16. "O PÃO NOSSO DE CADA DIA..."

Este texto é seqüência do texto 15. CHEGADA A DESTINO ALGUM.

Os dois amigos com quem eu chegara a São Paulo no dia anterior tomaram uma carona e me deixaram boquiaberto no acostamento da pista central da marginal Tietê, distante de casa mais de mil e cem quilômetros. Eram dois catarinenses que eu tinha conhecido em Curitiba, na BR116, quando viajava para São Paulo. Eles eram procedentes de Canoinhas, no Estado de Santa Catarina, indo para São Paulo em busca de trabalhos mais rendosos. Quanto a mim, havia quase dois meses que saíra da casa de meu pai em São Leopoldo, na região Metropolitana de Porto Alegre. Tinha completado quinze anos de idade no dia dezessete de dezembro último, em Caxias do Sul, onde estive em torno de um mês e meio trabalhando de vendedor de cachorro quente. Era o mês de janeiro de 1981 e eu me achava solitário palmilhando o asfalto encharcado da marginal Tietê, sem amigos, sem dinheiro para comprar o que comer, sem abrigo, apenas com a roupa que vestia, tendo na mão um casaco marrom de guarda que tinha encontrado sob o viaduto onde tínhamos dormido na noite anterior.

Andei alguns passos chorando sob a garoa paulista, indo rumo ao leste, onde eu sabia que, cedo ou tarde, bem certo que seria tarde, provavelmente no dia seguinte, senão depois, eu encontraria a BR 116, onde me dedicaria a pedir carona de retorno ao Rio Grande do Sul. A medida que fui andando, o choro e o desespero foram sendo trocados por coragem fundamentada na certeza de que ao chegar na BR conseguiria carona e faria fácil o percurso de volta, tanto quanto tinha sido fácil fazer o de vinda. Eu tinha experiência em que sustentar minhas certezas, pois sempre fora fácil pegar carona na sinaleira do “valão”, no entroncamento da avenida João Correia com a BR 116, em São Leopoldo, para ir a Esteio, trinta quilômetros dali, onde eu estudava. E em São Paulo, no meio de tanto engarrafamento, seria impossível não haver sinaleiras onde pudesse pedir carona.

Então segui rumo a leste, certo que em algum momento veria placas indicando a BR 116, que eu tomaria a direita e voltaria para casa. Em certa altura, quando já não no acostamento da pista central, pois não acreditava conseguir carona atacando carros, percorria eu a calçada a margem direita da marginal quando vi ao chão uma torta doce, guardada na embalagem de plástico duro transparente, típica de confeitarias, porém, um pouco bolorada. Mas que diferença um bolorsinho poderia fazer a essa altura da fome que eu sentia? Podia sim fazer diferença alguma pessoa me ver comendo uma torta achada em plena calçada. Mas este problema eu resolvi cobrindo-me com o casacão de guarda e comendo a torta bem escondido, parecendo por sobre o casaco uma pessoa imbecilizada, mas, ao contrário, após muito hesitar, eu racionalizara que separando as partes boloradas e comendo o resto sobreviveria mais aquele dia e ninguém ficaria sabendo. E essa foi a única refeição daquele dia.

O dia já tinha passado para a tarde, talvez estivesse ao meio da tarde ou passando, quando perguntei a alguém onde ficava a BR 116. O homem disse que eu precisava retornar, pois a deixara para a trás. Todavia, indicou um caminho para o sul que me fez passar pelo bairro Morumbi, costeando ao estádio de futebol e após muitas outras perguntas cheguei a uma avenida larga que identifiquei numa placa de esquina como a rodovia federal. Era dia ainda e num cruzamento muito movimentado anoiteci pedindo carona aos motoristas que paravam na sinaleira. Bem próximo dali havia uma passarela de pedestres e debaixo dela passei a noite, me cobrindo então com o casaco marrom de guarda.

O dia seguinte amanheceu sombrio, com uma garoa intermitente embarrando o asfalto. Logo que abri os olhos, senti o vazio estomacal a sinalizar uma fome assoladora e logo lembrei do bolo bolorado do dia anterior. Provavelmente não encontraria outro bolo, mesmo que bolorado, neste e nos próximos dia e não poderia mesmo viver de restos de comida, pois na casa do meu pai nunca tinha faltado nada. A Segunda lembrança, de igual teor de importância e insolubilidade, tratava do que fazer em relação a viagem até o Rio Grande. Embora a experiência naquela sinaleira no resto do dia anterior, decidi que ainda assim pedir carona em um semáforo aumentava em muito a possibilidade de êxito, pelo que decidi seguir a pedir carona no mesmo lugar até conseguir. Mas passou meia hora e a fome cresceu muito, aumentando também a angústia do desespero, pois nada mais do que não ouvira dos motorista, que muitas vezes fechavam o vidro na minha cara. Mas havia ânimo para mais uma hora, por isto uma hora e meia depois minha certeza de conseguir carona se transformara em certeza de que não conseguiria. Entretanto, só para descargo de consciência fiquei outra meia hora a pedir carona no mesmo semáforo, descobrindo que talvez nunca mais tornasse a ver minha casa, meu pai, meu irmão e irmã, minha madrasta, minha mãe, meu padrasto e os filhos dele. Por isto outra vez chorei ao configurar na mente a distância real de mais de mil e cem quilômetros, que os mensageiros do passado levavam mais de mês para percorrer a cavalo. Todavia, entre as muitas alternativas nas quais pensei enquanto chorava estava a de que não ficaria no caminho, mas voltaria para casa mesmo que para tal tivesse que caminhar os mais de mil quilômetros, o que passei a fazer no mesmo instante, já identificando um armazém onde pedir pão velho, pois sabia que isto poderiam ser que não me negassem.

Meio arisco, me cheguei a um armazém no lado oposto da avenida, onde vi que tinha só um homem atendendo, sem nenhum freguês por perto, para que não me sentisse constrangido ao pedir pão velho. Ao contrário do que pensei, que fosse catar em algum canto pedaços de mão esturricados, o homem abriu a caixa de telinha fina de plástico verde e de lá tirou um pão francês de meio quilo novinho, o qual eu fui comer no lado direito da avenida, seguindo caminho rumo ao Rio Grande do Sul.

Quanto a refeição da manhã, o problema tinha sido resolvido e não custara muito constrangimento nem humilhação. Todavia, não é bom abusar da sorte e era certo que na próxima vez não seria tão fácil, pelo que fui protelando para mais tarde o chegar em algum lugar para pedir pão velho. Entretanto, a parte movimentada ia ficando para atrás e mais adiante poderia ser impossível encontrar um bar, restaurante ou lancheria onde pedir. Sendo assim, decidi não deixar passar a próxima oportunidade. Mas o próximo restaurante que vi ficava para dentro do terreno, distante da rodovia. Ainda assim fui até ele, sentindo, entretanto, que seria inconveniente voltar quando vi que tinha gente em torno do balcão. Decidi enfrentar ao todos, que já me olhavam quando me aproximei. No balcão perguntei ao atendente se não teria algum pão do dia anterior que pudesse me dar para comer. Ele pediu que eu esperasse um pouco e, aos olhos de todos, pegou no refrigerador um pão caseiro muito bonito e cortou quatro fatias bem grossas, as quis recheou com tomate, que picou em rodelas, alface, presunto, queijo e maionese. Depois me deu enrolado em guardanapos e mandou que comesse sem Ter que me preocupar em pagar.

Wilson Amaral

Romance e Poesia
Enviado por Romance e Poesia em 08/10/2007
Reeditado em 08/10/2007
Código do texto: T685336