O Lobo

A lua me chamava para fora, ela queria que eu visse seu brilho. Aquela luz refletia em meus olhos e fazia com que se transformassem em azuis. E não eram só meus olhos que mudavam, mas também o resto do corpo. Tufos de pelos saim da pele, cobrindo-me por completo. Meus lábios se avantajavam para frente, criando uma espécie de focinho. As roupas paravam de servir, pois minha estrutura óssea também mudava: dedos mais longos; as unhas mais afiadas que uma navalha ou que as garras de outro animal; ficava mais alto, diria que com uns dois metros. Me sentia também mais fortalecido, o tamanho dos braços e da panturrilha dobravam.

Essa era a criatura que eu me transformava. Uma criatura que rosnava e babava espalhando saliva por onde passava. Os sinais de minhas pegadas eram inevitáveis, pesava o suficiente para quebrar um piso de madeira. Antes da transformação, pesava meros sessenta e cinco quilos; magro igual um palito.

Novamente, fui chamado pela Lua. Dizia para eu fazer coisas, coisas ruins. Seu cheiro era de sangue, qual me atraia, fazendo com que eu fosse para fora. Saltava da janela mesmo estando fechada, facilmente a quebrava; abri-la seria perda de tempo. Precisava achar algo para me alimentar. Sentia uma euforia, algo como se morresse de fome, literalmente.

Atacaria quem encontrasse pela frente, até mesmo se fosse um parente, até mesmo minha amada esposa. Mas isso não importa, todos já morreram. Eu mesmo os matei, os devorei da forma mais cruel possível. Comi cada um de seus membros, os fiz sangrar até a morte. Não tinha ressentimento contra eles, muito pelo contrário, amava-os. Porém, nada podia parar aquela criatura.

Muitas vezes tentei me matar, mas o monstro teimava em resistir, sobrevivia a cada tentativa. Pulei em torno de três precipícios, possuíam cerca de cinco metros de altura. Caia em pé, movido por instintos animais, como um gato que sempre cai com as patas para baixo. E graças aos ossos resistentes, não quebrava nem um fragmento de meu esqueleto. Meus pés ficavam intactos, sentia somente uma dor amortecedora, mas nada de muito grave. Nada que abalasse minha tenebrosa existência, nada que matasse a fera dentro de mim.

Tive que aceitá-la. Decidi viver daquela forma. Sempre que a luz da Lua resplandecia pelo céu, deixava que aquele animal assumisse minha posição. Assim era melhor, como não conseguia vencê-lo, melhor foi se juntar a ele. Assim, parte de mim se transformou nele também. Éramos íntimos, quase um só. Conseguia controlar parte da criatura, assim como ela conseguia controlar parte de mim. A fome se tornou menor, mas agora também acontecia na forma humana. Às vezes me servia de um prato de fígado humano, ou uma simples taça de sangue. Guardava os corpos no porão, conservava suas carnes em um congelador.

Vivia sozinho em uma fazenda, isolado do mundo. Ninguém se atrevia a me visitar, todos tinham medo de minha presença. Uma vez tentaram queimar minha grande casa, mas fui eu que queimei seus corpos quando apodreceram.

Às vezes saia para caçar. Comia qualquer um em meu caminho, seja animal, ou humano. Porém, estava cada vez mais difícil de capturar presas. Os vizinhos, assustados, se mudaram. Já os animais, iam embora, sabiam que naquele lugar a cadeia alimentar não funcionava; todos eram mortos por mim.

Sem o que comer, senti uma fome assustadora. Cheguei a entrar desesperado em uma caverna e lutar contra um urso. No fim, saí vencedor, mas como um bom vencedor, adquiri várias feridas. O urso havia sido um grande oponente, mas não foi páreo para minha superioridade. Eu era mais forte que ele e inteligente como um físico. Nada é melhor e mais perfeito do que eu.

Fui até o rio, a fim de limpar minhas feridas e beber um pouco de água. Enquanto me lavava, vi minha imagem refletida no espelho. Continuava a velha criatura peluda de sempre, porém, agora banhado no próprio sangue. Nunca acreditei que algo seria capaz de me causar tais ferimentos. Mesmo assim, pude superá-lo. Fui mais forte, fui mais belo, lutei melhor, mostrei quem é que manda. Matei aquela fera nojenta e a expulsei de meu território.

Uivos ressoam. Uivos que não eram meus. Quem será que anuncia sua presença? Há outros de mim por aí? Vieram me caçar? Tomar meu território? Não, não deixarei! Mesmo machucado, lutarei por esse lugar. Só eu devo sobreviver, só eu.

Escuto um rosnado atrás de mim, vinha em meio as arvores, em meio a escuridão. Dois olhos azuis brilhando apareceram, me fitavam, tinham-me como alvo. Senti o pavor percorrer por minhas vísceras. Havia um outro de mim, uma criatura ainda mais forte, mais selvagem e inteligente. Se aproveitaria dos ferimentos e me abriria com os dentes.

Um lobo saiu da selva - só um simples lobo. Senti medo por nada, medo de um lobinho. Segundos atrás, tinha os pelos arrepiados como os de um gato escaldado. Até fico envergonhado por me sentir daquela forma, quase ria de minha tolice. Por fim, soltei um rosnado forte suficiente para espantar o pobre canino. Era uma criatura tão inofensiva que senti dó de comer.

O lobo não retrocedeu sequer um passo, continuou andando. Por que essa criatura tão fraca e indefesa não fugiu de meu rosnar? Por que não para de avançar? Soltei um rosnado mais alto que o primeiro. Fui ignorado. Não entendi como ele não me temia, eu que fui o predador de todos, o líder da cadeia alimentar - superior ainda que os humanos. Estava aqui, agora, sendo ameaçado por um lobo. Deve ser meus ferimentos, pensa que pode me derrotar ferido. O fato do urso conseguir me machucar elevou sua moral. Era isso, só podia ser isso. Me sentia preparado para atacar o lobo, pronto para mostrar quem é que manda.

Mais olhos surgiram da escuridão, eram incontáveis deles. Todos da mesma cor, com o azul da Lua refletido. Em seguida, os pares de olhos se transformaram em lobos, um bando inteiro deles. Se posicionaram bem ao lado do primeiro, rosnavam me desafiando.

Entendi o porquê daquele lobo não temer nada. Observei meu retrato na água, também parecia com ele. Mas havia uma diferença em mim, eu estava sozinho, ele não. Por isso eu é quem sentia medo, era o lobo solitário, aquele em desvantagem. Perdi o respeito, o urso mostrou que era possível me atacar e fazer sangrar. Tentei rosnar mais uma vez, foi hesitante e desesperado. Sequer deu para ser ouvido, os sons dos rosnados do bando eram ainda mais altos que o meu. Não tremeram nem um pouco, diferente de mim, tremia como se fosse inverno. Iria ser morto, morto por aquele bando de lobos.

Antes que pudesse ser atacado, saí correndo. Nem olhei para trás, estava envergonhado demais para isso. Corri, corri e corri, até estar bem longe e não mais ouvir aqueles uivos que me agonizavam.

No fim, também tive de me mudar, perdi meu território.

Endriu Costa
Enviado por Endriu Costa em 29/10/2014
Reeditado em 26/09/2015
Código do texto: T5016548
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