O retrato de Martino Rodriguez

O exemplar da revista estava no mesmo lugar que deixara, lacrado. Com as mãos trêmulas, ele a pegou da mesa de centro, retirando o plástico com avidez. Folheou a revista rapidamente até achar a matéria que procurava:

"ENTRE O HUMANO E O GROTESCO

Entrevista com Martino Rodriguez

Desde sua primeira exposição, Rodriguez tem chamado a atenção dos críticos. Seja pelo seu estilo inovador, onde apaga as linhas que delimitavam a beleza e o grotesco, ou pela poesia presente em suas pinturas, Martino Rodriguez é uma das maiores apostas brasileiras. Com exclusividade, ele nos concedeu esta entrevista, em que fala…"

Parou de ler nesse ponto. As palavras que viriam depois não lhe interessavam. Jogou a revista de lado e seguiu para seu ateliê, no quartinho dos fundos. Lá, segurou seus pincéis e fitou o retrato que estava pintando. Martino o olhou como se contivesse algum segredo que não sabia e nem queria interpretar. Suas mãos grandes apertaram com força os pincéis, que se quebraram. Ele nem percebeu, ainda pensava na matéria que lera. Toda vez que via essas entrevistas e críticas sobre os quadros sentia-se mal; sentia-se menos artista.

Num rompante de raiva, estraçalhou a face gorda e fria que estampava a pintura inacabada; rasgou o brilhou maldoso dos seus olhos e a mão branca em prece. E quando só restava pedaços dispersos, sentou-se no chão e chorou, até que ouviu um rumor.

Antes que pudesse levantar-se, alguém entrou no ateliê. Alguém parecido com ele e, no entanto, estranhamente diferente.

– O que aconteceu? – o homem perguntou.

Martino levantou-se.

– Nada…

O homem olhou para os pedaços do quadro no chão e suspirou.

– Sei. Era uma boa pintura, mas você pode fazer outra, claro. A nova exposição é daqui a algumas semanas.

Martino deteve-se em frente ao outro. Admirou sua beleza etérea e perfeita, exatamente oposta a sua. Enquanto o recém-chegado era alto, de aparência simpática e semblante cativante, Martino parecia grande, mau e feio, embora não o fosse.

– Não vai ter mais nenhuma exposição – ele falou.

– Como assim? Acha que não terá quadros suficientes até lá?

– Só estou cansado – Martino começou, calma e decididamente. Já estava na hora dele se autoimpôr. – Eu percebi que não posso continuar com isso. Eu tenho que ser eu mesmo, não um personagem que inventei em meu temor. Devia ter confiado mais em mim e na minha arte…

Parou de falar por um instante e o homem aproveitou a deixa.

– Está louco? E tudo que eu fiz por nós? Por você? Eu te ajudei, te mostrei ao mundo, te dei o brilho que faltava. Foi você, desde o início, que não quis aparecer publicamente e me criou para isso. O que seria das entrevistas, das apresentações, sem a minha desenvoltura? Você, Martino Rodriguez, nunca poderia ser popular como eu fui.

Martino pensou no que ele disse. Estava certo, em parte. Ao invés de enfrentar o medo de não ser aceito, ele resolvera pintar sua alma num quadro, bela como ela era. E pedira, rogara, que seu quadro criasse vida, que o ajudasse. Dádiva ou maldição, ele foi atendido. Sua alma começou a representá-lo na mídia, mas Martino logo deixou de regozijar-se com sua fama; não sentia-a como realmente dele.

– Não devia ter te pintado – sussurrou. – Você é uma aberração.

O homem, a cópia de Martino, riu.

– Se olhe. E me diga quem é a aberração aqui. Eu sou a sua melhor parte, que você nunca terá de volta. Eu sou seu cerne; sem mim, você não poderá pintar, será tão vazio quanto seus quadros. Você…

Não pôde completar a frase. De repente, ele começou a tremer, a derreter-se, tinta pingando dos olhos, das mãos, da boca. Martino assistiu surpreso a esta transformação. Em poucos minutos, só restava uma poça colorida do que antes fora sua alma.

(06/03/13)

Elaine Rocha
Enviado por Elaine Rocha em 27/03/2013
Código do texto: T4210627
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