MORTO VIVO (Cap. 4)

O friozinho da noite e a escuridão do caminho não demoveram Micaela da sua intenção. Nem mesmo as estrelas ajudavam a iluminar as pedras da rua que ficava cada vez mais deserta à medida que Micaela avançava. No final das contas, ela sabia que o escuro estava dentro do seu coração e nem mesmo as feições de Kauê na foto a garota conseguia enxergar direito.

A casinha de madeira parecia frágil e da chaminé saía um pouco de fumaça. Micaela caminhou até lá, determinada, e só parou quando um cachorro grande e preto apareceu latindo alto. Ela soltou um gritinho, agarrando–se mais ainda a foto de Kauê. O bicho não avançou, mas ficou na frente da casa de prontidão, como se não quisesse que Micaela se aproximasse. Sempre tivera medo de cães, não importava o tamanho. No seu desespero não imaginou que encontraria algum pelo caminho. O animal não parecia bravo, mas firme na sua intenção de não deixar Micaela chegar à porta da casa.

– Ai, meu Deus... O que eu faço agora?

A porta foi aberta lentamente. Uma luz fraca foi acesa na varanda e Micaela pôde visualizar a mulher segurando um gato no colo.

– Quem está aí?

A garota, com a voz trêmula ainda pelo susto, respondeu:

– Sou a Micaela. A senhora lembra de mim?

A bruxa não respondeu. Ao invés disso, olhou para o cachorro e ralhou com ele:

– Sancho, pare com isto. Eu disse para ficar quieto! Vá para os fundos. Agora!

Obediente, o cão baixou a cabeça e saiu caminhando lentamente para trás da casa. Micaela deixou soltar o ar enquanto a senhora dizia:

– Pode se aproximar agora. E não se preocupe. Ele só faz barulho.

Micaela ainda sentia as pernas um pouco bambas quando parou frente a frente com a bruxa. O gato não parecia muito contente de ter sua paz interrompida por aquela estranha com cara de desesperada.

– Preciso da sua ajuda. Por favor, me ajude.

A jovem foi conduzida para dentro da casa. O interior era simples e não parecia um local onde diziam que a dona era bruxa e preparava poções mágicas. Ou que previsse o futuro. Era tudo tão... normal. Será que era verdade tudo o que diziam dela?

A senhora indicou uma poltrona velha onde Micaela sentou muito rígida, segurando a foto encostada ao peito. Sentada frente a ela, a velha perguntou:

– De quem é esta foto?

– É do meu ex–namorado – Micaela mostrou a foto.

– O que houve com ele? – a bruxa estendeu as mãos para pegá–la.

– Ele morreu afogado hoje.

– Percebi isto só pela energia do retrato – ela olhou firme para os olhos de Kauê. – Foi o surfista? Ouvi falar de alguma coisa.

– Foi ele mesmo – Micaela engoliu o choro. Estava cansada de chorar. A cabeça e o rosto doíam. – Kauê saiu para surfar durante a tempestade e…

Micaela não conseguiu prosseguir. Enxugou uma lágrima, respirou fundo e tentou falar novamente:

– Se ele fosse meu namorado ainda, eu jamais teria permitido que fosse para o mar com o tempo daquele jeito. Mas... mas a namorada dele é uma tonta! Ela podia ter feito alguma coisa para impedir! E não fez!

A senhora continuou em silêncio, olhando para a foto. Por fim, quando percebeu que Micaela, emocionada, não conseguia se articular direito, perguntou:

– Você quer que eu faça alguma oração especial para que ele siga no outro mundo em paz?

Micaela encarou a mulher intensamente e chegou mais para frente na cadeira, de modo que os rostos de ambas ficaram mais próximos.

– Eu quero muito mais que isto. Eu o quero de volta.

A princípio, a bruxa não falou nada. Olhou de Micaela para a foto e depois para a moça de novo.

– De volta... como?

– Vivo. Eu quero Kauê vivo.

Novo silêncio. Micaela se angustiou. Já ouvira relatos sobre a magia da bruxa. Sabia que seus poderes eram imensos, mas também nunca ninguém dissera que ela poderia ter controle sobre a vida e a morte. Era sua última esperança. E única também.

– Você quer que eu devolva a vida ao seu namorado?

– Quero – confirmou Micaela com a voz trêmula. As unhas estavam cravadas no joelho, ferindo–lhe a pele já arranhada sem que percebesse.

– Tem certeza do que está me pedindo?

– Eu tenho certeza que eu o quero vivo.

– Micaela, talvez Kauê não volte da maneira que ele era.

A jovem não entendeu muito bem aquela parte, contudo pouco lhe importava.

– A senhora tem como fazer isto para mim? Trazê–lo de volta? Olha, eu pago o que a senhora pedir. Não tenho muito dinheiro, mas posso pegar uma grana que tenho guardada e...

– Calma – a mulher pousou a mão no braço de Micaela. – Não vou lhe pedir nada. Entendo seu desespero e eu devia lhe negar isto. Mas… você me salvou a vida uma vez. Então eu vou lhe devolver outra.

Os olhos de Micaela se encheram de lágrimas e ela quase sorriu. Mas antes que isto acontecesse, a velha alertou novamente:

– Fique em sua mente que pode ser que Kauê não volte o mesmo.

– Não me importo.

– Não mesmo?

– Não. Por favor – Micaela juntou as mãos como se estivesse rezando. – Traga meu menino para mim.

A bruxa olhou para a foto. Realmente era uma tristeza que um jovem tão bonito tivesse partido cedo demais e de forma tão trágica. Disse:

– Deixe a foto comigo. Agora vá para casa. E aguarde.

*

Micaela chegou em casa perto das dez horas da noite e se trancou no quarto. Pegou outra foto que tinha de Kauê guardada junto com as outras em uma espécie de baú e se jogou na cama. Seu corpo ficou sobre a foto como que quisesse proteger o ex–namorado. Lembrou o quanto odiara Kauê no dia em que descobriu que fora trocada pela insossa Luana. Em um primeiro instante achou que fosse só fogo de palha e que logo Kauê iria desistir daquela palhaçada. Já havia acontecido outras vezes. O namorado era mulherengo mesmo, era só uma questão de se adaptar a situação. Mas não daquela vez. Kauê não voltou. Micaela fugia quando via os dois circularem de mãos dadas ou abraçadinhos pela cidade. E sendo o lugar pequeno, era muito fácil vê–los juntos.

Mas quando Kauê voltasse da morte, Micaela o perdoaria de todos os seus deslizes. Ele entenderia que só entrara no mar durante uma tempestade porque não tinha outro lugar melhor para ficar. Desta vez Kauê iria saber que o melhor lugar para estar era nos braços dela. A mãe bateu na porta e entrou no quarto, deparando–se com a filha ainda vestida e deitada de bruços na cama, com o rosto enterrado no colchão.

– Mic... eu trouxe um prato de sopa para você.

– Não quero – a voz saiu abafada e trêmula.

– O enterro terminou faz algumas horas e você só apareceu agora. Você realmente estava com alguma amiga?

O prato de sopa foi colocado na mesinha de cabeceira.

– Tive que resolver algumas coisas – respondeu ela ainda sem olhar para a mãe.

– Vou deixar a sopa aqui para você. Se precisar conversar, pode me chamar.

– Está bem.

A mãe foi embora e Micaela continuou naquela posição por um longo tempo. Não tocou na sopa. Kauê poderia voltar a qualquer momento e estar com fome. Era melhor deixar o prato ali, para ele, para o seu amor fujão.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 06/10/2017
Reeditado em 07/10/2017
Código do texto: T6135086
Classificação de conteúdo: seguro