Todos na vizinhança a conheciam. Dia após dia, lá estava ela, cercada pelos pássaros. Eles não eram a sua companhia exclusiva, mas a única que se poderia notar. Ela falava num tom piedoso, olhando cuidadosamente para a direita e, então, para a esquerda. No banco, estava sozinha. A fonte, no centro da praça, juntamente com a estátua de Priapo, era a imagem mais forte e contrastante diante da figura obscura de Eva.
 
No momento exato em que era suposto o espetáculo do pôr-do-sol se iniciar, já era sabido que Eva deixaria a praça. De modo bastante pacífico, ela se levantava e prosseguia até a edícula onde vivia. Era complicado imaginar como alguém da sua idade era capaz de se virar sem a ajuda de ninguém. Ainda assim, não se esperava que alguém chegasse àquela pequena residência, situada nos fundos da casa de Hefesto. O militar aposentado havia alugado a edícula para Eva, desde que sua filha se casara e passara a viver com Beto, um membro da marinha, também. Naquele tempo preciso, Eva estava à procura de um lugar barato onde pudesse passar o resto dos seus dias.
 
Um quarto, uma cozinha e um banheiro compunham a casa. No rack vermelho da sala, havia muitos porta-retratos, curiosamente, em nenhum deles havia fotos. A cena pareceria copiosamente estranha para qualquer pessoa, não fosse o fato de que ninguém jamais apareceria por ali. Uma segunda passada de olhos, mais atenta, permitiria perceber que, afinal, em um dos quadros, tinha uma foto. Aliás, em dois deles. Ambas as fotos mostravam o mesmo objeto: o banco da praça. Não, você não está enganado … os pássaros também estão no retrato. Que imagem mais estranha, um banco com uma macieira ao fundo, folhas espalhadas pelo chão e uma mistura de tons cinzentos a sugerirem um dia de chuva.
 
Tão logo Eva se mudou par a vizinhança, muitos rumores se espalharam. Alguém mencionou que ela era parente do presidente e que por conta de seu estado leviano, ele a teria enviado para aquela pacata cidade, numa tentativa de amenizar o seu sofrimento e a exposição pública de sua figura. Outro morador chegou a afirmar que a senhora tinha sido vítima de um abuso sexual e, apavorada, deixou para trás a cidade grande. Havia ainda os que diziam que ela havia sido uma mulher muito rica, mas que os negócios correram mal e ela se viu obrigada a levar uma vida humilde. Não importa, eram só rumores. Nada de fatos, evidências, provas. Fato mesmo é que as pessoas são criativas o suficiente para inventar histórias e dar vida a personagens que jamais existiram. Todo humano tem grande imaginação. Uns são capazes de a descobrir, outros a mantém cerradas a sete chaves, como se fosse um monstro doentio – talvez seja. Por sinal, imaginação era uma característica peculiar de Eva, para não dizer, assustadora.
As crianças foram as primeiras a notar que Eva falava sozinha. Ela passava horas a fio sentada no banco da praça, conversando, conversando e conversando (falando, falando e falando). Com os pássaros, quem sabe? Não, era um diálogo bastante sério. Eles estavam por perto, mas a cada frase, ela olhava pontualmente para os lados. A seguir das crianças, foi a vez das donas de casa exprimirem uma análise a respeito da boa senhora. Mais hora, menos hora, ela já era o assunto predileto da vizinhança – a nova habitante de Calmaria era uma velha introvertida que se sentia bastante à vontade em falar com as pessoas, mas preferia conversar sozinha por longas horas.
 
Numa tarde de sexta-feira, já passavam das duas da tarde e o sol irradiava seus raios mais fortes. Não era possível avistar nuvens e, como de costume, as crianças jogavam bola na praça. Os pássaros cantavam e … e … por onde andava Eva? A cena não estaria completa até que ela chegasse. O banco bem à frente da macieira continuava vazio e assim ficou durante todo o dia. As novas certamente não seriam boas – algo acontecera com a senhora. Hefesto foi o escolhido para averiguar a casa. Ele bateu lentamente à porta, então bateu mais forte e mais forte. Um silêncio profundo foi a resposta obtida. Optou por burlar a entrada e conseguiu fazer a travessia para o lado de dentro. Na cama, encontrou Eva deitada. Chamou-a, sentiu sua respiração e o pulso. Nossa protagonista já não fazia parte deste mundo – terá feito em algum momento?
 
Eva não era uma personagem popular. Como pudemos notar, não fizera amizades com seus vizinhos, mas todos eles compareceram ao seu funeral, quase num ato de solidariedade. Quando o padre estava prestes a se preparar para iniciar a cerimônia, uma mulher desconhecida chegou ao velório. Selena leu no jornal, por acaso, a nota sobre a morte de Eva e a reconheceu a partir da foto borrada que ilustrava o aviso. Enfim, a reencontrara, caso possamos chamar isto de um reencontro. Era profunda e pavorosa a imagem que guardava de sua ex-patroa, mas era maior a sua pena e piedade. Selena orava todos os dias pela alma perturbada de Eva. Durante anos, trabalhou como babá das gêmeas daquela senhora. Num dia inesperado e de um modo surpreendente, o grande acontecimento tomara forma - sólida, dura, irreversível. As meninas tinham oito meses quando morreram envenenadas pela mãe. Ao que parece, Iris e Cora continuaram a acompanhá-la por toda a vida. No caixão, dois porta-retratos e, em cada um deles, sim, o banco. A mamãe estava segurando as fotos quando fora encontrada morta.
 
Há um reencontro para cada desencontro – neste e em outros mundos, caro leitor.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 22/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4932175
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