O Mal de Constantino (DTRL 17)

O sol da manhã brilhava forte, contudo, ainda parecia noite naquele enorme casarão. O velho Constantino girava o cálice de madeira, mecanicamente. Permanecia com o olhar desfocado, amargurando o abandono daqueles filhos tão ingratos, os quais se recusavam a visitá-lo. A enorme casa, antes cheia, alegre e iluminada, agora mergulhara na escuridão, com fétido cheiro de mofo. A jovem Eleonora, única criada que aceitara ficar, não dava conta dos afazeres sozinha. Além de tudo, arcar com as excentricidades de seu senhor tomava-lhe grande parte do tempo.

Fechando os olhos, Constantino bebeu o vinho de uma só vez, evitando olhar o reflexo produzido no líquido. Lambeu os beiços e notou que a garrafa esvaziara.

— Eleonora! Traga-me mais vinho! Agora! — berrou.

Sua voz, ainda sustentando a potência de anos atrás, ecoou pelo vazio solitário. Eleonora, em um pulo, gritou de volta:

— Estou indo, meu senhor!

A jovem tinha puro coração. Apesar de aborrecer-se vez ou outra, tinha convicção de que abandonar o senhor seria desumano. Deixaria-o entregue aos ventos e própria sorte? Não o abandonaria, mesmo com aquelas estranhas feridas pelo corpo, e com seu passado tão... sombrio.

Ela foi até a adega, apressadamente. Então, cobriu toda a garrafa em um pano, ocultando o vidro, como o senhor sempre ordenara. Depois, passou pelo longo corredor, que possuía todos os espelhos virados para a parede. Nas janelas, longas cortinas cobriam as vidraças, de modo que nenhum reflexo pudesse ser visto; Eleonora já se acostumara a trabalhar com pouca luz. Passou pelos quadros, cujas molduras metálicas foram raspadas até ficarem foscas, para que não refletissem coisa alguma. Finalmente, chegou até o quarto, onde o velho inclinava-se na suntuosa cadeira acolchoada.

—Até que enfim, menina lerda! Agora, vai-te daqui! — resmungou Constantino.

As horas passaram, e já chegavam às duas da tarde quando Eleonora levou o almoço: um prato descoberto, pois a tampa de prata poderia refletir algo.

— Senhor, trouxe sua refeição. — a criada falou, aproximando-se.

Eleonora quase gritara de susto quando o velho subitamente levantou e tomou-lhe o prato. Usando as mãos, Constantino babava e comia, soltando roncos, como se fosse um animal. Há tempos, não usava talheres, pois refletiam imagens. A criada então se afastou, entristecida pela insanidade de seu senhor.

***

Era manhã do outro dia quando Constantino percebeu a chuva. Depois de algum tempo, os pingos cessaram. Há quanto tempo não via um belo céu nublado? Com cuidado, abriu a janela, evitando olhar para as vidraças. Sentiu a gélida garoa tocar seu corpo, e gostou disso.

Mas então, ousou olhar lá embaixo. Ele mirou uma poça d’água sem querer, e o que viu fez sua barriga gelar. Não via seu reflexo, mas uma coisa diferente. Era a criatura que insistia em imitar-lhe os movimentos. Possuía uma boca enorme, com o maxilar totalmente deslocado e inúmeros tentáculos negros, no lugar da língua; tinha horríveis olhos opacos e brancos, que de tão esbugalhados, pulavam das órbitas; na cabeça, cabelos eriçados e brancos, semelhantes ao de Constantino. O velho jogou-se para trás, fazendo enorme barulho no chão de madeira. Eleonora, ao escutar o impacto, correu até o quarto.

— Eu vi! Eu vi aquela coisa outra vez! Ele olhava para mim! — gritou Constantino, arrastando-se para os pés da criada.

— Calma, meu senhor... Eu estou aqui... — Eleonora falou, afagando-lhe como uma criança.

Após algumas horas, a jovem decidiu-se: escreveria uma carta, pedindo ajuda ao irmão, ilustre médico, que sabia de coisas que nenhum outro médico sabia...

***

Um mês se passou, quando em uma tarde, dois cavalos aproximaram-se ao enorme portão. Eleonora avistou de longe: era seu amado irmão Efraim, acompanhado do assistente. Correu e convidou-os para entrar. À porta, Efraim parou. Os dois homens entreolharam-se, nutrindo uma expressão de horror, sem aparente razão. Acomodados no salão principal, dialogaram:

— Diga-me, irmã, por que esta enorme casa é tão escura? — indagou Efraim.

— As vidraças! Elas sempre devem estar cobertas! — respondeu a jovem.

— Mas, por quê? — Efraim insistiu.

— Deixe-me contar melhor. — Eleonora suspirou e prosseguiu. — Senhor Constantino era um homem saudável, anos atrás. Porém, subitamente um mal lhe acometeu! Eu lembro bem, pois mesmo sendo uma mocinha, esse dia nunca me saíra da cabeça: durante a refeição da tarde, onde todos trocavam sorrisos amorosos, Constantino olhou para o vinho que bebia e, sem explicação, jogou-o fora, berrando. Depois, olhou os talheres, e igualmente os repeliu. Em seu ataque de loucura, correu pela casa, e assim que avistava um espelho, quebrava-o. Ele afirmava que um monstro o imitava, onde deveria estar seu próprio reflexo.

Os dois ouvintes novamente trocaram olhares. Logo após, Efraim fez uma pergunta que estremeceu a jovem irmã:

— O que de perverso esse homem fez? Responda-me com sinceridade, querida.

A jovem soltou um gemidinho de surpresa, e antes de falar, endireitou-se na cadeira.

— Nada posso esconder de ti, não é, irmão? Pois bem... Por palavras trocadas entre essas paredes, soube que o velho Constantino não tinha bom coração. Matara rivais de terras, maltratava a própria mulher e, dizem rumores, tinha muitas aventuras com meretrizes em uma cidade próxima. Também ouvi dizer que existe uma estranha doença, que acomete os homens infiéis e os deixam loucos. Talvez, meu senhor Constantino tenha contraído...

— Eu entendo... mas antes que continue, por que não nos serve algo para beber? — falou Efraim.

Eleonora sorriu e foi até a adega. Aproveitando a ausência da irmã, o médico acenou com a cabeça para o assistente, que compreendeu: pegaram um espelho do corredor e foram ao quarto do velho, como se já soubessem o caminho.

— O quê?! Quem são vocês? — vociferou Constantino.

Os dois não proferiram uma palavra sequer. O assistente de Efraim rapidamente colocou o espelho junto à porta do cômodo e saiu. O velho berrou de pavor e jogou objetos contra aquele reflexo, que agora, parecia inquebrável. Eleonora correu assustada em direção ao quarto, mas Efraim tomou-lhe pelo braço.

— Vamos embora daqui, minha irmã! Este lugar não comporta uma bendita e pura alma como a tua!

— Ma-mas, eu não posso! E-eu... — balbuciou a jovem.

— Vamos logo! Precisamos ir! No caminho, te explico!

Foram aos cavalos e deixaram para trás aquela casa, que era tomada por gritos e grunhidos animalescos.

— Por quê? Por que estamos indo embora assim? — perguntou Eleonora, apertando o corpo do irmão para não cair.

— Teu senhor não está totalmente louco. Por algum motivo asqueroso, a sombra de Astaroth pairou nessa casa. — respondeu Efraim, em tom sério.

— Por Deus todo poderoso, é verdade o que me falas?

— Sim, minha irmã. Aquele homem está condenado. Que sofra as consequências de seus atos medonhos!

— Então, o que ele via nos espelhos era a imagem do anjo caído?

— Não, Eleonora! Constantino via a própria alma, imunda e corrompida pela vaidade. Astaroth apenas deliciava-se com o desespero.

E em silêncio, Eleonora, Efraim e seu assistente foram embora. No fundo, a jovem estava feliz, pois iria morar com o irmão, que amava imensamente e que agora possuía fortuna. Eleonora nunca mais seria uma criada...

... Perturbadoramente, mesmo após o cair da noite, viajando por horas, podiam escutar aqueles gritos enlouquecidos, a quilômetros de distância...

[tema: anjo caído]

RRodriguez
Enviado por RRodriguez em 23/07/2014
Reeditado em 24/07/2014
Código do texto: T4892896
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