DIA DE SORTE

Ele não se sentia muito bem desde seu último trabalho. A investida contra uma propriedade rural, um grande oásis de riqueza em meio às cercanias isoladas do interior, poderia lhe render bons frutos. Muito mais do que obtivera em sua miserável vida de saqueador de categoria duvidosa.

Um plano ambicioso? Sim, era. Mas ele precisava pensar alto, dar um tiro certeiro pelo menos uma vez na vida. E a casa do maior fazendeiro da região era o mapa do tesouro.

Mesmo sem nunca ter disparado um só tiro em sua história criminal, ele levava consigo uma garrucha. Não que ele estivesse disposto a fazer uso do objeto, mas não podia se dar ao luxo de deixá-la em casa. O plano era simples: entrar de forma furtiva na madrugada, enquanto o caseiro estivesse entregue ao mais profundo sono, e levar o maior número de objetos de valor que pudesse. De preferência, os que não ostentassem muito volume. O final de semana estava começando. Os donos da casa estariam no litoral, como de costume.

Ele devia ter desconfiado que aquele não seria o seu dia. O arrepio que lhe percorreu a espinha quando um gato negro cruzou seu caminho, lhe oferecendo um olhar reluzente por entre as sombras, não era um bom sinal. Mas, mesmo receoso, ele seguiu em frente com o plano.

Ele se esgueirou pela vegetação rasteira junto à margem do riacho que corria paralelo aos fundos da fazenda, ali era o melhor ponto para uma invasão. Tudo parecia de acordo com o planejado até que os clarões diante dos seus olhos começaram a concorrer com a luz que vinha do céu. A única iluminação até então.

Os estampidos secos não deixavam dúvidas. Eram tiros sendo disparados em sua direção. Ainda perplexo, sem entender como havia sido descoberto, ele tratou de mover as pernas o mais depressa que o medo lhe permitia.

Ele corria, tropeçava, levantava e tornava a cair. Arrastava-se da melhor maneira que podia. Eram muitos tiros. Terra e mato lançados ao ar em todas as direções. Apesar de a origem dos estampidos ter se mostrado longe, e de não ter havido nenhum indício de proximidade enquanto ele corria pela vida, não era preciso virar a cabeça para notar um perseguidor surgir em seu encalço de um instante para o outro. Era como se num segundo nada estivesse lá, e no seguinte sim.

Ele apertou o passo e vislumbrou o luar refletido no espelho d`água. Seu único objetivo era saltar no rio e alcançar a margem oposta, longe da propriedade do fazendeiro. E assim ele fez. No entanto, antes que seu corpo fosse recebido pelo abraço úmido do leito escuro, um impacto fulminante atingiu sua perna, infligindo-lhe uma dor que jamais imaginara sentir.

Mesmo revestido pelo desespero lancinante de ter dilacerada a carne da panturrilha direita, ele conseguiu ouvir as notas distorcidas de um grito desesperado. Uma voz que não era a sua. Algo que ele jamais viria a esquecer. Entorpecido, ele se deixou levar pela correnteza...

Ele acordou num leito do hospital municipal. Segundo lhe disseram, fora resgatado por um pescador. Preso entre a vegetação ribeirinha, ele estava quase morto. Seu sangue tingia a água de escarlate.

A despeito da mutilação na perna, até que sua recuperação se mostrou acelerada. E, em poucos dias, ele deixava a internação. Decidido a mudar de ares e em busca de uma nova vida, ele deixou o interior rumo à capital. Mas, as semanas se passaram sem que conseguisse arranjar um meio decente de sobreviver. Cansado de mendigar por um prato de comida, ele estava disposto a esquecer a mudança de comportamento e decidira voltar à antiga atividade criminosa.

Munido com uma barra de ferro, ele aguardava num beco escuro por um desavisado que pudesse lhe fornecer algum recurso para aplacar sua fome. A sexta-feira ostentava suas primeiras horas. Era o décimo terceiro dia do mês. Uma data de mau agouro, pensou. Mas não havia aflição maior do que as pontadas que sentia no estômago. Ele já passara privações antes, mas nada comparado ao que sentia naquele momento. Era como se um rio de ácido efervescente corresse por suas entranhas.

Ele gritou de desespero. Um grito tão semelhante ao que ouvira há um mês, nas cercanias da fazenda. Um gato vadio, negro como a noite, se espremeu no fundo do beco. Um sinal de azar, tal qual o que tivera na noite do incidente. Mas o que ele sentiu pelo animal passava longe da inquietação, ele sentia algo mais, um desejo maior e irracional.

Num ato reflexo, o gato já se encontrava dominado em suas mãos. A perna ferida já não doía tanto. O olhar laminado do animal suplicava por clemência, uma consideração que não teria.

Seus dentes rasgavam o corpo do bicho com a voracidade insana que só a fome era capaz de conduzir. O golpe fatal que a presa sentira assemelhava-se, em termos, ao impacto que ele próprio experimentara pouco antes de mergulhar no riacho. Sua mente perturbada tentava conciliar um raciocínio lógico, mas tudo o que conseguia era saborear a melhor refeição de sua vida. Sem sombra de dúvidas, era seu dia de sorte.

Tendo a lua como testemunha, ele enxergava sua nova realidade refletida numa poça d´água. Uma fisionomia diferente, uma vida renovada se iniciava.

Ao saltar para o mundo disposto a tomar dele tudo que lhe pertencia, fora recebido por algo inesperado, mas, ainda assim, familiar: uma dor intensa e definitiva.

O projétil prateado lhe acertara entre os olhos. Um fio quente e pegajoso descrevia um percurso irregular por entre os pelos recém crescidos. Antes de perder para sempre os sentidos e abandonar de uma vez por todas as mazelas de sua vida miserável, ele ainda pôde ouvir uma voz:

- Desculpe-me, rapaz. Talvez eu devesse ter encerrado sua vida há mais tempo, mas não podia me dar ao luxo de matar um inocente. Mantê-lo perto foi preciso. Definitivamente, sexta-feira treze não é um dia de sorte. Pelo menos não para você.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 31/07/2014
Código do texto: T4904759
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