Um Destino Fatorado - DTRL17

Doze dividido por dois são seis, por dois de novo são três, e por três dá um. Dois ao quadrado vezes três, portanto. Assim fatoramos o doze; decompomos, esfacelamos, como diria minha saudosa professora da quarta série. Assim venho levando minha vida desde aquela época. Eu e os números, sempre juntos. Fatorando, decompondo, esfacelando. Extraindo todas as raízes quadradas. Esfacelando todas as estúpidas perguntas do vestibular. O que nunca consegui, entretanto, foi responder à única pergunta que sempre me atormentou: por que devo continuar vivendo?

Eu manuseava o conteúdo de meus livros como se a verdade fossem. Lia como se não houvesse outra maneira de me inteirar do mundo à minha volta, e para mim, pelo menos, realmente não havia. Visualizava em minha mente o sistema solar, as galáxias, as estrelas, uma confusão interminável de pontos luminosos e coloridos, sendo cada um deles tão grande quanto o mundo que me cercava. E eu, tão pequena que nem mesmo era digna de ser marcada em nenhum deles.

Vivo em uma cidade onde o inverno costuma ser rigoroso demais para um país tropical como o Brasil. O frio me entorpece e enrijece; nada faz sentido quando o mundo inteiro parece estar congelando. Mas não é o mundo inteiro, é apenas a parte que me cerca. Se eu me esforçar muito e chegar até o jardim, então poderei com muita boa vontade sentir o calor do sol. Mas nem isso me alegra mais.

Aprendi a conviver com a minha melancolia. Dedico minha vida a fatorar o meu destino; assim, talvez, poderei um dia desvendar seus segredos como extraía as raízes dos números na escola primária. Porém, creio que a minha vida será curta demais para decompor um mistério tão grande. No máximo consigo concluir que ela não passa de um longo e inevitável pesadelo, do qual é impossível acordar a não ser através da morte. Um pesadelo friamente, rigorosamente, invariavelmente matemático.

Não sinto mais saudades da professora que me ensinou a fatorar os números, nem de nenhuma outra que me tenha ensinado o diabo que for. A cada dia que passa, me sinto mais triste, embora tenha pessoas queridas que dividem comigo seu próprio pesadelo de viver. Não consigo dividir o meu, todavia. Melhor para elas e para todos os outros. Especialmente meu filho, um bebê de um ano a quem dedico os meus melhores cuidados.

Moro ao lado de um cemitério, o que não deveria melhorar muito meu estado de espírito. De fato, entretanto, é um lindo cemitério, sem portão nem muros. Trata-se de um morro, de frente para a rua, coberto pelas sepulturas e cercado por árvores. A casa onde moro não possui muros, ou tipo algum de cercado que não seja o mato selvagem que a separa do morro do cemitério. É tanto verde, adicionado ao colorido das flores que sempre são colocadas como oferta para aqueles que descansam. A presença dos mortos me faz sentir cada vez mais viva. Por que devo me contentar em passar a eternidade apodrecendo debaixo de uma lápide?

Meu destino é ter o corpo fatorado pelos vermes. Serão os platelmintos ou os nematelmintos que desvendarão a disposição das minhas células? Enquanto penso em todas essas coisas, fico olhando pela janela um carro passar de vez em quando. Imagino que todos os seus motoristas tenham um lugar aonde vão e gostariam de estar por algum tempo a mais. Duvido que algum deles deseje um cemitério como morada eterna; no entanto, é para lá que vão todos.

Mas eu lhe falava do meu vizinho. Perdoe-me a distração, não quero que aconteça de novo. Pois bem, no alto do morro do cemitério acontecem coisas muito estranhas. Um pessoal, não sei de onde vem nem para onde deseja ir, chega no meio da noite, desembarca, sobe até o topo do cemitério, de onde se pode ver grande parte da cidade. Os mortos podem não incomodar, mas não se sabe se existe algo que possa deixá-los incomodados, entende...

Pessoas podem ter hábitos estranhos, mas dançar e cantar diante dos leitos daqueles que só querem descansar é um tanto inexplicável. De minha casa não ouço quase nada, apenas um murmúrio fantasmagórico que se espalha pelo ar, assim como o frio, mas esse eu não sei de onde veio.

Com o tempo, me habituei a dormir escutando algo como que uma antiga canção das fadas, suave e ininteligível. Meu sono costuma ser pesado, mas às vezes me sinto tão agitada que custo a adormecer, e fico tentando decifrar no escuro a canção mágica com que se tenta embalar os mortos.

E é por isso, apenas por isso, que não estranho barulhos noturnos de nenhuma espécie. Não dou a menor confiança para o latido dos cachorros, ainda que seja de madrugada. Os ruídos da minha própria mente, em compensação, me fazem andar pela casa depois que todos já dormiram. Passo algum tempo aos pés da cama de meu bebê, vigiando-o, com medo de que os demônios venham do cemitério e o carreguem com eles de volta ao inferno.

Em uma segunda-feira à noite, fui dormir cedo, ao contrário do que costumo fazer, e planejava descansar bastante até a manhã seguinte, como se de qualquer modo não fosse acordar sempre cansada e abatida. Meu plano infelizmente se frustrou, pois acordei no auge da noite fechada, sentindo os pés inchados de frio. Levantei-me bastante zonza, amaldiçoando esse lugar gelado como um necrotério, e fui tentar encontrar um par de meias no escuro.

Acariciava meus ouvidos um murmúrio melódico e bem baixinho, ao qual não dei atenção, por motivos que já expliquei. Estava bastante distraída em uma busca apressada pelo par de meias, ainda embrulhada no edredom, as mãos trêmulas de frio, tateando apenas, quase às cegas. Aos poucos, entretanto, uma percussão inédita juntou-se ao coro, e aumentava de volume tão lentamente que não dei pela coisa.

Encontrei as meias, tornei a me largar na cama, tentei calçá-las por baixo do cobertor, o que ainda levou algum tempo. Depois esfreguei os pés e as mãos, tentando me esquentar um pouquinho. Quando quis dormir novamente foi que percebi o que estava acontecendo.

A canção das fadas agora estava acompanhada por batidas ritmadas. Comecei a me perguntar de onde vinha aquilo, e um sentimento de raiva logo me invadiu quando me lembrei do cemitério. Então não se pode mais nem dormir? Essa revolta começou a me agitar tanto que precisei me sentar na cama, apesar de estar quase congelando. Pensei em me levantar para verificar se meu bebê continua seguro no berço com tantos demônios à solta na madrugada.

Mas creio que dormi logo em seguida, porque mais tarde, quando o sol da manhã bateu à janela e me acordou, eu me encontrava enrolada em cobertores, mas no chão. Percebi que não estava em meu quarto, mas no de meu bebê. Confusa, tudo que podia me lembrar era de ter tido o seguinte sonho:

Estava ainda de pijamas e meias, mas não mais em minha cama e sim no alto do cemitério. Não podia ver muito bem, ainda era noite, mas conseguia ver vários vultos em volta de uma fogueira. Eles cantavam, tocavam e dançavam. Fiquei observando-os passivamente, sem muito interesse, mas também não me incomodei em voltar para casa. Não sentia mais frio algum, e isso me agradava. Talvez minha alma tivesse finalmente aprendido a se decompor, evitando a enfadonha conexão com um corpo de carne.

Havia homens e mulheres, talvez fossem dez pessoas, todos vestidos de preto, alguns com capuzes. Resolvi me aproximar para ver melhor. Não sentia frio, nem medo, e logo percebi que eles não podiam me ver, ou então não me deram a menor importância. Girei em volta deles, sentindo meu corpo tão leve que precisava aproveitar.

Desconfiei que estivesse realmente fatorada, pois só isso poderia explicar a sensível ausência do meu peso normal. Nem me surpreendi ao perceber que flutuava. Tudo não passava de um sonho, pensava, e assim percebi que estava lúcida, em um sonho, mas nem por isso acordei naquele momento.

O pessoal dava gargalhadas e louvava Lúcifer, ao que eu pude perceber. Comecei a pensar se eles não poderiam fazer isso quietos em casa, sem assustar ninguém, quando percebi ali outro intruso além de mim. Os outros não podiam vê-lo, pois eu acompanhava a cena mais do alto e ele ainda estava afastado. Ele trazia algo estranho e comprido na mão, parecia uma arma. Escondeu-se no mato, apertando-a nos braços, e assim que o perdi de vista ouvi um estouro muito alto e forte. Em seguida, mais outro e outro.

Os luciferanistas se voltaram, surpresos, encarando uns aos outros como se decidissem o que fazer. Por fim se prostraram ao chão, dando vivas ainda mais animados ao seu senhor, como se considerassem aqueles tiros uma manifestação de seu reconhecimento. Fiquei observando enquanto eles adoravam o seu deus, ou o que fosse, mas ainda queria observar o rapaz que eu supunha ter atirado.

Ele agora descia o morro, pelo meio do mato e não pelo asfalto, e decidi segui-lo, deixando para trás os fiéis da meia-noite. Algo me atraía para ele como se fizéssemos parte de um todo, só nós dois. Mas ele se embrenhava tanto no matagal que eu tinha dificuldades para acompanhá-lo, o barulho da canção dos luciferanistas me distraía e me impedia de ouvi-lo afastar as folhas. Eu não sabia bem se ele estava fugindo deles ou de mim.

Apressei o passo, temendo que ele seguisse para minha casa, bem ao pé do morro. E se estivesse planejando sequestrar o meu bebê? Empurrei os galhos que se metiam na minha frente e pude me aproximar um pouco. Ele estava desarmado agora, eu precisava chegar até ele, precisava tanto!

Não sabia mais se estava correndo ou flutuando. Em um último esforço, saltei sobre a cabeça dele e o impedi de seguir, apertando seu pescoço com as duas mãos. Havíamos chegado ao pé do morro, e eu não deixaria que ele se aproximasse mais de minha casa. Sorri satisfeita, até que percebi que não estrangulava um homem entre os dedos, e sim o meu próprio filho, já inerte.

Tema: Paranóia

Virginia Barros
Enviado por Virginia Barros em 31/07/2014
Reeditado em 08/08/2014
Código do texto: T4904542
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