MORTO VIVO (Cap. 2)

A cidade parou com a comoção pela morte de Kauê. Luana se sentia como em um transe, os olhos perdidos em algum ponto do espaço. Não comia e não bebia há horas e se apoiava nas amigas enquanto o namorado era velado na capela, onde se aglomerava muita gente.

Luana estava sentada em um banco no jardim do cemitério. Não tivera coragem de entrar na capela. Não queria ver Kauê, já lhe bastava a terrível cena que havia se deparado quando ele foi retirado do mar. A mãe dela, Alice, e mais cinco amigas a cercavam, preocupadas e atentas. Uma garrafinha de água foi posta nas mãos dela.

– Beba, Luana – pediu Alice, com a voz mais firme. – Senão daqui a pouco quem morre é você.

As meninas olharam para Alice. Nossa, como era tinha coragem de falar com a filha daquele jeito? Desta vez, porém, Luana aceitou o oferecimento da mãe e bebeu um longo gole.

– Muito bem. Que tal agora comer alguma coisa? – Alice abriu a bolsa e mostrou um pacote colorido de bolachinhas doces.

– Não, mãe – Luana afastou a bolsa e virou a cabeça para o outro lado, fazendo uma careta. – Estou enjoada. E depois – ela enxugou uma lágrima, – esta é a bolachinha preferida dele.

Alice fechou a bolsa e estava pronta para falar alguma coisa quando um lamento seguido de um choro desesperado feriu os ouvidos delas todas.

– Mas que diabo é isto? – esbravejou Alice. – Quem está berrando deste jeito?

Um pouco constrangida por Luana, uma das amigas respondeu:

– É a Micaela – a moça esperou alguma reação de Luana que, felizmente, não ocorreu. – Ela não sai de lado do caixão. Parece que ela é a viúva.

– Mas era só o que me faltava! – Alice bateu com os dois pés no chão e olhou para a filha. Luana permanecia imóvel, olhando para as mãos. – Você não quer ir até lá se impor, Lu? Afinal, a namorada de Kauê era você!

Novamente, as meninas reviraram os olhos. Definitivamente, Alice não era dotada de nenhum discernimento.

– O que vai adiantar, mãe? Ele já morreu mesmo...

– Tudo bem – concordou Alice. – Mas esta tal de Micaela merece bem uma sova! Para que tanto escândalo? Bem coisa de quem quer aparecer!

O tom de voz alto de Alice chamou atenção de algumas pessoas. Luana fechou os olhos e se recostou no ombro da mãe. Não suportava mais aquilo tudo. Desde que Kauê fora encontrado, sua vida se transformou em um turbilhão de sentimentos, tristeza e revolta. Antes de ir ao cemitério, ela colocou todas as fotos do namorado dentro de uma caixa de sapato e a jogou no fundo do guarda–roupa. Não queria olhar para elas, já bastava que quando fechava os olhos todas as imagens de Kauê lhe vinham à mente. Era uma tortura. Não sabia até quanto iria aguentar. Teve vontade de pedir à mãe para levá–la para casa, mas sabia que Kauê ficaria chateado. Incomodava–lhe o fato de Micaela estar dando um show dentro da capela, mas não ousava entrar lá e ver o seu grande amor morto. A única coisa que desejava naquele momento era ir para casa, se trancar no quarto e não sair dali nunca mais.

Quando o enterro finalmente saiu, Micaela caminhou ao lado do caixão, com um vestido preto curto e que, segundo confidenciou a algumas amigas, Kauê adorava. Com o rosto banhado em lágrimas e grudada em uma foto grande do rapaz, Micaela se manteve sempre próximo ao caixão durante o cortejo como se fosse alguém da família. Dado momento os olhos de Micaela se encontraram com os de Luana, ainda sentada no banco. Assassina. Micaela apertou ainda mais a foto junto ao corpo chegando a amassá–la. Luana sempre fora uma fraca, nunca tivera pulso firme para conter os ímpetos de Kauê. Jamais Micaela o deixaria sair na tempestade para surfar. Aquilo era simplesmente fora de questão.

Micaela ficou até o fim do sepultamento e além. O último familiar foi embora e ela ainda ficou. O sol se punha naquele sábado, a chuva já tinha ido embora havia tempo. Quando se viu sozinha, Micaela fungou, enxugou a última lágrima que escorria pelo rosto e se ajoelhou ao lado da sepultura do seu amor.

– Vou trazer você de volta, Kauê. Pela minha vida, juro que você voltará a viver e então ficaremos juntos para sempre.

Ela fechou os olhos com força, firme nas suas certezas absolutas. Não soube quanto tempo ficou naquela posição, mas somente abriu os olhos outra vez ao escutar sons de passos atrás de si. Micaela estremeceu de susto. Já era noite fechada e estava sozinha em um cemitério.

– Moça?

A voz de um jovem rapaz fez com que o coração acelerasse e ela apertou ainda mais a foto de Kauê. Micaela olhou para cima e se deparou com o porteiro do lugar. Ele trazia um molho de chaves na mão.

– Preciso fechar o cemitério, moça. Já passou mais de uma hora do fechamento.

– Ah, desculpe – disse ela, levantando–se. Os joelhos estavam arranhados, mas Micaela pouco sentiu. – Eu… eu já estava indo embora mesmo.

Micaela ficou em pé rapidamente, constrangida. Já eram oito horas da noite e os pais deveriam estar preocupados. Enviou uma mensagem para a mãe mentindo que estava na casa de uma amiga. Havia algo muito importante a ser feito.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 01/10/2017
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