Mundo de Trevas - Capítulo 4

Em um dos corredores do CPPMA, durante a execução da experiência:

Pouco antes de os satélites pararem de transmitir sinal, Ezequiel havia recebido uma mensagem de texto de Marcela, sua esposa:

"Eu sei que ontem eu disse que essa experiência não estava me assustando, mas agora que está quase na hora eu fiquei com um pouco de medo... Como estão as coisas por aí?"

E agora ali estava ele já há algum tempo olhando para aquelas palavras na tela, sem poder respondê-las para dizer que ficaria tudo bem devido a queda do sinal – embora tivesse quase certeza de que nem se pudesse ele diria isso a Marcela, uma vez que ele não mentia para ela – e também sentia que aquilo ali definitivamente não ficaria nada bem.

O ar frio invadira o instituto antes que os aquecedores pudessem ser ligados. Das janelas podia-se ver que as trevas já estavam delimitando seus domínios lá fora.

Rubem surgiu correndo no inicio do corredor.

– Algum problema? – Ezequiel ainda teve tempo de perguntar.

– Pros carros, agora, agora, agora!

Essa era a frase que Ezequiel mais temia ouvir. Se eles precisavam sair do centro de pesquisa às pressas era porque no fim Rubem tinha razão e a experiência Céu Azul estava descarrilando abismo abaixo.

– E os outros?

– Não há tempo para ajudar ninguém, Ezequiel!

A escuridão já estava no céu há sete minutos quando as tais coisas estranhas começaram a aparecer. Os dois soldados, Rubem e Ezequiel, desciam as escadarias em direção ao estacionamento do lugar enquanto ouviam choros estridentes vindos de todas as direções. E não era aquele tipo de choro proveniente apenas do medo de que a experiência estivesse falhando, era um choro desesperado, repleto de pânico, choro de quem está frente a frente ao seu carrasco. Sangue fresco estava sendo derrubado no último andar e deslizava pelas escadarias chegando até onde eles estavam. Muito sangue.

– Que porra está acontecendo por aqui, Rubem?

– O inferno. É isso que está acontecendo!

Perto da saída, num ponto estratégico do imenso estacionamento, havia cinco jipes deixados por Rubem e seus amigos no dia anterior, carregados de armas cano longo e alguns outros objetos indispensáveis, como maleta de primeiros socorros, por exemplo.

Rubem foi até o computador que controlava os portões e digitou a senha padrão, abrindo a passagem. Ele foi o primeiro a entrar no jipe e ligar o motor para seguir naquela direção. Foi o primeiro, porque Ezequiel estava parado do lado de fora do seu veículo, olhando para um ponto mais distante da garagem.

– O que foi? – perguntou Rubem.

– Eu acho que há uma moça ali...

Do outro lado do estacionamento, Rubem podia ver alguém encolhido contra um dos pilares, mas não tinha certeza se era uma mulher, a única certeza de que tinha é que precisavam se afastar daquele instituto o mais depressa possível.

– Você tem de deixá-la, Ezequiel; já disse que não temos temp...

Mas sua frase foi se apagando da boca à medida que via seu amigo correr naquela direção.

– Vá na frente, eu te alcanço!

– Certo, ouça, em dez minutos nos vemos na encruzilhada-norte – Rubem disse, referindo-se a um ponto da estrada a uns oitenta quilômetros dali, bem na metade do caminho entre o CPPMA e a cidade-forte mais próxima, onde as famílias dos dois moravam.

O carro de Rubem partiu, deixando para trás um Ezequiel que corria com todas as suas forças para ajudar aquela desconhecida. Querer ajudar os outros era uma das características mais latentes da personalidade de Ezequiel, tanto que era esse o principal motivo que o fez seguir nas Forças Armadas.

Abraçada aos próprios joelhos, a moça olhava assustadíssima para um ponto que Ezequiel não conseguia ver devido a um carro estacionando que bloqueava a visão. Mas quando ele chegou até ela e perguntou se estava tudo bem, foi que ele olhou naquela direção também e viu o que tanto a assustava.

Estatelado no chão, o corpo de um cientista (jaleco branco e tudo mais) era devorado por dois lobos negros. Eram um pouco maiores do que o normal, com olhos extremamente amarelos e uma dentição totalmente exposta. Alimentavam-se do cadáver fresco e lutavam um contra o outro pela comida. A pelugem tão negra, mas tão negra, que tirava deles o aspecto natural. Era como se fossem feitos de sombra, ou de pura escuridão. Era como se não fossem desse mundo.

– Venha comigo – Ezequiel instruiu, pegando-a pela mão.

Por alguma razão aquela moça lembrava um pouco as feições de um felino, talvez por causa do cabelo loiro claro que emoldurava o rosto de pele dourada junto aos olhos verdíssimos borrifados com gotículas de ouro. Mas aquele não era o momento para se refletir sobre as aparências.

Seguiram de volta ao jipe, porém na metade do caminho a portaria se fechou outra vez, já que ela estava programada a ficar aberta por apenas poucos minutos.

Ezequiel pediu para a mulher seguir até o carro que ele iria abrir caminho outra vez. A moça notou que os lobos haviam se cansado de comer aquele corpo e estavam procurando por mais aperitivos, farejando o chão. O soldado digitou a senha, porém o portão custou a abrir já que em todos os andares havia pessoas tentando abrir e fechar portas, o que sobrecarregava o sistema.

Quando ele correu de volta para o veículo, os lobos notaram a movimentação e vieram também.

– Não está abrindo! – ela gritava. – Eles vão nos alcançar!

Mas Ezequiel resolveu agir, pegou um dos rifles depositados no banco de trás e o mirou nas duas criaturas. Atirou. O primeiro bicho só teve tempo de grunhir, estrebuchando no chão. A porta já se movia, mas ainda estava longe de abrir por completo. Mirou no segundo, atirou, mas esse tiro não foi na cabeça e o lobo, embora ferido, continuou se aproximando. Um segundo tiro, dessa vez fatal, fez com que o lobo também soltasse seu ultimo gemido. Uivos e latidos vinham dos corredores, anunciando que muitos outros se aproximavam.

Não havia tempo. Ezequiel pediu para ela se abaixar e acelerou o carro na direção da porta meio-aberta. O teto do carro se chocou com força contra a portaria, mas não foi o bastante para frear o veículo.

A rua já parecia noturna. Quando a moça sentada na carona do carro olhava para trás podia ver que determinadas áreas do CPPMA estavam em chamas.

O veículo voava a cento e oitenta por hora e ela se segurava à haste de segurança do teto enquanto que Ezequiel só pensava em pisar mais fundo naquele pedal. Quanto tempo havia perdido para salvar aquela mulher? Cinco? Dez minutos?

Dobrou a encruzilhada e seguiu a caminho da cidade. Ainda daria tempo, tinha que dar! Chegou em casa, chamou por Marcela, mas não recebeu resposta. A moça que ele salvara esperava no carro.

Assim que Ezequiel entrou no seu quarto, se deparou com os vultos de duas pequenas criaturas saindo por um buraco no vidro da janela. Sobre a cama, um volume se notava embaixo do edredom. Um volume com os contornos humanos e uma mancha de sangue.

– Não! Não! Não!

Quando puxou com força aquele edredom, foi que as lágrimas incontidas começaram a rolar pelo seu rosto e o seu maxilar se retesou de amargura...

***

Refúgio, agora:

Pelo menos por um momento, no breve instante em que se acorda, abre os olhos mas ainda não presta atenção no lugar que está a sua volta, Osmar provou da felicidade. Sentindo o aroma de café fresco que dominava a casa toda, ouvindo o som de algumas conversas ao longe, e imaginando que tudo não havia passado de um pesadelo muito descabido, ele tirou das suas costas a montanha de pedras que vinha carregando. Culpas, medos, arrependimentos. Porém a sensação boa não demorou muito, logo percebeu que embora seu relógio de pulso marcasse dez da manhã, da janela via-se o céu escuro. As Trevas eram reais, não fruto de um pesadelo.

Reconhecia o quarto do casarão, o lampião aceso sobre a cômoda, a voz de Rubem em algum lugar planejando alguma coisa. Os colchões de Adonias, Cléber e Victor já estavam vazios e arrumados. Ele, Osmar, devia ter dormido depois de várias horas de insônia, e provavelmente ninguém quisera acordá-lo.

Levantou-se e seguiu para a cozinha, onde as três mulheres preparavam um café da manhã utilizando o mínimo de enlatados possível. Seus dois filhos estavam sentados à mesa, conversando com Rubem. Osmar se sentou com eles, perguntou se não estava faltando ninguém.

– Apenas Ezequiel e Victor, que estão conversando lá fora; ah, e o cara que não fala nada, que está no quarto – respondeu Rubem, sorvendo um gole do café que Bruna havia acabado de lhe entregar.

– Se Ezequiel quiser descansar um pouco eu posso ficar de guarda pelas próximas horas sem problema algum.

– Não adianta, pai – Cléber avisou. – Já tentei trocar de lugar com ele, mas parece que o cara simplesmente não quer descansar. É justamente disso que Victor está tentando dissuadi-lo... – abaixou os olhos e o tom de voz. – E, além disso, eu tenho outra coisa que queria contar a vocês...

Juliana, a jovem morena amiga de Bruna, sentou-se na cadeira vaga entre os irmãos Gritten. Ela vestia um short curto no estilo das Noturnas (grupo de mulheres que saíam juntas para aproveitar as baladas na noite das cidades-fortes), porém sua idade deixava claro que ela não era desse tipo de garota.

– Sobre o que vocês estão falando? – perguntou, enlaçando o braço no ombro de Cléber, que a encarou, desconcertado.

– Se for mais algum problema – Rubem interrompeu o filho mais velho de Osmar – é melhor nem dizer agora; temos muitos a resolver, e o principal com certeza é a falta de água. Somente Victor trouxe galões, e eles não vão durar muito tempo para um grupo tão grande...

Adonias não dizia nada, cabeça baixa, lembrando do sonho da noite passada, onde ele conversava com Patrícia, abraçados na sua cama – a antiga cama, no antigo quarto da antiga vida.

Osmar foi quem falou:

– O senhor está dizendo que precisamos voltar até a cidade?

– Não vejo outro modo de conseguir água no meio desse deserto.

– Mas vocês serão pegos por aqueles... – Bruna dizia enquanto deixava o bule sobre a mesa; olhou para o marido, preocupada. – Aqueles monstros...

– Por hoje, só iremos levar conosco quem já souber atirar; mas daqui a alguns dias Ezequiel iremos ensinar todos vocês a utilizarem armas, pelo menos se conseguirmos mais munição para os treinos...

Cléber, que iria falar sobre a identidade do homem em estado de choque, preferiu guardar para si a informação, pelo menos por algum tempo. Afinal, para onde Marcel iria fugir?

Agora o que o interessava mesmo era o fato de que teria a chance de manusear aquelas belezinhas calibre 12, ou os rifles, ou ainda as espingardas clássicas... Já até se podia imaginar estourando os miolos de alguma daquelas criaturas ao som de Sex Pistols, feito os heróis daqueles filmes de guerra que tanto gostava.

– E você? – Juliana perguntou a Adonias, tirando com a ponta dos dedos os fios de cabelo dourado que caíam sobre o rosto dele, tapando sua fisionomia. – Não vai dizer nada não?

Ele se levantou abruptamente, sem sequer servir-se do café ou dos três enlatados espalhados pela mesa que tinham que servir de refeição para um grupo de onze pessoas. Juliana teve um segundo de constrangimento, que Osmar logo sanou quando disse que seu filho estava passando por um momento muito difícil.

Ninguém disse mais sequer uma palavra. Aquilo tudo não estava sendo fácil para ninguém. Um dos lampiões se apagou e puseram nele mais um pouco de querosene.

Adonias encontrou Victor e Ezequiel conversando sentados no tronco seco e morto de um cajueiro. Caminhou até eles e os dois homens, embora mais velhos, não tiveram nenhum tipo de resistência em recebê-lo ali. De certa forma, eles sabiam reconhecer outro perdido quando viam um. Adonias também tinha aquela coisa nos olhos, que não era bem um brilho, mas sim uma opacidade, e talvez, quem olhasse bem lá no fundo, pudesse ver um retrato de sua namorada desaparecida.

– Eu quero ir com vocês até a cidade – impôs ele, calando a conversa dos dois.

– Você não vai – Ezequiel foi igualmente categórico. – Antes precisa aprender a usar essas armas, se não você seria uma isca e morreria logo no primeiro ataque.

– Nós vimos a cidade nas primeiras horas dessa... Escuridão – Victor corroborou com a opinião do soldado. – Não sabemos como estão as coisas agora. Podem haver milhares de criaturas por lá.

– Eu só estou interessado em uma. Guarda Negro. Ele está com a minha namorada. E se vocês não me levarem eu vou embora desse lugar e sigo andando até lá. Mas eu irei procurar por ele de um jeito ou de outro.

No céu, o emaranhado sombrio de microorganismos se movia em colônias, gerando enormes correntes negras que corriam como as correntes marítimas, numa teia infindável de trevas intransponíveis. Mais de dezoito horas se passaram, assim como qualquer resquício de esperança de que aquela experiência pudesse ser revertida.

A conversa foi momentaneamente interrompida quando Leila se aproximava dos três, trazendo consigo uma bandeja com xícaras de café e uma lata de carne, a qual eles teriam que dividir e que equivalia a uma refeição inteira.

– Ahn... Ezequiel – ela murmurou, depois de deixar a bandeja sobre o tronco. – Eu gostaria de falar com você por um momento...

Se havia algo que ele não queria fazer, pelo menos por enquanto, era falar com aquela mulher. Há pouco falava sobre isso com Victor; as coisas terríveis que voltavam a sua mente sempre que ele olhava para Leila, a mulher que ele salvou em vez de salvar sua esposa.

Levantou-se, os dois caminharam para um ponto mais distante do terreno, sobre as rachaduras na terra de onde um dia havia sido um lago.

– Se você puder ser rápida, nós estamos organizando o retorno para a cidade-forte e...

– Obrigada. – ela o calou com o som dessa simples palavra. Ezequiel foi obrigado a olhar para aqueles olhos verdes de tigresa. – Só queria te dizer isso, te agradecer. Se não fosse por você eu não estaria aqui agora... – a voz titubeante, ela se esforçava ao máximo para segurar o choro. – Eu nem sei o que seria de mim...

Leila correu até ele e o abraçou apertado, tendo que esticar o corpo para alcançar a altura de Ezequiel. Ele, surpreso, não conseguia mover sequer um músculo. Ódio de si mesmo pela perda da mulher se misturava a sensação boa de ter salvado uma vida e ao perfume levemente adocicado da pele de Leila. Tudo junto deixando-o completamente confuso.

Quando ela o soltou, Ezequiel permaneceu na mesma posição, até com os braços abertos. A loira abriu mais um pequeno sorriso e voltou para dentro do casarão

E foi só depois que ela já havia saído de seu campo de visão que o jovem soldado lembrou com força total de Marcela, e toda aquela culpa de antes voltou com ainda mais intensidade. Se ele pudesse voltar atrás, para salva-la, não pensaria duas vezes: deixaria que Leila fosse completamente devorada por aqueles lobos.

O amor é isso mesmo, um compressor desgovernado.

E foi justamente por essa razão que quando ele voltou para a companhia dos dois homens com quem conversava antes, viu Adonias de um outro jeito. Ele amava mesmo essa sua namorada desaparecida, e pelo menos uma mínima chance ele ainda tinha de salvá-la. Ezequiel não podia ser um impedimento para isso, que era o que ele próprio também iria fazer se fosse por sua esposa.

– Ei, garoto, você já tem algum plano em mente?

Pouco depois do meio-dia, todos os refugiados estavam próximos ao portão, que Rubem estava prestes a abrir para que as duas caminhonetes saíssem e seguissem em direção à cidade-forte.

Todos, menos Adonias que dissera ao pai que acompanharia tudo da janela do quarto no andar de cima, pois ficaria fazendo companhia ao sujeito debilitado.

Cléber faria de tudo para estar entre aqueles três sortudos que iriam investir contra a cidade devastada, chegou a pedir para ir junto, embora soubesse que com certeza eles não permitiriam. Mas em breve ele iria com certeza.

Não entendam mal, não é que Cléber fosse exatamente um rapaz violento, a questão é que ele fazia parte de uma geração jovem que ouvia muito falar das anteriores, que lutaram bravamente por um país melhor. A geração do seu avô, contra a ditadura; a geração do seu pai, contra a hipocrisia dos antigos partidos políticos brasileiros; mas a dele, ficara estagnada, muito bem acomodada no colchão macio da tecnologia fácil. Cléber finalmente via um motivo para lutar, e assim que estivesse pronto, ele não pensaria duas vezes e seguiria avante.

Bruna foi até a janela do motorista do veículo em que seu marido iria sozinho e lhe deu um beijo de despedida.

– Se cuida, viu, querido. E não se esqueça que se não conseguirem formas de arranjar água, voltem para cá. A vida de vocês é muito mais importante que isso...

– Pode deixar.

Ligaram os motores e seguiram com faróis ligados pela escuridão do deserto, levantando poeira e esperança.

Depois que os que ficaram no refúgio fecharam os portões outra vez. Osmar seguiu para o segundo andar do casarão chamando pelo filho caçula, mas não houve resposta. Tanto bastou para que ele entendesse o que estava havendo e entrasse em mais uma daquelas suas crises cardíacas causadas pelo nervosismo.

– Fique abaixado mais um pouco – Ezequiel falou, olhando por um instante para o lençol branco no banco de trás da sua caminhonete, onde entre rifles e espingardas, havia um jovem obstinado.

– Por que será que eu estou com um péssimo pressentimento sobre essa viagem? – Victor comentou, retórico, sabendo muito bem que Rubem não iria se agradar nem um pouco quando soubesse que o rapaz viera junto.

Depois disso, o resto da viagem decorreu no mais completo e absoluto silêncio, até porque nenhum dos homens no banco da frente conseguiu pensar em frases ou diálogos depois de verem ao longe o retrato da cidade devastada.

FIM DO CAPÍTULO 4.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 22/04/2014
Código do texto: T4778639
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