saber sobre ele?

- Sua avó não sabe de nada. O que ela teria para me dizer?

- Ela pediu para você ir vê-la, ela pode curar o seu mal.

Ele suspirou fundo antes de falar com a voz grossa e áspera.

-Mas que porra ela quis dizer com isso? O que uma velha bruxa poderia fazer por mim?

O garoto ao contrário do que ele esperava sorriu, levantou-se calmamente e se afastou em silêncio.

Os dias seguiram e ele parecia estar cada vez pior, na verdade sentia que estava tão doente que se sentia meio paralisado às vezes. Tornou-se apático, quando estava em casa ou estava bêbado ou dormindo devido a embriaguez. Constantemente era preciso que um amigo o levasse da sarjeta para o barraco que chamava de casa.

Os pesadelos eram constantes, anômalos, e ele acordava trêmulo e suando, parecia meio sufocado e um terror se apossava dele de modo sobrenatural. Resolveu procurar um médico da cabeça, como disse ao patrão quando informou que não iria trabalhar naquele dia.

Fora encaminhado a terapia e recebera mais remédios para dor. O que estava acontecendo com ele afinal? Estaria ficando louco? Será que estava com uma doença que não conseguiam descobrir? Começara a ter tremores, não sabia se era resultado dos comprimidos ou se de temor do que estaria acontecendo. Temeu por sua vida. Talvez estivesse morrendo! Resolvera telefonar para a filha, se iria morrer queria que ela soubesse. Ela fora ríspida, ficara um pouco compadecida com a saúde do pai, mas não o suficiente para ir se encontrar com ele.

Desligou o telefone com um palavrão e por pouco não o quebrou ao atira-lo contra a parede. Não precisava da filha, não precisara nunca de ninguém. Não iria se prostrar. Estava doente, não derrotado, iria superar isso como superara tantas coisas em sua vida. Mas a noite no escuro do quarto e no silêncio da casa sentia que não era tão forte assim, havia aquela sensação constante que agora o espreitava o tempo todo. Como se estivesse sendo acompanhado, e observado de perto. Estaria desenvolvendo alguma paranoia?  Até  ele em sua ignorância sabia que alguma coisa anormal estava acontecendo. Pensou no que aquele garoto lhe dissera: “Minha avó pode curá-lo”!

Andara assuntando aqui e ali como quem não quer nada e descobrira a fama que a velha tinha, era a bruxa do condado, vivia isolada e poucas vezes saía de sua cabana. O povo a temia, mas de modo algum se punha contra ela ou suas artes mágicas.

Resolveu ir vê-la. Não tinha nada a perder já que os médicos não conseguiam diagnosticá-lo quem sabe uma simplória velhinha com um chá e algumas rezas o fizesse.

Ele era conhecido como um homem duro, frequentador do botequim, respeitado por suas brigas em que sempre saia vencedor, preferia manter sua pose e fama de punho de ferro, iria apenas ao cair da noite. Jamais admitiria que estivesse precisando da ajuda daquela velha.

Pensou que estava preparado para tudo na vida, mas quando chegou àquela cabana caindo aos pedaços no meio do nada percebeu que nada o havia preparado para aquilo.

Ela já o esperava e abriu a porta antes dele bater. Indicou uma cadeira perto de uma mesa gasta, escura e cheia de veias feitas por anos de cortes e uso. Foi até um velho fogão e jogou algumas achas de lenha, fazendo as brasas saltarem e arderem com mais intensidade. A água de uma chaleira preta já fervia. Ela misturou algumas ervas em um caneco e proferiu algumas palavras que ele não conseguiu entender, derramou a água fervente em cima e imediatamente uma fumaça azul e dançante subiu até o teto, um cheiro ardente que preencheu a sala e arranhou suas narinas, se fez presente.

Mancando ela andou até uma cadeira em frente a ele e sentou com um baque. Empurrou o caneco para perto dele e mandou que ele bebesse aquele liquido turvo.

- Beba. Sua voz tinha uma ondulação estranha que parecia ecoar dentro de sua cabeça como se suas palavras não precisassem ser proferidas para ele entende-las.

- Você sabe o que eu tenho? Isso irá me curar?

Ela pôs os dedos nos lábios em sinal de silêncio. Ele queria ver seu rosto, mas a luz da vela que bruxuleava estava atrás dela e seu rosto mantinha-se na sombra. Ele olhou o chá fumegante e pensou que se beber aquilo era o preço que precisava pagar para ficar sã novamente faria isso. O que tinha a perder afinal? Bebeu o liquido amargo como fel com dificuldade no primeiro gole. Tossio em desespero no segundo e quando fez menção de tirar à caneca da boca a mão dela o impediu e o forçou a continuar tomando aquilo com aquele gosto nauseabundo, entornou todo o conteúdo que desceu como se fosse fios de quiabo na garganta em chamas.

Ele se recompôs antes de falar e precisou segurar os engulhos que teve.

- Só isso? Agora estou livre do meu mal?

A risada que a velha senhora deu, arrepiou seus pelos e sentiu um medo descomunal. Uma risada que mais parecia um relincho que reverberou pelo pequeno cômodo e penetrou até sua alma.

- Com este chá? Acredita que apenas isso seria capaz de curá-lo?

Ele ficou sem ação, por um instante pensou que não conseguiria proferir as palavras que se enrolavam em sua língua. Estaria aquele chá envenenado?

- Pensou que um simples chá de algumas erva pudesse livra-lo de seu destino? A voz era arrastada e feia como uma aranha que se arrasta inquieta pela teia delicada, buscando a presa que não pode fugir. Outra sessão horrível de risada.

- Então porque me deu o chá?

- Hospitalidade. Nova onda de risada preencheu o ar.

Seu rosto transformou-se em uma carranca de ódio, seus olhos vermelhos e injetados.

- Sua velha desgraçada!

Ele levantou num repente e sua cadeira foi ao chão, o barulho parecendo uma árvore caindo, no silencio que fazia.

- Sua velha maldita e...

Ela chegou-se mais para perto dele por cima da mesa e proferiu com clareza uma única palavra, mas com ênfase suficiente para que ele obedecesse.

- Senta.

Lá fora um coiote uivou como se temesse a ordem daquela bruxa.

- Acha que pode vir aqui com toda essa sua arrogância e livrar-se do que o incomoda? A resposta não é tão simples assim. Estamos apenas começando. E creia-me o caminho não será tão fácil assim.

Outra risada daquelas e ele sabia que nunca mais pregaria os olhos. Estaria dentre de um pesadelo que não conseguia acordar?

- Escute com atenção e não me faça repetir. Se quiser se livrar desse peso, você fara exatamente o que eu disser e então, só então, eu lhe direi se posso curá-lo.

- O que eu tenho?

- Sem perguntas. Se atente as minhas palavras. Aproxime-se!

Ele chegou mais perto e sentiu o hálito pestilento de sua boca. Ele ouviu com atenção tudo que ela tinha para lhe dizer e sentiu-se hipnotizado pela cadencia da voz horrível dela, seu cheiro de coisa velha e mofada. Sentia arrepio em cada vibração de sua voz. Ela era feita de algo muito mais duro que ele. Fizera-o decorar um mantra e dera-lhe um saquinho roto, costurado com alguma coisa dura dentro.

- Este amuleto precisa ser enterrado junto aos restos de seu amigo.

- Que amigo?

Ela o encarou e sussurrou:

- Aquele que estava com você no acidente.

- O que isso tem a ver com minha saúde?

- Eu disse sem perguntas. Volte aqui depois. A sua sessão por hora acabou!

Ela pegou a vela e colocou entre eles, só então ele reparou que ela não tinha olhos. Apenas buracos nas orbitas vazias.

Saiu daquele lugar como se o próprio mal estivesse atrás dele.

Aquele homenzarrão que fora, agora estava curvado e cansado. Por vezes desejou fazer o que a velha lhe dissera para ver o que aconteceria, tinha o amuleto em uma gaveta em seu quarto. Ás vezes o cheirava. Queria saber o que tinha dentro, mas não tinha coragem de abri-lo. E se a velha soubesse? Ao mesmo tempo se recriminava como poderia ela saber? Além de cega era apenas um velha. Por outro lado seu instinto dizia que precisava tomar cuidado havia uma força naquele ser horrendo.

Certa noite acordou ouvindo sussurros. Pensou que fazia parte de seu pesadelo, mas estava acordado tinha certeza, seus olhos arregalados estavam fixos no teto e só viam o escuro. Parecia ouvir um choro e entre o choro murmúrios ininteligíveis. A sensação era terrível, estava paralisado de puro medo. Sentiu lágrimas nos olhos de pavor. Mas assim como começara acabara e ele ficou se perguntando se ouvira mesmo aquilo ou se era apenas outro pesadelo que teria tido. Sem dúvida muito mais real que os outros.

Pela primeira vez em sua vida tinha medo, medo verdadeiro.

Cansado e cercado pelo incerto resolveu fazer o que a velha bruxa lhe dissera.

Esperara a lua certa, pegara o amuleto e fora para o cemitério, o único do vilarejo, e sob a luz minguante encontrara o anjo enorme que guardava a lápide abandonada. O mato quase a escondia por completo. Ficara alguns segundos parado em silêncio completo apenas observando o vento vergar o capim que crescia ao redor. Depois com vontade cavara toda a terra que precisava, não teve dificuldade em abrir a tampa velha do caixão e os ossos que viu não lhe transmitiram qualquer sentimento, nem de repulsa ou simpatia. Repetira o mantra e enterrara o amuleto entre os ossos do que fora seu amigo. Uma coruja voou baixo e piou como que o expulsando do lugar que não lhe pertencia, o vento se fizera mais forte e ele sentiu como se estivesse sendo observado todo o tempo em que trabalhou. Enfim estava feito. Havia alivio em seu rosto e ao dirigir-se a casa da velha bruxa ainda sujo de terra e suor, estava feliz pela primeira vez a muito tempo.

O velho casebre estava no escuro e a porta não se abriu como da outra vez. Ele precisou bater insistentemente para que a velha aparecesse. Mas ela não lhe deixou entrar, ficou parada no batente da porta obstruindo a passagem e a pouca luz que vinha de dentro. Estranhou a diferença com que estava sendo tratado daquela vez e até pensou se ela não estaria troçando de sua cara, inventando tudo aquilo.

- E então, pode me dizer agora o que havia comigo, estou curado?

O grito estrondoso que saiu das entranhas daquela mulher pegou-o de surpresa e pareceu cortá-lo ao meio. O coiote calou-se ao longe.

- Saia daqui e não volte mais! Você nunca ficara livre. Você não pode. Saia!

O que seguiu depois foi um choro convulsivo e lamentações por parte da velha senhora, não era mais a aranha, agora parecia a presa pega na teia.

- Eu não entendo. O que foi...

- Ninguém pode ajudá-lo.

Outra profusão de palavras estranhas e arremedo de risada misturada a sussurros chorosos.

Ela jogou algumas ervas no alpendre da porta e entre gritos insanos o expulsou.

Foi embora sem olhar para trás. Não conseguia entender o que acontecera, nem pretendia entender. Sentia-se novo, forte e bem. Seja lá o que acontecera naquela noite ou o que aquela velha doida fizera, não lhe interessava mais. Não havia mais pesadelos e poderia conviver muito bem com o peso nas costas já que não havia mais dor alguma.

Daquele dia em diante era como se sua sorte houvesse mudado. O patrão lhe ofereceu uma sociedade na firma e a filha lhe telefonara dizendo que iria lhe fazer uma visita e levaria a neta para conhecê-lo. Se não fosse o cansaço que ainda sentia nas costas, nunca mais se lembraria do que lhe acontecera. A dor fora embora. Procurou o rapaz, neto da bruxa, para agradecer-lhe e saber se podia ajudar de alguma forma, mas foi informado que não estava trabalhando mais ali, não havia endereço informando onde estaria agora.

Quando a filha veio lhe visitar, estava morando em uma casa bonita e limpa, e até chegou a impressioná-la com seus modos educados, parecia realmente um novo homem. Parara de beber e estava finalmente prosperando.

A visita da filha marcava um novo marco em sua vida e apaixonara-se pela neta, cobrindo-a de mimos. Dera a ela uma boneca de presente, mas essa sem preâmbulos não aceitou, afastando-se dele sempre que se aproximava dela. Ele não ficou ressentido, daria tempo para a pequena acostumar-se a ele.

Pai e filha se despediram, ambos se abraçaram longamente. Iriam recuperar o tempo perdido e passariam a se ver com mais frequência. Tudo finalmente ficaria bem.

Quando estava indo embora, a mãe olhou a filha pequena e viu que ela estava abatida, pegou-a nos braços e a levou até o carro. O avô lhe acenava da porta freneticamente, com verdadeira alegria. Mas ela apática não lhe retornara o aceno. A mãe lhe repreendeu.

- Querida seu avô está realmente tentando. Você não foi gentil com ele. Prometa ser boazinha da próxima vez.

- Fiquei com medo. Terminou a frase com um tremular nos lábios rosados de criança e com os olhos assustados.

- Ora, mas que absurdo! Com medo de seu avô? Ele foi tão carinhoso com você e tentou lhe agradar.

- Não mamãe, não fiquei com medo do vovô. Fiquei com medo daquele homem que ele estava carregando nas costas.

Tânia Mara Paula
Enviado por Tânia Mara Paula em 21/05/2017
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T6005362
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