Sangue na Terra da Decadência - PARTE II

A garota caiu sobre a horda de mendigos, ficando sobre eles, sem ir ao chão. Os mendigos, ao perceberem a garota no local, viraram o foco de suas atenções para ela. Seguraram-na por alguns segundos, enquanto ela se debatia. Gil gritava por ela, como um último fio de esperança. Não adiantou. Os mendigos arrancaram ferozmente os braços e pernas da garota, jorrando sangue nos próximos. Gil tampou a boca. Alex virou o rosto. Um dos mendigos, abaixo da cabeça de Laura, arrancou a pele que se encontrava em seu rosto, puxando-a junto dos olhos. Outros mendigos, ferozmente, cravou suas mãos no interior do abdômen da garota e arrancou de lá suas vísceras, alimentando-se delas com sangue ainda quente.

- LAURA! – gritou Gil, debulhando-se em lágrimas

- Vamos! – puxou Adam. Ele sabia que não havia mais o que fazer em relação à Laura. Precisavam fugir, para não terem o mesmo destino que a garota.

Puxando Gil, Adam escalou – sem menores dificuldades – o prédio. Os mendigos que se encontravam no segundo andar do prédio começaram a escalar. Tinham uma facilidade imensurável em escalar aquele edifício, mais do que aqueles que se encontravam na rua.

Adam não deu tempo de Gil de reagir - o rapaz debulhava-se em lágrimas e a imagem da dilaceração viva da garota ainda ecoava com intensidade em sua mente -; continuava a escalar o mais veloz que podia.

Ao perceber estar chegando ao terceiro andar do prédio, Adam distanciou-se das janelas, com o intuito de não ser surpreendido por prováveis mendigos escondidos no primeiro andar. E estava certo. As janelas foram estouradas por braços de mendigos afoitos, que tentavam pegar alguma coisa no ar. Adam ficou feliz em saber que escapara de mais um ataque inimigo.

Adam e Gil se encontravam no terraço do prédio. O lugar era protegido por muretas de proteção, de meio metro de altura, e uma enorme barraca feita de telha e sustentada por pilastras de ferro, a uma altura de três metros.

Os dois se encontravam no chão. Adam se encontrava ofegante – escalar um prédio segurando alguém de ponta-cabeça não era uma tarefa das mais fáceis. Gil parecia ainda se encontrar desolado com a morte de Laura – e com dor de cabeça, por se encontrar tanto tempo de ponta-cabeça.

- Acho melhor começar a reagir, Gil. Não quero ter o mesmo fim que a Laura! – disse Adam, tentando recuperar a normalidade de sua respiração – Sei que você estava de olho nela, mas agora precisamos encarar a realidade.

Gil concordou com a cabeça.

- Desculpa! – respondeu, envergonhado.

- É bom mesmo se desculpar. – disse Adam, se levantando. Estendeu a mão para Gil, que a segurou. Os dois se encontravam de pé. Gil, agora mais racional, fitava de um lado para o outro o local onde se encontravam.

- Para onde iremos? – perguntou

- Não sei. - pelo barulho dos movimentos dos mendigos, Adam sabia que os mesmos se encontravam próximos do alto do prédio – Mas acho que teremos que descobrir rápidos.

Adam fitava parte da mureta de proteção. Ali apareceram braços, que estendiam no ar o restante dos corpos. Faziam força para levantarem o corpo no ar, a fim de colocá-los à altura da mureta. Enquanto isso, Gil fitava de um lado para o outro no local.

- Eles estão vindo. Alguma ideia? – perguntou Adam

- Vamos! – disse Gil. Adam percebeu a fala do rapaz e fitou-o.

Gil saiu correndo, em direção a uma mureta de proteção. Adam estranhou a ação.

- Tem certeza, Gil? – perguntou Adam. Olhou para trás. Dois mendigos já se encontravam em cima do terraço, ainda caídos, mas logo se levantariam.

- Claro. Venha!

Os dois correram a toda velocidade em direção à mureta de proteção, enquanto os primeiros mendigos corriam em sua direção.

Gil saltou, com um só pulo, no alto da mureta de proteção e, em seguida, saltou. Adam estranhou a bravura do rapaz. Ao chegar à mureta, fitou o outro lado. Gil se encontrava seguro, do alto de outro prédio.

- Vem, Adam! – gritou Gil. Seu grito ecoou pelo local.

Adam olhou para trás. Os primeiros mendigos vinham a toda velocidade em sua direção. Era preciso pular. Subiu na mureta de proteção. Não pôde deixar de fitar o beco entre os dois prédios, lotados de mendigos. Desviou sua atenção do local e focou-a no salto. Tinha porte físico para isso. Conseguiria. Saltou. Atravessou pelo ar o beco. Chegou do outro lado, ao lado de Gil.

- Vamos! – disse Gil, tão logo Adam aterrissou do seu lado.

Correram para o interior do prédio. Os mendigos que perseguiam a dupla de amigos saltaram o beco com tamanha facilidade, chegando ao outro lado sem maiores problemas.

Adam e Gil chegaram à rua em frente ao prédio onde aterrissaram no alto, pouco tempo antes. Naquele local, a rua se encontrava completamente vazia, livre de mendigos. Os amigos iriam correr para longe o mais rápido que podiam, entretanto, perceberam haver mendigos à frente, na mesma rua e, por conta destes, começaram a caminhar lentamente, tentando serem inaudíveis. Entretanto, era impossível não chamar a atenção de nenhum dos mendigos – Adam e Gil esqueceram naquele momento de que os mendigos eram seres vivos e, portanto, capazes de enxergar normalmente. E um deles enxergou e partiu em sua direção. Os demais lhe acompanharam.

Gil escutou um barulho oriundo de suas costas. Virou-se para trás. Sobressaltou-se, ao fitar a horda de mendigos às suas costas.

- Corre, Adam! – gritou Gil

Adam virou-se de costas e percebeu o que estava acontecendo. Postou-se a correr, na mesma velocidade que Gil.

Adam e Gil corriam por uma gigantesca avenida, a toda velocidade. Atrás deles, os mendigos, em velocidade similar.

- O que será que aconteceu de errado? – perguntou Adam, aos gritos, enquanto corriam

- Acho que nos esquecemos de considerar o fato de que os mendigos também enxergam. – respondeu Gil

- Merda! – gritou Adam, enfurecido – Gil, você é o inteligente. Deveria ter se lembrado.

- Desculpa. Mas essa situação está fazendo meu cérebro pifar...

- Tudo bem. Não tem problema. Eu te entendo...

- E o que faremos agora?

- Corremos?!

A dupla de amigos postou-se a continuar a correr, e ambos corriam, corriam, corriam, corriam. Sem poder parar, sem poder sentir dor, sem poder fraquejar, sem poder tropeçar, sem poder fazer mais nada, a não ser correr, correr e correr.

Gil e Adam, ao chegarem ao cruzamento da avenida com uma segunda avenida, perpendicular à primeira, estes preferiram fazer a curva a prosseguir na avenida anterior – pois a mesma, àquela altura, se desembocava em uma ponte.

Passaram a correr em uma segunda avenida, larga como a primeira, que margeava o principal rio da cidade – um rio gigante, de largas extensões e de cor barrenta. Perceberam ser o mesmo rio que ambos viram passar por debaixo da ponte bloqueada, na madrugada do dia anterior, quando ainda estavam vivos Laura e Matt.

Gil e Adam encontravam-se a alguns metros de vantagem dos mendigos. Entretanto, não bobeavam – qualquer deslize, àquela altura, era fatal.

Enquanto corriam pela avenida, Gil percebeu haver movimentação de helicópteros no ar de Kantherson City – principalmente no local, onde os prédios eram mais baixos. Olhando mais pormenorizadamente, Gil constatou ser helicópteros do Exército. Sorriu; não aguentou a felicidade. Poderiam ser salvos.

- Adam. Adam. Olhe! – disse Gil, exaltando-se de felicidade, chamando Adam – Helicópteros. Podemos ser salvos.

- Tem certeza, Gil? – perguntou Adam, receoso. Adam sempre temeu o Exército e as forças de defesa estatais.

- Claro que tenho! – respondeu Gil, ainda exaltado. – Podemos ser finalmente salvos. Vamos. – continuou – Precisamos subir no alto de um prédio.

Só havia um lugar na região alto o suficiente para chamar a atenção dos helicópteros – o Edifício Minnedaly. O Edifício Minnedaly é um prédio de dez andares construído na Marginal Hagar – avenida onde Adam e Gil se encontravam -, frontalmente ao rio de mesmo nome – o principal rio da cidade, no início do século passado. Foi considerado o maior prédio da cidade até o começo da modernização da mesma, na década de 30 e 40, quando apareceram os primeiros arranha-céus, no entorno. Entretanto, na Marginal Hagar, continuou a reinar como maior prédio o Edifício Minnedaly. E era para lá que Adam e Gil estavam se dirigindo.

Adam continua receoso com a ideia. Não gostava do Exército, e tinha um mau pressentimento. Mas, como era uma questão de escolha entre um mau pressentimento que poderia não ser verídico ou uma horda de mendigos ávida em querer devorar sua carne, acabou por aceitar a ideia de Gil. E seja o que Deus quiser!, pensou consigo mesmo, antes de se benzer. Adentrou no interior do prédio, junto de Gil. A porta de vidro blindado abriu-se para ambos passarem e fechou, antes dos mendigos entrarem. A dupla de amigos atravessava a passos largos e rápidos o interior do edifício, com o intuito de alcançar o elevador ou as escadas, que se encontravam postas lado a lado no fundo do corredor.

Correram até o local. Adam, logicamente, foi até o elevador. Apertou o botão do único que se encontrava funcionando. O elevador encontrava-se no 9º andar. Descia lentamente, andar por andar. Adam aguardava com apreensão.

Gil percebeu que os mendigos já se encontravam na porta do edifício. Esta estava começando a abrir, e estes estavam pouco a pouco adentrando no local. O rapaz puxou o braço de Adam e disse:

- Vamos. Não dá mais tempo!

Puxou Adam pelo braço e partiu em direção às escadas. Subiu-as, a toda velocidade. Os mendigos adentraram no local. Lotaram a entrada, mas rapidamente já começaram a tomar o corredor. Adam e Gil encontravam-se alguns degraus de vantagem.

A dupla de amigos continuou subindo os degraus a toda velocidade. Corriam, pulavam alguns degraus, acabava uma escada, rapidamente já adentravam na próxima, sem sequer olhar o andar que se encontravam... precisavam chegar no alto do edifício o mais rápido possível. Passaram assim do 1º andar para o 2º, do 2º para o 3º, do 3º para o 4º, do 4º para o 5º, do 5º para o 6º, do 6º para o 7º, do 7º para... iria passar para o 8º, se fatos novos não acontecessem para mudar todo o rumo da história daqueles dois amigos.

Adam e Gil já se encontravam na escada que dava acesso ao 8º andar, quando Gil, repentinamente, fraqueja. As pernas não aguentaram a corrida quase ininterrupta do rapaz e cederam, fazendo o rapaz bater com o joelho na quina de um dos primeiros degraus da escada.

- Gil! – gritou Adam, virando-se para o rapaz. Ajoelhou-se e postou-se a ajudá-lo.

- O que aconteceu? – Adam não sabia o que ocorrera com Gil. Apenas percebeu que o mesmo caíra quando ouvira o baque de seu corpo no chão.

Gil se encontrava com a mão sobre o joelho e se contorcia de dor. Adam percebia sair pequenos filetes de sangue.

- O que aconteceu, Gil? – o desespero do rapaz era tamanho, pois se podia ouvir com facilidade a presença dos mendigos no andar inferior, subindo a toda velocidade.

- Meu joelho. – disse Gil. A dor era pungente.

O rapaz retirou a mão de cima da ferida. O semblante de Adam se transforma em olhar de repulsa. Era uma gigantesca escoriação, profunda, vermelho vivo, com partes da carne de Gil à mostra.

- Nossa, Gil, foi feio o seu machucado. O que aconteceu?

- Bati na quina do degrau. – disse o rapaz, tampando novamente o machucado. Ainda doía bastante.

Adam fitava as escadas do andar inferior e percebiam já se encontrarem ocupadas pelos mendigos. Olhou para um lado e para o outro. Não tinha para onde correr – não poderia correr para o andar superior porque Gil não iria aguentar; igualmente não poderia correr para longe da escada. O que fazer agora?, se perguntou um desesperado Adam. Não era bom de planos como Gil. Só havia uma coisa para ele, segundo o próprio Adam...

Adam retirou Gil do chão, levantando-o pelos braços.

- O que está fazendo, Adam? – perguntou Gil, surpreso

- Foge, meu caro. – disse Adam. Gil já se encontrava de pé e Adam o largou aí, enquanto dava alguns passos em direção à escada do andar inferior

- O quê, Adam? – Gil estava perplexo

- Anda. Fuja. Vá, o mais rápido possível, antes que eles cheguem aqui...

- E você, Adam?

- Eu vou ficar aqui e lutar com eles.

- Você está doido? – soltou um surpreso Gil – Você não conseguirá lutar contra todos esses mendigos... você vai morrer.

- Antes morrer um só de nós, do que os dois... – disse Adam

Gil não acreditava no que acabara de ouvir. Adam, seu melhor amigo, estava sacrificando sua vida para que Gil pudesse viver.

- Adam, não é justo você sacrificar sua vida em prol da minha. Eu ficarei, e você foge...

- Eu não vou sacrificar minha vida... – corrigiu Adam – Eu disse que irei lutar contra os mendigos, segurando-os aqui, enquanto você foge...

- Mas...

- Você não tem condições de lutar assim, Gil... – disse Adam. E era verdade. Com uma mordida no braço, causado pelo mendigo que devorou Matt, e um machucado no joelho, Gil não iria conseguir aplicar os golpes do shoudetshuju.

- Cala a boca e foge logo... antes que eu te jogue escada abaixo... – disse Adam

Gil abaixou a cabeça e partiu, com dificuldades, em direção à escada. Subiu dois degraus e parou. Virou-se para Adam.

- Valeu, cara. Vou ficar te devendo essa...

- Olha que eu vou cobrar... - respondeu Adam, rindo. Sabia que jamais poderia cobrar de Gil o favor que estava fazendo.

Gil foge do andar pelas escadas. Em seguida, chegou ao sétimo andar os mendigos. Adam já se encontrava com um pedaço de pau em mãos. Ao fitarem-no ali, os mendigos pararam.

- Ah, malditos. Querem comer, né? Mas essa carne aqui não é comestível, não... – partiu Adam, em direção aos mendigos

Gil continuava a subir as escadas. Estava com o coração apertado, por deixar o seu grande amigo para trás, para que ele possa salvar a própria pele. Chegou ao oitavo andar. Fitou o andar anterior. Adam estava brigando com toda força contra os mendigos. Batia-lhes furiosamente com o pedaço de pau que carregava – e sabe-se Deus onde ele o arranjou, completou Gil, em pensamentos -, derrubando-os no chão, com a cabeça esmigalhada. Adam é forte e ágil, rapidinho dará um jeito nesses monstros, concluiu Gil.

Encontrava-se mais animado. Adam vai sobreviver. Vai rapidinho sair dali, e ainda vai derrotar esses mendigos todos, esse era o pensamento reinante na mente de Gil. Postou-se a começar a subir as escadas que davam ao novo andar. Continuou a subir, com a mesma dificuldade que antes. Suas pernas estavam lassas de tanto correr – e faltava tão pouco em sua concepção, pois, para ele, ao chegar ao alto do Edifício Minnedaly os helicópteros o salvariam. Teria de forçar mais um pouco as pernas. Falta muito pouco, pensou, consigo mesmo, para dar ânimo a si próprio.

Com a reposição de ânimo, Gil subiu as escadas do oitavo andar com mais facilidade. Chegou ao nono andar. Lembrou-se de verificar como se encontrava a luta entre Adam e os mendigos. Acreditava que boa parte dos mendigos já se encontraria caídos, com a cabeça espatifada. Fitou o sétimo andar. Sobressaltou-se.

Os mendigos se encontravam de pé, andando, calmamente, cada um levando um pedaço de carne. No chão, no centro, entre os mendigos, encharcado de sangue próprio, estava Adam – ou melhor, o que se encontrava dele, pois o corpo do rapaz se resumia ao tórax e abdômen, completamente revirados e ocos, pescoço e a lateral esquerda da cabeça, igualmente oca.

Gil não conseguia acreditar no que via. Sentiu a perna bambear, sentiu que iria desmoronar ali, seguro na mureta de proteção adjacente à escada que desembocava no andar inferior. Lágrimas começaram a escorrer de seu olho, cada vez em intensidade maior. Gil não conseguia acreditar. Seu melhor amigo, aquele que ele cresceu junto, o seu confidente, o seu quase irmão... morto. Morto. Dilacerado, como um animal em um abatedouro, servindo de comida aos demais...

- Não... – disse Gil, com o rosto tomado pelas lágrimas – Não. Não. Não. – o rapaz começava a aumentar o tom de voz – NÃO! NÃO! NÃO! – gritava o rapaz, socando a mureta de proteção. Em seguida, desatou a chorar. O seu choro ecoou pelo local, penetrando o silêncio reinante.

Gil não percebeu, mas acabou por chamar a atenção dos mendigos para si. Estes, percebendo haver carne fresca a ser devorada, partiram em direção ao rapaz.

Este, todavia, se encontrava completamente alheio ao iminente ataque inimigo. Estava lá, debulhando-se em lágrimas, pela morte do amigo, enquanto os mendigos começavam a tomar o oitavo andar e já partiam em direção ao nono. Estavam famigerados – sempre estiveram, na realidade, mas pareciam estar mais famintos que o comum – e partiam com voracidade em direção a Gil. Este, completamente atônito, alheio ao possível ataque, era uma comida fácil.

Adam estava com a cabeça escorada na mureta de proteção do nono andar, ainda debulhando-se em lágrimas pela morte de Adam, quando, repentinamente, sentiu algo segurando suas costas. Assustou-se. No susto, virou-se de costas. Percebeu estar cercado pelos mendigos.

- Merda! – pensou, consigo mesmo

Um dos mendigos tentou lhe morder, entretanto, o rapaz segurou sua boca. Utilizando-se da força dos braços – mesmo tendo um deles machucado -, Gil colocou-o à frente de outros mendigos, impedindo assim novos ataques.

Entretanto, ainda assim existiam outros mendigos prontos para atacá-lo. E Gil rapidamente respondeu, chutando o rosto de um deles, destruindo o seu nariz e mandíbula.

- Nunca brigue com um lutador de shoudetshuju! – disse Gil, enquanto o mendigo com o nariz destruído foi ao chão

Com destreza, Gil desprendeu-se da mureta de proteção, indo à sua direita, ainda com o mendigo que segurava à frente dos demais. Em seguida, estando com as costas livres, jogou o mendigo preso sobre os demais, derrubando-os no chão.

- É agora! – pensou consigo mesmo. Correu, em direção à escada do décimo andar. Mancava, por causa do machucado, entretanto, estava mais rápido que antes.

Todavia, para surpresa de Gil, os mendigos rapidamente levantaram-se e começaram a correr em sua direção.

Gil correu, correu o mais rápido que pôde – até mesmo que a capacidade de sua perna de aguentar. Mancava, estava mancando demasiadamente, mas Gil não queria que isso fosse fato impeditivo para ele chegar ao topo do edifício.

Continuou a correr, pelas escadas que davam ao décimo e último andar, chegando rapidamente no referido andar. Lá, entretanto, não havia escada para o terraço, ao menos próximos da escada. Gil descobriu que precisaria procurar por ela.

Atravessou o décimo andar correndo, a toda velocidade. Estava em linha reta, não precisava – pelo menos por ora – subir escadas; fatos tais que o ajudavam, por conta do machucado existente em seu joelho.

Gil procurava pelas portas do referido andar se haveria alguma escada, uma vez que não havia nenhuma à mostra. No final do corredor, no lado oposto da escada que desembocava no nono andar, eis que Gil encontra uma porta de madeira, bem rústica, trancada a cadeado. Pelo julgar da porta, lá se encontrava a escada que dava ao terraço.

Um pequeno sorriso de esperança apareceu no rosto do rapaz, pouco antes de escutar os mendigos chegando ao décimo andar, o que retirou por completo sua felicidade momentânea.

- Merda. – disse o rapaz. Procurou de um lado para o outro o que poderia usar para quebrar o cadeado... ou a cabeça dos mendigos, completou Gil, mentalmente.

Fitou o local à procura de algo. Encontrou-o, ao fitar, adjacente à porta trancada, uma segunda porta rústica de madeira, entreaberta, com ferramentas. Isso pode ser útil, disse um Gil mergulhado em um mar de esperanças.

O rapaz caminhou até o local e encontrou diversas ferramentas, dentre as quais várias poderiam ser úteis. Colocou o machado às suas costas – precisaria muito dele, mas, naquele momento, precisava das mãos vazias. Do interior do pequeno cômodo, adjacente à porta trancada, Gil retirou um botijão de gás, uma mangueira e um fósforo. Percebia a presença dos mendigos no décimo andar – estavam parados, próximos à escada. Gil não entendia o porquê. Repentinamente, ele percebe algo.

- Estão... cansados... – disse o rapaz, ao perceber. Gil tirou as conclusões ao fitar os mendigos com a respiração acelerada. Naquele momento, o rapaz lembrou-se de que os mendigos ainda eram seres vivos. Soltou um sorriso. Os ventos realmente estavam a seu favor.

Rolou o botijão de gás até ficar no meio do caminho, à frente da porta, conectou a mangueira ao interior do botijão e esperou os mendigos chegarem perto. Estes começavam a recuperar a respiração. E, tão logo recuperavam a respiração, postaram-se a correr em direção ao rapaz. Este não perdeu tempo. Quando os mendigos já se encontravam próximos o suficiente, Gil abriu o botijão de gás e rapidamente acendeu o isqueiro na ponta da mangueira, criando um poderoso lança-chamas. As chamas apareceram e atingiram o que se encontrava à sua frente – no caso, os mendigos. Estes, por estarem envoltos em grandes quantidades de pano – trapos; roupas típicas dos mendigos de Kantherson City, e até mesmo cobertores, em muitos casos -, rapidamente os mendigos foram tomados pelas chamas.

Ao perceber os mendigos tomados pelas chamas, Gil fechou o botijão de gás, jogou-o longe – a fim de evitar uma explosão – e partiu em direção à porta trancada. Retirou das costas o machado e utilizou-o para quebrar o cadeado. Em um só golpe, o mesmo foi quebrado. Gil abriu a porta. Desembocava em uma escada. Partiu pelo local, subindo o degrau, mais rápido que podia. Embora o final da escada se encontrasse tampado por outra porta, Gil já podia escutar o barulho dos helicópteros passando próximo ao local – o som da esperança, acreditava o rapaz.

Gil abriu a porta que dava acesso ao terraço e posteriormente a fechou – da mesma maneira como fizera na porta outrora trancada. Agora, antes do fogo que os consumia, os mendigos precisariam abrir ou arrombar duas outras portas para chegar ao seu encontro.

Tão logo chegara ao alto do edifício, Gil tinha um panorama de grande parte de Kantherson City – até mesmo da margem oposta do Rio Hagar. Todas as avenidas do local estavam tomadas por mendigos, que ainda devoraram a carne dos últimos vivos que se encontravam na cidade.

Gil sentia certo pesar – ver a cidade que morou por toda a vida naquela situação, cercada de homens que devoraram a carne de outros homens. Ver que nada daquilo que viveu poderia viver novamente. Ver que seus melhores amigos – Guilherme, Meg, Adam... e até mesmo Laura – morreram. Não sabia se seus pais estavam vivos – a ideia de Laura era sair de Kantherson City primeiro, para depois verificar se os familiares estavam bem. E agora todos que estavam comigo estão mortos..., pensou o rapaz, desanimado.

Repentinamente, Gil ouviu o barulho de um helicóptero. Olhou em direção ao barulho. Fitou um helicóptero à sua frente, próximo ao edifício. Naquele momento, uma esperança animadora apareceu novamente no corpo do rapaz. Começou a balançar os braços e a gritar, com o intuito de chamar a atenção dos tripulantes da aeronave.

- Olhe. – disse um dos tripulantes, para o piloto – É alguém vivo.

Gil estava explodindo por dentro de felicidade. Um enorme sorriso aparecia em seu semblante. O helicóptero começava a diminuir sua velocidade. Estava parando, no ar. O rapaz parou de balançar os braços no ar e esperava apenas o helicóptero parar, para que ele adentrasse no local e, segundo ele, iria para longe de Kantherson City. Não sabia para qual cidade ele iria – ele sequer sabia se as outras cidades se encontravam da mesma forma que Kantherson City ou não, mas ele acreditava que não -, mas sabia que iria sair de perto dos mendigos raivosos... de preferência, para sempre...

Repentinamente, eis que tudo muda. Para surpresa de Gil, eis que o helicóptero faz um disparo, que acerta logo abaixo da costela direita. Gil, que se encontrava mergulhado na esperança, sentiu apenas uma fincada no local. Ao fitá-lo, percebeu-o furado, vertendo uma grande quantidade de sangue.

- Ei... – gritou Gil, com dificuldades. Fazer o aparelho respiratório mexer, para ele conseguir falar, fazia as costelas mexerem e, consequentemente, o machucado doer – eu não sou... – antes mesmo de Gil terminar, eis que o rapaz sente outra fincada, agora na região do pulmão direito, tirando completamente a capacidade do rapaz de falar.

Gil sente o seu pulmão inundar com o seu sangue. Não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que era um grande mal-entendido. Estava vivo, não era um mendigo – sequer estava se comportando ou vestido como um. Começa a tombar, ao sentir o corpo pesado. Antes, porém, sentiu uma terceira e profunda fincada, direto no coração. Segundos depois, caiu, já sem vida, de bruços, no terraço do Edifício Minnedaly.

Gil apenas pereceu porque não sabia que o Estado estava querendo esconder a vergonha e o descaso que proporcionaram os eventos de Kantherson City, matando as testemunhas do caso.