A BELA DA NOITE

Baseado em uma lenda urbana

Maurício saiu de casa perto das oito horas da noite. Era o horário que gostava de trabalhar. Quase não havia trânsito e ele se sentia fascinado ao percorrer as avenidas com pouco movimento. O perigo de sofrer algum tipo de violência também era real, porém o rapaz não tinha medo de muita coisa. Ele mesmo dizia para os amigos que se considerava um “valentão”.

O primeiro passageiro da noite fez sinal em uma esquina. Os cabelos louros cacheados e o vestido branco comprido logo lhe chamaram atenção. Mesmo que a moça não fizesse qualquer sinal, ele iria passar devagar somente para admirá-la. De longe a jovem era interessante, de perto era simplesmente linda. Maurício parou junto ao meio fio e a moça abaixou-se um pouco para perguntar:

- Está livre?

A voz era cristalina e com um toque triste. Maurício sentiu o coração acelerar.

- Claro. Entre, por favor.

A moça loura se instalou no banco de trás. Encarando-a pelo retrovisor, Maurício indagou, polido:

- Para onde você quer ir?

Ela não respondeu imediatamente. O olhar perdido acentuava sua beleza. Depois de alguns segundos, a jovem, enfim, indicou:

- Cemitério da Misericórdia.

Maurício deu partida no carro perguntando a si mesmo quem teria morrido. Um amigo? Parente próximo? Algum namorado do passado? Sempre discreto, Maurício não cansava de observar a moça pelo espelho interno. O olhar dela continua distante pousado no vidro lateral da janela. Maurício não tinha certeza se a jovem mirava os prédios altos que passavam rapidamente. Ela, definitivamente, parecia alheia a qualquer coisa.

Contudo, Maurício desejava saber quem era ela. Sua beleza a impressionou de tal forma que seu coração já sofria quando pensava que talvez nunca mais a visse depois que terminasse aquela corrida.

- Parece que vai chover – comentou ele olhando algumas nuvens que se formavam. - Cuidado para não se molhar!

O rapaz tentou, ansioso, puxar algum tipo de assunto e ainda fazer graça. Talvez desse certo. Ou, na pior das hipóteses, ela o achasse um babaca.

A moça, no entanto, esticou os olhos para cima e murmurou:

- É verdade.

A voz nada mais era que um suspiro. Maurício tentou de novo:

- Você não trouxe uma sombrinha?

Lá atrás a garota sorriu levemente.

- Não.

- Olha, eu tenho um guarda-chuva no porta-luvas – Maurício abriu o compartimento. Se sentia um pouco tolo tentando chamar atenção da desconhecida. - Posso emprestar para você.

Os olhos azuis da jovem se focaram no rosto amistoso de Maurício através do espelho.

- Acho que não vou precisar.

- Nem eu. Sabe, fico aqui dentro do carro a maior parte do tempo. Se você quiser...

Ela sorriu outra vez, mas ficou em silêncio. Maurício continuou o percurso tamborilando os dedos no volante. Não faltava muito para o destino final e o coração apertou. Não queria que a moça fosse embora sem ao menos saber seu nome.

- Posso lhe perguntar uma coisa? – Maurício buscou contato visual ainda pelo espelho retrovisor. Não costumava agir assim com seus clientes. Sempre fora profissional e prudente. Só falava quando o passageiro puxava assunto. Mas desta vez não conseguiu se controlar. E nem queria.

A garota o olhou. Não parecia surpresa com a impaciência do motorista.

- Sim?

- Qual seu nome?

Ela demorou um pouco para responder. Antes olhou novamente pela janela e, quando Maurício já se conformava que não obteria resposta alguma, a voz suave da moça respondeu:

- Amanda.

- Amanda – repetiu Maurício como se um sopro de ar fresco tivesse sido jogado em seu rosto. - Belo nome! Eu me chamo Maurício. Muito prazer!

Amanda não disse nada. Maurício esperou, em expectativa, que ela falasse alguma coisa. Mas o silêncio permaneceu. Faltavam apenas algumas quadras para chegarem ao cemitério e, pelo visto, Maurício não teria mais progresso nenhum.

Raios e trovões cortaram o céu quando ele parou frente ao grande portão de ferro do cemitério mais antigo da cidade.

- Olha – Maurício apontou para o céu tentando descontrair o ambiente. - Vai mesmo chover. Não quer meu guarda-chuva? Tem certeza?

Amanda, contudo, aproximou-se do vão entre os bancos e ficou tão próximo de Maurício que ele pôde sentir o perfume suave dos cabelos dela.

- Você tem papel e caneta?

Maurício se empolgou. Talvez Amanda fosse lhe passar o número do celular. Ele estendeu a ela um bloquinho e tirou uma caneta de dentro do porta-luvas. Lançou seu melhor sorriso e disse:

- Está aqui.

- Obrigada.

Ele bem que tentou disfarçar a ansiedade. Olhou para as mãos, fingiu espreitar o céu que parecia cada vez mais ameaçador e apertou o volante. Amanda levou uma eternidade para registrar o número do celular no papel. Uma gota de suor escorreu pelas costas dele no exato momento em que sentiu um toque macio e frio no seu braço.

- Maurício...

Seu nome dito pelos lábios dela eram notas musicais. Ele se voltou com um sorriso mais aberto e pegou o papel que Amanda lhe estendia.

- Passe amanhã neste endereço – ante o olhar atônito de Maurício, Amanda prosseguiu. - Estou sem dinheiro agora. Fale com meu pai. Ele lhe pagará a corrida. – ela fez uma breve pausa. - Lamento.

Maurício se sentiu com o coração apertado. Não por não ser pago, mas pela despedida inevitável. Queria o celular dela, o número do Whats. Queria beijar os lábios pálidos de Amanda que, naquele momento, abria a porta do táxi e olhava para Maurício como se sentisse muito de verdade.

Maurício sacudiu o papelzinho e tentou sorrir, decepcionado.

- Bem... é sua casa? Vou ter o prazer de descobrir onde você mora? – talvez não fosse tão ruim. Foi a maneira que ela encontrou de se verem novamente.

Amanda abriu a porta e saiu do carro. Andou alguns metros e parou frente ao portão fechado do cemitério. Maurício inclinou-se sobre o banco do carona e baixou o vidro.

- Amanda? Você tem certeza que veio ao lugar certo? Acho que o cemitério está fechado.

Além dos portões Maurício mal conseguia visualizar as árvores altas e seus galhos que produziam longas sombras. A moça não se mexeu. Permaneceu parada frente ao portão olhando para frente. O vento balançava seus longos cabelos loiros fazendo com que Maurício se sentisse ainda mais fascinado.

- Amanda? Tem alguém esperando você aí dentro?

Silêncio. Maurício desviou os olhos para guardar na carteira o precioso papel que continha o endereço da casa de Amanda.

- Posso acompanhá-la - Maurício abriu a porta e sentiu uma rajada de chuva no rosto. Quando deu a volta no carro e olhou para os portões Amanda não estava mais ali.

- Amanda?

O coração de Maurício disparou. A garota havia desaparecido. Maurício caminhou, atordoado, até o portão de ferro.

- Você está aí?

Maurício segurou com força as grades do portão e olhou para dentro. Estava escuro. Mal podia ver as lápides. Quando um relâmpago cruzou o céu e clareou tudo, ele teve uma rápida visão do cemitério. Mesmo assim não conseguiu visualizá-la.

A tempestade caiu forte e repentina fazendo com que o rapaz corresse de volta para o carro. O lugar era deserto, sombrio e provocou arrepios em Maurício. Não queria ter deixado Amanda sozinha ali, mas talvez realmente alguém estivesse esperando por ela. Bem, não havia muito que fazer. No dia seguinte talvez tivesse condições de conhecê-la melhor e conversar com Amanda mais livremente.

*

A noite não rendeu. Maurício não conseguiu se concentrar no trabalho. Por duas vezes cometeu infrações de trânsito e foi obrigado a pedir desculpas aos passageiros, constrangido. Por volta da meia noite desistiu de trabalhar e voltou para casa. Aquilo nunca havia acontecido. Ele sempre retornava nas primeiras horas da manhã. Perturbado, Maurício entrou em casa e se trancou no quarto. Não tinha sono, não era o seu horário habitual de dormir. Ele deixou-se ficar deitado, com os olhos arregalados, pensando na sua misteriosa passageira. Amanda. Tão bela, tão inacessível, esquiva. O papel com o endereço repousava ao lado da cabeceira com uma pedra de quartzo rosa em cima para que não saísse voando.

A chuva fez com que Maurício pegasse no sono, entrecortado por imagens de Amanda. Ele acordou um pouco cansado perto das onze horas da manhã, ressentido pela alteração do seu horário biológico. Mas tinha uma missão a cumprir. Não era por dinheiro, porém Maurício sentia uma necessidade urgente de ir até o endereço que Amanda lhe dera. Queria falar com ela, perguntar sobre sua vida. Talvez Amanda precisasse de um ombro amigo e por isso escrevera o endereço para ele.

Movido por esta possibilidade, Maurício saiu de casa quinze minutos depois de ter acordado. O lugar ficava no outro lado da cidade e ele levou quase uma hora para chegar.

Era um bairro simples com as casinhas quase iguais. Maurício levou o táxi pelas ruas de pedra até parar frente a uma oficina mecânica. Conferiu o número. Era ali mesmo. A casa ficava na parte detrás do terreno. Maurício saiu do carro e parou frente ao lugar. Um homem com as mãos sujas de graxa, de aproximadamente 60 anos, apareceu para recebê-lo.

- Bom dia, moço.

Maurício se aproximou mais, apertando o papel na mão. Olhou para a casa lá atrás. Esperou encontrar Amanda na janela, mas a única coisa que viu foram duas cortinas brancas balançando suavemente.

- Em que posso ajudá-lo?

- Bom dia, senhor – Maurício não sabia bem como começar. - Ontem a noite fiz uma corrida no meu táxi. E... bem, o passageiro me deu seu endereço para pegar o pagamento.

O mecânico coçou a cabeça como se não estivesse compreendendo muito bem.

- Deram o meu endereço?

- Sim, senhor. Veja – Maurício estendeu o papel a ele. - Talvez seja sua filha.

O homem respondeu duramente antes de conferir o conteúdo do papel.

- Não tenho filha.

- Amanda era o nome dela.

Ele ficou pálido no mesmo instante. Os olhos esbugalhados fixaram-se no papel branco entregue por Maurício. Um minuto inteiro se passou até ele conseguir falar.

- Para onde você a levou?

- Cemitério da Misericórdia – Maurício sentiu um frio na barriga.

- Quanto deu a corrida? – o senhor perguntou pigarreando.

- Quarenta reais.

- Vou lá dentro buscar – disse ele dando meia volta, deixando Maurício parado na calçada.

- Senhor, por favor! Amanda está em casa? – o rapaz perguntou, impaciente. Depois se arrependeu de ter falado daquele jeito. O que o homem iria pensar?

Mas não obteve resposta. O mecânico sumiu no interior da oficina e depois entrou na casa. Voltou cinco minutos depois acompanhado de uma senhora de olhos tristes. Os mesmos de Amanda. Ele trazia na mão as notas de dinheiro. Pediu, muito sério:

- Rapaz, quero que você veja uma coisa.

Maurício encarou a senhora. Ela torcia e retorcia as mãos olhando para ele com expectativa. Uma foto de Amanda foi posta na sua mão. Era um pouco antiga, amarelada nas pontas. Maurício sorriu.

- Sim, foi esta moça a quem eu levei ontem até o cemitério. Ela está bem? Fiquei preocupado em deixá-la sozinha ontem naquela escuridão.

O casal trocou olhares e o homem pegou de volta a foto com alguma brusquidão.

- Ela já vive na escuridão há muito tempo. Então não deve ter medo algum.

A esposa olhou para ele surpresa com as suas palavras duras.

- Olavo, por favor! – ralhou ela com a voz emocionada. Depois se recompôs e voltou-se para Maurício que assistia a cena sem entender muita coisa. - Amanda é minha única filha.

- Onde ela está? – insistiu Maurício novamente, olhando para os fundos da mecânica. - Posso falar com ela?

Olavo quem respondeu, carrancudo:

- Pegue o que lhe devo e vá embora – ele colocou o dinheiro na mão de Maurício com força.

- Desculpe – Maurício chegou a balbuciar, constrangido, enquanto o homem se refugiava no interior da mecânica. Maurício tornou a encarar a mãe de Amanda. - Acho que vim na hora errada.

- Todas as horas são erradas desde que Amanda partiu.

- Para onde ela foi? – Maurício não queria saber a resposta.

- Minha querida filha pôs fim a sua vida há longos quinze anos. Eu... eu não consigo entender até hoje.

A mulher começou a soluçar. Maurício se aproximou dela e a abraçou ternamente. Ele também precisava de um apoio.

- Desculpe ter vindo. Eu não podia adivinhar uma coisa destas.

- Não se preocupe – ela enxugou as lágrimas com um pequeno lencinho. - Então minha filha ainda vaga por aí?

Maurício não sabia o que responder. Era inacreditável que tudo aquilo estivesse acontecendo.

- Parece que sim. Eu a deixei na frente dos portões do cemitério da Misericórdia ontem à noite.

- Ah, ela foi sepultada lá – a mulher fungou. - Minha filha sofreu uma desilusão amorosa e não suportou a dor da perda. Atirou-se do alto de uma ponte e… bom, pelo visto ela ainda não conseguiu descansar. Acho que todas minhas preces não foram suficientes ainda.

Maurício se emocionou, mas disfarçou bem. Ficaria um pouco estranho chorar por uma pessoa que nunca vira antes. Com vida.

- Se você a vir novamente, diga que nós a amamos muito – a mulher implorou com os olhos úmidos.

- Sim, tenha certeza que farei isto.

Maurício não queria ficar nem mais um minuto naquele lugar. Despediu-se rapidamente e entrou no carro. Na primeira sinaleira deu o valor da corrida de Amanda para um garoto que vendia doces entre os veículos. Enquanto trafegava de volta para casa perguntou-se quem tivera coragem de magoar Amanda a ponto de fazer com ela tirasse a própria vida.

Ele iria descobrir.

E Amanda seria vingada.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 03/09/2017
Reeditado em 03/09/2017
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