O homem sem rosto

A pequena Olga não conseguia dormir havia uma semana. Ela tinha medo das coisas que emergiam do escuro, nos cantos distantes do quarto apertado, mas sobretudo, tinha medo do homem lá fora. Os galhos das árvores tocavam a janela quando o vento tentava sussurrar algum segredo seu. Ela sempre acabava se levantando no meio da noite para trancar a janela que sua mãe costumava deixar aberta durante todo o dia, mas naquela ocasião a janela estava fechada. De qualquer modo ela tinha medo de se levantar e aproximar-se do horror que espreitava tudo.

Da janela do seu quarto, no andar mais superior de sua casa, ela podia ver a floresta. Aquelas árvores velhas, cheias de mistérios e cercadas por lendas estranhas novas e antigas sempre havia atordoado seus sonhos, mas há uma semana ela havia visto a coisa.

Ela havia visto o homem sem rosto.

A visão da criatura espreitando-a entre as sombras densas das árvores velhas havia deixado sua mente infantil transtornada. A mãe — preocupada com a mudança brusca de comportamento da garota — não reconhecia a própria filha, via simplesmente uma garota que um dia havia sido dócil e gentil transformada em uma criança problemática e com tendências esquizofrênicas.

Porém durante a noite a agitação de sua personalidade recentemente perturbava voltava ao normal, pois o medo a anestesiava. Ela tinha medo de ver a coisa novamente. A coisa que enxergava sem olhos.

Por outro lado a coisa a chamava, como que inconscientemente. Um desejo quase erótico atormentava aquela garotinha de onze anos de idade, ela temia a criatura sem rosto, mas ao mesmo tempo ansiava por vê-la e poder então saciar aquela estranha vontade que nunca havia sentido.

Um pouco depois das três horas da madrugada, depois de passar mais de seis horas tentando acalmar-se e dormir, ela decidiu se levantar enquanto uma verdadeira batalha acontecia em sua pequena mente amedrontada pelo estranho desejo e pelo medo. Já havia se cansado de chamar sua mãe todas aquelas noites enquanto chorava, naquela noite ela iria confrontar o misterioso homem que via entre as árvores que tanto a assustava e a fascinava. O desejo estranho que permeava seu corpo era maior que o desejo que havia sentido por todas as bonecas e brinquedos que já havia visto ou ouvido falar.

Calçou as pantufas rosadas e perfumadas. Olhou debaixo da cama e concluiu que não havia nenhum monstro ali. Abriu o armário e confirmou sua suspeita de que o bicho-papão não era real. Parou finalmente de fazer cerimônia e foi até a janela dar uma espiada lá fora. Abriu a janela com alguma dificuldade e um vento — o mais aterrorizante e congelante vento que havia sentido em toda a sua vida — invadiu seu quarto. Um pequeno urso de pelúcia caiu no chão, mas aquilo não a assustou.

Ainda com algum receio, fitou a extensão visível da floresta do outro lado da rua, onde a cidade terminava e uma imensidão verde e antiga começava. As nuvens estavam densas, quase negras, preparando-se possivelmente para mais uma tempestade. Por fim se concentrou nas primeiras árvores, aquelas cujos galhos eram mais ou menos visíveis, e procurou o homem estranho. Seu desejo guiava seu olhar aguçado.

Ali estava ele. Quase não conseguiu distingui-lo. Qualquer um teria confundido seus braços com sombras e tons indistinguíveis que se misturavam na escuridão abaixo da copa das árvores. Para Olga, entretanto, era evidente que aquilo ali no escuro era o homem sem rosto. Qualquer um teria dito que não passava de um vulto, mas ela tinha certeza.

Inesperadamente, sentiu o desejo estranho crescer e fazer seu coração palpitar ainda mais rápido. Ela via o homem, mas algo lhe dizia que daquela distancia não era suficiente. A voz de sua consciência dizia que era preciso chegar mais perto.

Sem pensar duas vezes, deixou o quarto silenciosamente, desceu a escada, passou pelo quarto dos pais e teve a impressão de ouvir sutis gemidos frenéticos da própria mãe, mas aquilo nem se quer chamou-lhe a atenção. A única coisa que importava estava lá fora, na floresta, esperando por ela.

Logo estava diante da porta. A chave já estava na fechadura. Da maneira mais silenciosa possível, moveu a maçaneta e abriu a porta com um ruído suave que ecoou pela casa silenciosa enquanto o mesmo ar congelante que havia conhecido em seu quarto ao abrir a janela passou por ela atrevidamente e acomodou-se na sala. Sem nem mesmo fechar a porta, ela caminhou a passos curtos para frente, cruzando a luz minguada do poste em frente a sua casa e a rua estreita que separava sua casa da floresta de onde o homem sem rosto a observava. Mesmo com suas pantufas, podia sentir o frio do asfalto abaixo de seus pés, mas aquilo também não chamou a sua atenção.

Ao entrar finalmente mata adentro, as árvores acolheram sua chegada em silêncio enquanto a escuridão fazia a garota desaparecer da vista de qualquer ser humano que pudesse estar observando. Mas não havia ninguém por perto. Só havia a pequena Olga, as árvores e o homem sem rosto.

Ela andou as cegas por algum tempo, talvez cinco minutos ou meia hora, o tempo não tinha importância e, quando ela finalmente viu o homem a observando, o medo e o estranho desejo se mesclaram de uma maneira tão complexa e bizarra que a garota perdeu totalmente a noção da realidade. De repente, a sua concepção de mundo se resumiu á imensidão da floresta. Na verdade a floresta não tinha mais fim para Olga, a escuridão se havia se tornado tudo.

O homem sem rosto aparecia, desaparecia e reaparecia várias vezes, de quando em quando parecia mais próximo, às vezes parecia um pouco mais distante. Até que em dado momento a noção de distancia também perdeu o sentido. Ela quis correr, mas não havia para onde correr.

O homem sem rosto estava em todo lugar e em lugar nenhum.

Ela gritava e o som de sua voz reverberava dentro de sua cabeça enquanto era sugado pela escuridão que constituía o mundo inteiro. Então depois de um período que parecia-lhe interminável ela viu o homem parado, silenciosamente apreciando sua loucura, diante dela.

Ele estava perto demais.

Olga não conseguia respirar, sentia as próprias mãos apertando sua garganta. O medo imensurável seguiu-se de uma dor que jamais havia imaginado que pudesse ser sentida. Pouco a pouco seus olhos fecharam e o homem diante dela desapareceu na escuridão de suas pálpebras. Nada mais tinha sentido.

No dia seguinte, a família de Olga estava desesperada convocando todos que conheciam para procurar a pequena garota. A encontraram algumas dezenas de metros floresta adentro e ao que tudo indicava, ela havia se sufocado com as próprias mãos, mas aquilo parecia absurdo e bizarro demais. Logo todos passaram a procurar o verdadeiro culpado e, enquanto outras crianças eram encontradas mortas e outras simplesmente desapareciam, vieram á mente da população velhas lendas há muito esquecidas que falavam a respeito de um homem que não tinha rosto e que observava a todos de dentro daquela floresta.

Igor Marques Rodrigues
Enviado por Igor Marques Rodrigues em 30/07/2014
Reeditado em 30/07/2014
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