Encontro marcado

Já passava da meia-noite quando Elizabeth chegou. Nicolas já aguardava a amiga em frente ao velho casarão abandonado.

– E o Thomas? Você acha que ele vem? – pergunta apreensiva a menina.

– Talvez aquele rato de biblioteca magricelo tenha desistido – duvida o amigo.

Mas Thomas apareceu, se bem que hesitante. Como haviam combinado, os três amigos iriam cumprir um desafio: passar uma noite na temida casa mal-assombrada do bairro e verificar se os rumores eram verdadeiros.

– Ouvi dizer que a casa é habitada por uma bruxa velha que só aparece de madrugada para amaldiçoar crianças bisbilhoteiras – instiga Nicolas, olhando para Thomas de soslaio só para ver se ele tremeria.

– Deixe de implicar com o Thomas, Nicolas! Se ele está aqui é porque não tem medo de nada! – diz Elizabeth, defendendo o amigo. – Será que você não está cansado de suas brincadeiras de mau gosto?

Thomas, porém, apenas reclinava a cabeça. Não conseguia encarar Nicolas. Não depois que as implicâncias na escola ficaram mais violentas. Talvez Thomas tenha aceitado o desafio da casa mal-assombrada apenas para provar sua coragem diante do colega valentão e obter algum grau de respeito. Já Elizabeth era a conciliadora da turma, e sempre procurara firmar amizade com as pessoas. Talvez por isso tenha também aceitado a proposta de Nicolas: para fazer parte de um grupo e não se sentir deslocada e sozinha. Nicolas, por sua vez, sempre buscara atenção na escola, como se precisasse provar a todos que era corajoso, mesmo que para isso usasse sua força bruta contra os mais fracos. Quem sabe Nicolas só queria ter um amigo. E, naquele momento – sob a luz da lua cheia e envolvidos pelo frio da noite – eles eram uma turma de amigos, e quem sabe foi por essa razão Nicolas propôs o desafio para Elizabeth e Thomas. No fundo, eles poderiam ser grandes amigos, mesmo que o valentão não admitisse.

Elizabeth segurou a mão de Thomas. Nicolas andava adiantado um passo ou dois. Foram atravessando o quintal pela calçada de pedras rumo à varanda da frente. O ruído das folhas secas estalando enquanto eram pisadas pelo caminho davam a impressão de ser o som de uma fera noturna mastigando sua presa. Os degraus da varanda estavam apodrecidos e afundavam a cada pisada. E quando Nicolas estava prestes a empurrar a porta e dar início à sombria aventura, as janelas da frente vibraram com o vento e fustigaram contra o batente, dando a nítida e assustadora impressão de que havia alguém batendo à porta, como se indicasse que era preciso antes pedir licença. Nicolas hesitou por um instante. Olhou para os lados certificando-se de que era apenas o vento. Elizabeth apoiou a mão em seu ombro, dando-lhe uma dose de coragem. Com isso, Nicolas empurrou a porta com as duas mãos, enfim, abrindo-a lentamente. As dobradiças gemiam como uma pessoa de luto, enquanto um hálito de centenas de anos vindo da casa agora aberta caiu sobre os três invasores, como se fosse um último aviso para recuarem.

Entrando pelo saguão outrora ornamentado, somente a fraca luz do luar e dos poucos postes da rua iluminava o assombroso e decadente cenário. Os poucos móveis que haviam sido deixados pelos antigos donos estavam rasgados e cobertos de um manto de poeira branca. Até as teias de aranha há muito tecidas pelos umbrais estavam cobertas de poeira, e sacolejavam como velas de um navio fantasma.

– Disseram que esse lugar guarda uma estória de assassinato! – sussurrou Elizabeth, como se falar em voz alta sobre o caso pudesse atrair o perigo. – Um homem foi morto pela amante, no segundo andar. Dizem que a amante o acorrentou na cama, arrancou a língua dele e o deixou sangrar até a morte. Contam que se você repetir alto o nome dele ou cantar uma rima três vezes, ele aparece novamente e você pode ouvir os gritos de horror da noite do crime.

– E eu li que esta casa foi construída no período colonial por um barão do café, que escondia seu tesouro entre as paredes dos quartos. Dizem que o espírito do barão ainda protege o tesouro – gaguejou Thomas, que sempre esperava alguém falar primeiro para só aí dar sua opinião.

– Não interrompa uma boa estória, rato de biblioteca – inflamou Nicolas. – A lenda da amante assassina é muito melhor. Vamos, Elizabeth. Qual é o nome do morto para testarmos a invocação do espírito?

– Eu não acho uma boa ideia. Já estou apavorada o bastante só por ter invadido este casarão abandonado. Mas já que você é tão valente, por que não sobe até lá em cima e enfrenta a aparição? – arremata a menina.

– É um desafio? Eu aceito, mas só se vocês estiverem lá para ver. Mas eu desafio o Thomas a repetir o nome do morto em voz alta primeiro – provocou Nicolas.

– Eu não tenho medo. Elizabeth, revele logo o nome da vítima, afinal – aceitou Thomas.

– Eu não sei o nome dele, mas eu conheço a rima. Acho que é assim: “Língua-sangrenta morreu de paixão. Balança a corrente, sacode o caixão”. – Elizabeth sussurrou novamente, e desta vez ainda cobria a boca com a mão com medo de invocar ela mesma a lenda.

– Só isso? – Thomas engoliu seco. Agora ele tinha que repetir. – Então lá vai: “Língua-sangrenta morreu de paixão. Balança a corrente, sacode o caixão”. – Thomas nem havia percebido que também sussurrara.

Ao terminar a difamada rima, um vento entrou assobiando com mais força pelas janelas abertas e o lustre do saguão pendulou lentamente, fazendo ranger as correntes enferrujadas que o prendiam ao teto. Os três amigos aproximaram-se como se fossem abraçar-se. Arregalaram os olhos e resolveram por fim que se falassem alto juntos a comprovação da lenda surtiria mais efeito. Assim sendo, eles repetiram em voz alta, desta vez:

– “Língua-sangrenta morreu de paixão. Balança a corrente, sacode o caixão”.

Silêncio.

– “Língua-sangrenta morreu de paixão. Balança a corrente, sacode o caixão”.

Nada ainda. Então entoaram a rima pela terceira vez, quase vacilando no último verso:

– “Língua-sangrenta morreu de paixão... Balança a corrente... sacode o caixão”.

Neste instante, um grito agudo e gélido, vindo do segundo andar, estremeceu o casarão. Elizabeth colocou a mão sobre o coração palpitante. Thomas tapou os ouvidos. E Nicolas começou a ofegar, sorrindo um sorriso mais amarelo do que a lâmpada dos postes da rua.

– Vocês ouviram isso? Não estamos sozinhos! – animou-se Nicolas. – Não temos escapatória. Agora nós três iremos até o quarto do morto. Ele veio por nossa causa e não nos deixará em paz até falarmos com ele. – Nicolas tinha razão. Se eles invocaram os mortos, deveriam arcar com todas as consequências.

Agora o lamento se ouvia baixinho, como o choro de uma criança abandonada.

– O que nós fizemos?! Isso é terrível... – já se arrependera Elizabeth.

Mas não havia retorno. A conjuração estava feita. Eles já estavam envolvidos.

Começaram a subir os degraus da escada lentamente, passo após passo, como se quisessem adiar o inevitável. Elizabeth apoiara-se no corrimão inicialmente, mas o ranger da madeira velha aumentava ainda mais o clima sinistro. Às vezes, o lamento cessava, e às vezes parecia ser apenas fruto da imaginação fértil de crianças impressionadas com a aventura fantasmagórica. Até que chegaram ao difamado segundo andar.

Outra vez o ganido agudo. Mas agora fora mais forte, mais intenso. Mais duradouro. E vinha de um cômodo com a porta fechada.

– Não é nossa imaginação! Alguém está realmente chorando de agonia atrás desta porta! – apontava Nicolas, com o braço trêmulo.

– Seja quem for, precisa de ajuda. – Concluía Elizabeth.

– Mas, e se for uma cilada? E se for alguém maligno tentando nos enganar a fim de nos tragar para o mesmo destino? – ponderava Thomas. Sempre que Thomas ficava nervoso, falava como se estivesse em um conto gótico.

– Eu vou com ou sem vocês, meninos. Mas se estivemos juntos até aqui, não é agora que vamos nos separar. Vamos abrir a porta ao mesmo tempo, de uma vez, enfrentando o que for! Quem está comigo? – desafiou Elizabeth, tomando a liderança, mesmo que sua voz denunciasse seu medo. Mas, a esta altura, todos estavam igualmente apavorados, e consentiram.

– Seja quem for, bruxa velha, barão, ou amante traído, nós vamos entrar! – gritou Nicolas, buscando coragem. Ao dizer isso, todos apoiaram a palma das mãos na porta e a golpearam com força, abrindo-a de uma vez. Elizabeth fechou os olhos por um segundo, mas logo os abriu ao ouvir o baque da maçaneta trincando a parede de madeira do outro lado. Com os olhos estalados e o suor frio na testa, entraram no covil do desconhecido.

Vazio. Apenas um quadrado de luz entrava pela janela e iluminava parcamente o velho assoalho. As cortinas roxas rasgadas sacolejavam com o vento e pareciam dois longos braços fantasmagóricos levitando em direção às crianças. De repente, mais uma vez o grito cruciante pôde ser ouvido, desta vez ecoando por todo o quarto e fazendo as crianças se arrepiarem de medo. Vinha de um dos cantos do quarto, escondido pela escuridão. E, como se a criatura tenebrosa tivesse clamado pela lua, ela apareceu. As nuvens cinzentas se abriram no céu noturno, dando espaço para a imensa e prateada lua cheia, que agora iluminava um pouco mais aquele cômodo misterioso. Foi Thomas que a viu primeiro, e gritou:

– Ali! Perto da parede! Eu vi os olhos amarelos me encarando!

Elizabeth também viu. Depois Nicolas. Tendo os olhos vidrados, a criatura mística eriçou os pelos, arqueou as presas e saltou sobre eles, desatinada.

Era um gato preto, contudo. Uma gata, melhor dizendo, defendendo a cria recém-nascida.

– Ela deve ter entrado na casa para ter os filhotes – suspirou aliviada Elizabeth.

– Mas não encontramos ninguém. A casa está mesmo vazia. Nossa caçada acabou – ponderou Thomas, agora desanimado.

– Vamos continuar procurando até encontrá-los! – determinou Nicolas. – E vocês não vão desistir. Vocês vão continuar comigo. Certo?

Todos consentiram maneando a cabeça. Neste instante, todos ouviram passos vindos da escada. Alguém havia entrado e estava subindo os degraus lentamente. Ao chegar ao quarto da confusão, uma jovem ilumina o ambiente com sua lanterna.

– Ramona, você está aí, sua danadinha! Então foi para cá que você fugiu para ter seus filhotinhos! Vamos! Todos estão muito preocupados!

– Filha, vamos! Já é muito tarde! – grita o pai da jovem, do lado de fora do casarão.

– Já estou indo, pai! – grita de volta a jovem, enquanto acomoda os animais em uma caixa de sapatos. – Vamos, Ramona. Esta casa me dá arrepios – arremata a jovem, enquanto dá uma última olhadela pelo quarto, como se procurasse algo que não quisesse de fato ver.

Quando todos deixam finalmente a casa, as três crianças se encontravam no quarto, entristecidas.

– Eu poderia ter aparecido para ela. Aposto que ela pularia de susto – sugeriu Nicolas, em um tom sarcástico.

– Já disse que suas brincadeiras sempre são de mau gosto – responde Elizabeth. – Esqueceu-se de que foi por sua causa que não encontramos mais ninguém para brincar? – continuou.

Nicolas sabia que sim, mas não gostava de lembrar. Então os três amigos deixaram o casarão em seguida e perambularam madrugada adentro, sem rumo. Quem por eles passasse sentiria um leve odor de queimado, resquício da última afronta de Nicolas, quando ele ateou fogo na mochila de Thomas para irritá-lo e acabou incendiando a sala de aula. Faz quase cinquenta anos que nesta tragédia morreram carbonizados Thomas, Nicolas, e Elizabeth, que agora – unidos como estranhamente sempre quiseram na escola – procuravam lugares abandonados em busca de novos amigos, como eles.

Vitor Pereira Jr
Enviado por Vitor Pereira Jr em 12/03/2014
Reeditado em 19/02/2015
Código do texto: T4725155
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