Uma porta entreaberta

(Rafael Marchesin)
 
Lívia estava sentada na cama, seus dedos agarravam com força os lençóis que cobriam o colchão, tinha a respiração descontrolada, ofegante. Seus olhos estavam vidrados no velho armário posicionado do outro lado do quarto, uma fresta enegrecida se abria numa das portas, mas não era possível ver o que havia do lado de dentro do móvel. Com leves tremores no corpo, Lívia tinha a estranha sensação de que havia algo a observando lá de dentro.

Alguns momentos antes, Lívia acordara com o pressentimento de que não estava só no quarto. Mesmo sabendo que a sensação não passava de bobagem, levantou-se e acendeu a lâmpada com cuidado. Não foi preciso mais do que uma rápida olhada no quarto para saber que estava só. Mas, quando sentou novamente na cama, agora isenta de sono, percebeu que algo no quarto não estava do modo como ela havia deixado antes de dormir.

Para grande parte das pessoas, encontrar a porta do armário entreaberta poderia não ser algo incomum, mas para Lívia era. Toda noite ela perdia um tempo verificando cada uma das portas do seu armário de roupas, fazia isso como um ritual e não descansava até saber que todas elas estavam fechadas por completo. Esse cacoete começara na infância quando seu irmão mais velho lhe contara a história do monstro que vivia dentro do armário, na época, o irmão narrara que para não ser pego pelo monstro, era preciso nunca deixar as portas do armário abertas durante a noite. Agora, aos 26 anos, Lívia sabia que monstros não existiam, mas passara tanto tempo da vida fechando temerosamente as portas dos armários que não conseguia mais deixar de fazê-lo.
Nessa madrugada, para espanto de Lívia, a porta não estava completamente fechada. E isso fez com que os receios da infância lhe voltassem de uma só vez à memória.

Passara um longo tempo parada observando aquela porta, seus dedos já assumiam uma tonalidade arroxeada de tanto apertar os lençóis. Lívia sentia uma vontade louca de sair do quarto e ir para um lugar mais seguro, mas ao mesmo tempo sabia que seus pensamentos não passavam de bobagens. Sentia-se tola por ter medo de uma porta aberta no armário, era bem provável que algo dentro do móvel, talvez um de seus pesados casacos, caíra e a empurrara. Ao invés de fugir, forçou-se a limpar a mente de qualquer receio e decidiu fechar a porta e voltar a dormir.

Levantou-se da cama e respirou fundo para eliminar a fraqueza causada pela leve tremedeira que tivera há pouco. As mãos estavam dormentes e ela riu por ser tão medrosa enquanto abria e fechava os dedos.

Colocou a mão esquerda na porta e tentou fechá-la. A porta se moveu, mas logo voltou para a posição anterior. Levou dois ou três segundos para perceber que um rosto no interior do armário a fitava com olhos ensandecidos.

Foi necessário um momento inteiro para a mente de Lívia processar a informação do que via, mas, logo em seguida, foi tomada pelo desespero e seus pulmões, quase que por conta própria, expeliram todo o ar em gritos frenéticos de pânico.  Cambaleou para trás desequilibrada e topou a beirada da cama com as panturrilhas caindo sobre o colchão. A porta do armário se escancarou e uma pessoa saiu tranquilamente de dentro dele.

Mais uma vez Lívia agarrou os lençóis com dedos bem apertados, mas agora sentia pavor e não só medo. Engasgou com a própria respiração que perdera completamente o ritmo. A pele se tornara pálida e os músculos da face se contraíram numa cãibra assustadora. Os olhos de Lívia congelaram voltados para aquela figura que se aproximava calmamente ostentando um pavoroso sorriso no rosto.

Era um homem com barba por fazer e cabelos bagunçados. Tinha a roupa suja e rasgada em alguns pontos. Lívia já o tinha visto antes, nos últimos dias cruzara com ele algumas vezes em diferentes pontos do bairro, mas ela acreditara, até então, que não passava de um mendigo perambulando pelas ruas em busca de alguns centavos para trocar por drogas. Mas, agora, ele estava em seu quarto, avançando para cima dela com sabe-se lá qual intensão.

Lívia estava paralisada, foi fácil para o homem colocá-la de pé com um forte puxão pelos braços. O sorriso no rosto dele não se desfez um segundo sequer e Lívia viu, antes de gritar mais uma vez em desespero, os olhos avermelhados com sangue empapado, provavelmente fruto dos anos de consumo de drogas.

Ela gritou, mas uma mão encardida e parecendo feita de aço lhe tapou a boca.

— Shhh — fez ele se aproximando ainda mais dela.

Lívia se debateu na esperança de se desvencilhar do agressor, mas ele era mais forte e não teve dificuldades para controlar ela. O pânico a fez perder as forças e sua sanidade começou a dar indícios de que iria se desfazer. O homem tirou a mão fétida da boca dela e beijou-lhe os lábios. Lívia tentou se esquivar, fugir daquele monstro, mas suas forças tinham se esvaído. Aos poucos ela se entregava a ele.

A mente de Lívia apagou lentamente levando-a para a escuridão dos pensamentos, um lugar sombrio, onde não mais tinha domínio sobre o próprio corpo. Antes de sucumbir, uma última fagulha de medo perpassou por seu corpo, um medo do que poderia acontecer a ela nas mãos daquele homem enquanto estivesse inconsciente.

Lívia não sabia dizer quanto tempo passara inconsciente, mas teve certeza de que não fora muito, pois, quando retornou à realidade, o seu agressor ainda se encontrava parado à sua frente, tinha as mãos envolvidas com força em torno da cintura dela. Ela o observou atônita, acreditava que mais uma vez cairia na inconsciência, mas, agora, sua mente estava totalmente desperta.

Tentou mais uma vez se desvencilhar dos braços do homem, mas não conseguiu, não porque o homem a agarrava firme, mas porque seus músculos não se moveram um centímetro sequer. Ao invés disso, seus olhos se moveram sem controle mirando a face sorridente do agressor. As mãos tomaram vida sem que ela tivesse intensão de movê-las e seguiram com firmeza em direção ao pescoço do homem. Os dedos agarraram a garganta com tanta força que as juntas ficaram brancas como leite. A face suja do homem ficou vermelha e o sorriso diabólico desapareceu dando espaço para uma expressão de perplexidade. Ela pôde escutar nitidamente os engasgos do agressor.

Na sequência, uma forte dor lhe atingiu o abdômen quando o homem lhe desferiu um golpe com um dos joelhos. Lívia cambaleou para trás, sentiu que cairia, mas, ao invés disso, se manteve firme em pé. Ficou assustada quando uma risada feminina e provocadora soou pelo quarto com ar vindo de seus próprios pulmões.

— Cuidado com a garotinha indefesa — escutou a própria voz dizer em tom irônico.

O homem riu da coragem da mulher enquanto passava as mãos pela garganta machucada. Tentou pronunciar algumas palavras em resposta, mas a traqueia recém-estrangulada só conseguiu produzir um resmungo.

Lívia acompanhou a cena que se desenrolava a sua frente como se fosse espectadora de um filme dentro da sala escura de um cinema. Podia sentir cada um dos movimentos de seu corpo, cada um de seus sentidos funcionava perfeitamente, mas ela não tinha mais qualquer domínio sobre seus atos. Seu corpo se movia como se controlado por outra pessoa, por outra alma. E essa outra mente que se apossara de seu corpo não tinha medo algum daquele monstro que a atacava brutamente.

Lívia sentiu seu corpo caminhar decidido até a cômoda de cabeceira antes que o homem pudesse alcançá-la e agarrá-la novamente.  Suas mãos agarrarem um grande vidro de perfume que estava sobre o móvel. Com olhos furiosos, viu suas mãos desferirem um golpe com violência no rosto do estranho quando ele a alcançou. Um corte se fez a partir da maçã do rosto até o nariz.

Antes que qualquer grunhido por parte do agressor pudesse exprimir a dor causada pelo golpe, Lívia não foi capaz de impedir que suas mãos se movimentassem agressivamente em busca de novos e certeiros golpes contra a face do homem. Os golpes desfiguraram cada centímetro de pele e osso que compunha a frente daquele crânio.

Por mais que Lívia desejasse parar, seu corpo continuava a agredir a face do homem. Ele caíra no chão e ela se acomodara sobre ele sem piedade, revidando qualquer intensão maligna que ele outrora tivera contra ela.

Sua consciência, o que sobrara em seu domínio, estava enojada, não queria olhar, mas não podia desviar os olhos, desejava vomitar, mas seu corpo não sentia ânsia. Queria loucamente parar com aquilo, mas não podia. Queria gritar!

E um grito soou pelo quarto. E ela olhou para as próprias mãos cobertas de sangue, ainda agarradas ao vidro de perfume fragmentado. Largou-o e saiu de cima do homem com um salto para trás. Olhou de relance para o moribundo caído sobre o carpete. Não era possível reconhecer face alguma nele, onde um dia existira um rosto, milhares de cortes, hematomas e perfurações se misturavam ao sangue e pequenos cacos do vidro de perfume. Um leve chiado de respiração mostrava que ainda havia vida correndo naquele corpo. Os braços do homem balançavam lentamente para o alto em busca de algo que nunca seria alcançado.
O estômago de Lívia revirou e ela vomitou.

Tremia e chorava. Sem forças, ajoelhou-se, apoiou as palmas sobre o carpete e acompanhou sua visão escurecer. Esperou sua mente apagar lentamente rumo à escuridão da inconsciência.

 
 

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<<-- Henrique
Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 12/07/2014
Reeditado em 19/07/2014
Código do texto: T4879581
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