VOCÊ MATOU MEU…

Ando sempre por ruas vazias e escuras na minha volta para casa. Moro longe. Muito longe. Você nem imagina o quanto! Chega a cegar a paciência e achatar a bunda quando eu me sento no banco do busão velho e sei que vai demorar pra caralho até descer no ponto onde o poste de madeira já tá cansado e desbotado de tanto me esperar.

Ali, camarada, o vazio só falta te dizer “oi” e as sombras da má iluminação riem na sua cara surrada de tanta pancada da vida. Silêncio de medo. O povo se recolhe. Medo do mal pressentimento que dá um arrepio na espinha e suor nas mãos.

Eu? Ah, a necessidade é minha parceira. Ela me leva; ela me ajuda a pular o esgoto da rua e aqueles buracos escrotos que o lixo disfarça. Ninguém bota fé no que pode rolar numa quebrada. Pois vou te contar uma.

Minha velha vive presa lá em casa. Meto cadeado em tudo! Nas portas, janelas e no portãozinho de madeira da entrada. Ninguém por ali vai perguntar porra nenhuma dela e nem me denunciar por cárcere – palavra do caralho, hein, mano? – privado. Em casa ela já é um perigo. Na rua então…

Outro dia a infeliz quis comer bife de fígado. Acebolado. Marquei de cabeça pra comprar o bife e a cebola. Voltei à noite num calor do inferno e nem fui comprar a parada. Aquilo ia feder no busão na hora que descongelasse. Desci então já pensando na velha torrando meu saco. Mas aí vi que a sorte tinha descido comigo, você vai ver, pois escutei passos.

Continuei andando, mas agora alerta. Devia ser algum malaco. Só podia. Cidadão nenhum circula naquele calabouço tarde da noite. Enfiei a mão no casaco e segurei a barra de ferro que carrego com firmeza; abaixei mais a aba do boné. Foi então que a sorte virou merda e fedeu. Vi duas coisas vindo na direção da minha cara. Naquela penumbra achei que eram duas mãos. Puxei minha barra de ferro e golpeei com toda a força a cara do sujeito. Só escutei um baque no chão sujo.

Quis correr. Nada! Senti alguém tentando bloquear minha passagem. Você matou meu… Sem pensar muito, nem esperei a frase ser completada. Meti a barra na altura da cintura do sujeito e sem parar acertei o pescoço. O cara dobrou. Acertei a cabeça dele. Aquele já era. Fui controlando a respiração até voltar a calma. Você matou meu…

Cachorro. Porra, as duas “mãos” na minha direção na verdade eram as patas do infeliz animal. Virei o corpo do dono. A cara dele não era nada agradável. Que ardesse no além. Apanhei o cão pelo rabo e o arrastei até meu quintal. Peguei a faca que deixo escondida numa fenda do muro, minha lanterna e um saco plástico na mochila. Abri a barriga do bicho, livrei-me do intestino e cortei o que me pareceu ser o fígado. Coloquei no saco plástico. A velha teria o bife dela pro almoço de amanhã. Puxei o que sobrou dele até o fim da rua. Cebola sempre tem em algum resto de lixo jogado.

Cara, contei isso tudo pra você e só agora tô notando esse par de chifres na tua testa. Fantasia ridícula, desculpe-me a sinceridade. A velha gosta de carne de bode também, viu? Ele riu e apontou a pata para a esquerda. Reconheci a cara desagradável e as marcas da barra de ferro ainda cravadas onde eu o havia acertado. Ele apontou com um dedo sujo na direção da minha barriga. Quando olhei, parecia uma peneira; estava cravada de balas. Ele mantinha um riso desagradável na cara escrota. O cara fantasiado de bode indicou que eu o seguisse. Não vi a menor graça em tê-lo como guia.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 12/09/2014
Reeditado em 12/09/2014
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