Algures das entranhas

“Lutavam entre si

Um cabo de guerra entre certo e errado

E então o lado bom perdeu”

Quando acordo dentro de mim e me vejo preso em suas garras, ponho-me a chorar. Novamente injustiçado. Todas as maldades do mundo às minhas costas. Todas as maldades atribuídas a mim. E eu aqui, garrado em suas entranhas, chorando as lágrimas de sangue dos pobres coitados lá embaixo, glorificando seu Deus de amor, enquanto Ele me aprisiona em seu ventre mutilado.

Nossa luta remonta aos tempos idos e remotos. Naqueles dias que o mundo não era mundo e nada existia. Era Ele e Eu. E somos um só. Nossa luta não transparece no olhar, somos serenos e benéficos ao executá-la. Enquanto brigamos as maldades da Terra não existem. À época do Éden brigávamos por séculos até que perdi. Ao perder Eva comeu do fruto proibido. Adão foi relegado ao suor do próprio corpo, e ela passou a parir com dor. Eu estava esgotado. Assisti suas maldades com dor na parte do coração que me corresponde. Quando me recuperei tentei travar nova luta para controlar aquele monstro, mas então já era tarde demais. O culpado pela ação de Eva era eu. O culpado pela morte de Abel era eu. O culpado pelas desgraças do mundo ainda sou eu. O livro estava escrito, para guiar aos homens pelo sabor de suas palavras desvairadas e transfiguradas de amor. O livro ainda está aí, para dividir multidões e justificar perversidades.

Aprisionado aqui assisto com amargura as minhas criancinhas sendo molestadas, meus menininhos espancados, massacrados, judiados. Meus queridos perdidos em drogas e podridão. As pessoas passando fome nas ruas, as mulheres parindo os frutos do estupro, ou morrendo de suas ações. Assisto os governos mentirem de forma deslavada para seu séquito, as pessoas públicas proclamarem a violência, os pastores explorarem meus filhinhos com sua empáfia e avareza. Vejo tudo e nada posso fazer. Minhas tentativas frustradas cada vez me cansam mais, cada vez mais estou sufocado e esmagado sob o peso de Seu poder. E os que me adoram, adoram pelas razões erradas, dizem que comigo fazem um pacto, mas não é comigo que o fazem, é com Ele. O que ainda me mantém vivo é a força daqueles que não me creem. Isso o frustra mais do que tudo, pois esses, um pouco me fortalece, um pouco acaba por enfraquecê-lo. Então ele manda seus adoradores fanáticos lá embaixo, pregando fogo e enxofre aos que não creem, para atemorizá-los. Não imagina a efêmera alegria que sinto ao ver suas ameaças rebatidas com sagacidade.

Enquanto os homens daí glorificam um Deus de amor, e temem o Diabo da maldade, tenho que confessar que não sabem de nada. Há mais coisas entre o céu e a Terra do que podes imaginar. O poeta nunca foi tão feliz com essa afirmação. Estão cegos ao poder persuasivo dele. Céu, inferno? Se eu tivesse ganho essa luta, garanto, o Éden ainda seria seu lar, humano.

Somos a mesma face de uma moeda. Ele que me venceu não impede crimes nem atrocidades. Ele brinca com suas vidas e os engana com suas mensagens de amor. (Mas que amor?). Nesse momento suas milhares de orações me arrastam para um abismo dentro de mim mesmo, perdendo minha luz sob a força dele, e se eu sumir – não mais estiver aqui para incomodá-lo, então, aí sim saberás o verdadeiro significado de inferno. O dono do inferno não sou eu, é Ele.

Obs. É uma fantasia, sem ofensas.