Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 4

(continuação de Doença e Cura - Capítulo 1 - Parte 3)

- Vou lhe contar uma história - prosseguiu o demônio, e levando em conta os ruídos que este produziu, o vampiro julgou que ele tivesse puxado uma cadeira ou algo assim, tendo então se sentado. - Você deve ter ouvido... você deve se lembrar, na primeira vez em que vimos um ao outro, algumas semanas atrás, quando eu lhe disse que...

Semanas?

- ... eu era a vespa, e vocês eram as aranhas. Acho que você se recorda disso, não é mesmo?

O vampiro, paralisado, não fez que sim nem que não.

SEMANAS? Tinham se passado semanas desde o primeiro contato? Mas isso era impossível...

- Bem, não posso dizer que eu seja exatamente como você, afinal uma aranha nunca é igual a uma vespa, ou a uma mosca. - O demônio riu outra vez, divertindo-se às custas da própria infâmia, como o vampiro havia feito por diversas vezes, diante de suas próprias vítimas. - No entanto... Eu conheço muito bem a sua raça, e por razões que não lhe dizem respeito, também eu, também a minha raça desenvolveu uma doença da noite, semelhante à que afeta vocês. Como vocês, também eu vivo de absorver o oxigênio do sangue dos outros, contaminando gente por aí, espalhando a morte. Como vocês, eu também destruo as pessoas sem discriminar os inocentes dos culpados, movido por uma fome semelhante à sua.

O demônio levantou-se do móvel onde havia se sentado, e caminhou para um lugar não muito distante, que o vampiro não podia ver.

- Velhos tempos... Toda a paranóia de escapar durante o dia e procurar pobres coitados, ou ricos afortunados e tolos durante a noite. Vi algumas civilizações surgindo e desmoronando, e algumas culturas transformando-se em pó de uma noite para a outra, algumas vitimadas pelos humanos, outras por gente como você. Vi minha própria cultura, a cultura de meus antepassados, desfazer-se diante de meus olhos, conforme o tempo, os séculos se passavam.

Uma pausa. Muito silêncio, atormentando o vampiro. O cri-cri dos grilos. O coaxar de uma rã entusiasmada. Predadores e presas por todos os lados, de todos os tamanhos.

Seus olhos... os vermes...

- Não sinto mais esperança, e deixei de ter fé em alguma coisa há tanto tempo que acabei esquecendo como vem a ser tal sensação - prosseguiu o demônio. - Peguei doenças, uma a uma... todas as doenças contagiosas dos homens, sabendo do pouco dano que elas poderiam me causar, assim como a vocês, afinal... não há dúvida quanto às extraordinárias capacidades regenerativas dos vampiros, só comparáveis ao apetite insaciável por sangue. Eu, porém, procurei as doenças, as pestilências, por minha própria vontade. Tenho motivos para tanto, e estes não vêm ao caso.

Mais passos. O demônio caminhava pelo lugar, e parecia estar premeditadamente disposto a confundir a debilitada audição do vampiro.

- Vivi tudo isso - sua voz surgiu de um outro lugar, diferente de onde soavam os passos - e sei o que significa ser imune e estável pelos séculos afora. Porém, descobri que nem tudo é tão perfeito como parece... Existem tantas criaturas fascinantes neste mundo. Tantos exemplos de aparente perfeição... O escorpião, tão poderoso, com seu formidável veneno, capaz de derrubar um homem com uma picada, e que é feito em pedaços em segundos por um bando de minúsculas formigas, muito menores do que ele, e tão indefesas que a própria chuva as destrói... O caranguejo, blindado, possante, um verdadeiro acampamento para milhares de vermes. E a tarântula, poderosa assassina, que nem chega a ser páreo para uma única vespa da terra. Aparências, nada além de aparências.

- Sabe, meu amigo... não existe perfeição, nem segurança, e tampouco uma garantia. Todos nós fazemos parte de um ciclo, até mesmo os humanos... e os vampiros. A esta altura, nem mais falar, nem emitir sons você pode... Eu sei. Tenho certeza. Já vi esta mesma cena acontecendo antes, com diferentes olhos, em diferentes lugares, através de diferentes realidades. Sei o que o... veneno faz. Conheço todos os sintomas. Possuo experiência secular no assunto.

O demônio riu outra vez, e aproximou-se do vampiro. Seus passos deixavam a impressão de estar vindo de todos os lados.

Os vermes... mexiam-se sem parar pelo seu corpo... despedaçando-o... fragmentando-o...

- Como as vespas, minha estirpe também tem a sua maneira incomum de se perpetuar... As larvas das vespas eclodem dos ovos e sugam a vida das aranhas paralisadas. E muitas aranhas são sacrificadas em troca de uma única larva, que resultará em uma vespa ainda menor. Aranhas como você, afinal todos fazemos parte do ciclo. Alguns tem mais sorte do que os outros, e estão melhor posicionados neste ciclo. Eu tive esta sorte, e hoje sou vespa adulta.

"Mas... nem todos têm sorte, não é mesmo?"

O homem de cartola e sobretudo rasgado levantou-se. Caminhou manquitolando e ultrapassou a porta que dava para o lado externo da velha casa descuidada.

Apreciou a paisagem sombria da noite, tentando em vão respirar o ar orvalhado trazido pela brisa.

Um pedaço da carne do rosto deformado descolou-se e caiu. Ele não se importou. Tinha coisas muito mais importantes para fazer. Acostumara-se há tempos a ter a pele e as carnes apodrecendo e caindo de seus membros, de sua face, e de todo o seu corpo. Sabia muito bem o que devia ser feito para acabar com o processo degenerativo, assim como tinha plena consciência de quão temporária e efêmera era tal solução.

Fazia parte do ciclo. E era assim que devia ser.

Fechou a porta da frente. Sem pensar muito, conferiu o material que trouxera do interior da casa. Algumas tábuas, um saquinho plástico com velhos pregos, e um martelo, além de sua velha maleta escura e puída, forrada em couro e pó, onde trazia os preparados, tão necessários a ele, e à parte que ele representava no ciclo.

Fechou a porta, girando a velha maçaneta redonda. Juntou as tábuas recolhidas de dentro da casa com as outras que estavam do lado de fora, empilhando-as todas juntas, e a seguir agarrou um par de pregos do saquinho plástico e colocou-os na boca. Pegou a primeira tábua da pilha e colocou-a junto à porta. Devagar, mas de modo firme, resoluto, pôs-se a pregar, uma a uma, todas as tábuas da pilha na porta, procurando vedá-la, com segurança.

Conferiu o serviço, ao terminá-lo, julgando-o excelente.

Colocou o martelo e o saquinho com os pregos em um esconderijo improvisado junto à parede frontal do casebre. Pegou sua maleta antiquada e partiu dentro da noite, sem olhar para trás.

Dentro da casa, em um canto escuro, alguém que já havia sido humano, de olhos arregalados em um espasmo, sem poder se mexer, sentia as entranhas se desfazendo aos poucos dentro de seu corpo.

Este conto faz parte do Romance Doença e Cura, de Fabian Balbinot.

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BOA LEITURA!