BLOQUEIO

Tinha o teclado à minha frente e ela por trás da cadeira abraçando meu pescoço.

– Sem inspiração alguma para escrever um conto – admiti.

– Sem problemas! Corto seu pau.

– Não seja ridícula. Nenhuma castração psicológica. Faltam ideias, só isso!

– E se eu estiver sendo literal? Senti um frio percorrer a espinha. Ela abraçava meu pescoço. Podia muito bem, num tranco, quebrá-lo. Procurei afastar a má impressão e seguir martelando teclas aleatoriamente.

– Vou preparar uns sanduíches. Concordei e pedi que me trouxesse um copo d'água ou suco se ainda houvesse uma caixa com o líquido dentro.

“Ao me ver sozinho comecei notar uma leve fumaça bruxuleando pelo quarto. Aspirei-a mas não havia cheiro característico de combustão. Girei a cadeira. A bruma parecia formar um rosto disforme que me sorria. Nem sei se era um sorriso ou um esgar de escárnio. Ergui o dedo médio num sinal de foda-se e voltei ao teclado. Gritei para que ela trouxesse também um café.

Algumas letras moveram-se. Mandei que o Poltergeist se fodesse e voltei a encará-lo. Já não era um; eram vários. Não imaginava que aquele quarto coubesse tantos ectoplasmas. Muitos riram da idiotice pensada.”

Ela voltou, sentou-se na cama e me estendeu um sanduíche. Apanhei o suco e o café. Não notou nada?, interroguei-a com os olhos. Os fantasmas estavam congelados numa moldura onde antes havia uma foto nossa ampliada tirada por um lambe-lambe num espaço qualquer de um zoológico. Ríamos como duas hienas sem nenhuma felicidade momentânea. Poucos riram desta outra idiotice.

Num salto curto ela saiu da cama e veio até a mesa do computador. A fumaça ectoplasmática saiu toda da moldura e avançou se espalhando pelo quarto novamente. Pareciam atentos aos movimentos dela.

– Porra, você não os vê?

– Vejo quem? Seus bloqueios? Medos?

Fiz um gesto de “deixa pra lá” com o braço direito. Na tela surgiu a letra “V” digitada por ela. Virou-se e saiu com a bandeja vazia. Voltei minha visão para o teclado, agora operado pela fumaça sem cheiro. VOCÊSERÁASSASSINADOHOJE. Esmurrei-o e teclas voaram. Os monstrinhos também.

Fui para a cama e me encolhi. Estava profundamente frustrado. Senti um cansaço imenso me dominar. Um sono agitado me apanhou.

Quando acordei mais tarde não havia o menor sinal dela. Vi-me vestido com aquela fantasia ridícula dos fantasmas da moldura. Como um autômato, flutuava com eles pelo quarto. Experimentei flutuar por outros cômodos. Igualmente vazios. Um Poltergeist chamou minha atenção para a tela. Vouinspiraroutrosporaí.

Só então percebi que o chão do quarto estava coalhado de sangue. Olhei para a cama, para o computador e finalmente para a moldura. Nela havia uma falha que alguém borrara de vermelho com um dedo. Parecia ser meu lugar a partir de agora.

Cleo Ferreira
Enviado por Cleo Ferreira em 31/10/2014
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