Cuidado Com O Que Deseja - Meu Amigo Oculto - DTRL 2014

As lendas são criadas a partir de atos heroicos de homens que altruisticamente sacrificam-se em prol de um ideal maior. Os vilões são esmagados e digeridos pelo tempo, não são exemplos para ninguém.

Poucos foram aqueles que caminharam entre os mortos e puderam retornar aos vivos. Hercules, Orfeu e Enéias são exemplos de heróis que desceram ao reino de Hades para terem suas histórias contadas ao som de liras por trovadores entusiásticos ou numa mesa de bar por fanfarrões alucinados. Houve, porém outro, não um herói propriamente dito, muito menos um vilão, pobre coitado, apenas mais um sofrido meliante de esquina que ousou pensar como um semideus.

Crassos, um sujeitinho franzino, grosseiro, hediondo nas ações, porém inofensivo, não passava de um ladrãozinho de feira que nada de importante fez em sua vida. Se a terra abrisse sob seus pés ninguém verteria uma mísera lágrima em seu louvor. Fisicamente desfavorável, mal podia erguer uma espada comum a sua laia, de uma adaga era que se valia. Ladrão ladino, possuía varias costelas quebradas pelo encontro desproporcional com algum cajado irritado, nem por isso tomava rumo. Os trocados que conseguia davam para sustentar o vicio de vinho barato. Alimentos, servia-se a vontade nas barracas alheias.

Foi numa dessas noites de bebedeiras acompanhado de seus comparsas que seus ouvidos acusaram uma bela oportunidade.

Na mesa ao lado, homens de corpos esculturais, vergando belas armaduras vangloriavam-se da coragem de seu camarada que sozinho encarou o Erebo, foi ao Tártaro e a pontapés arrancou de lá o famigerado Cérbero tendo apenas como despesa uma mera oferenda a Caronte.

Até aquele instante se mantinha alheio a conversa, seu tipo de pessoa não combinava muito com o grupo, melhor era manter distância. Segurança em primeiro lugar.

Mais a possibilidade de lucro lhe causava uma comichão pelo corpo, mexia com seu intimo. Era esperto, enxergou ali uma grande oportunidade. Aquela ideia, como um embrião no ventre de uma prostituta era indesejável, mas crescia independente de sua vontade. Cedo ou tarde eclodiria em meio a regozijo ou sangue.

Inconscientemente perseguiu toda informação sobre a bem sucedida tarefa. Havia uma logica em sua mente astuta.

Uma moeda para cada alma. As guerras entre nações, as doenças, a criminalidade, os séculos de calamidades. O barqueiro com certeza havia amealhado uma enorme fortuna.

Decidida estava a empreitada. Usaria sua técnica apurada segundo seus próprios valores para aliviar um pouco o peso daquele volume.

Partiu corajosamente só, aos portões do submundo. Cérbero estava cativo, nada além do medo guardava os bastiões da masmorra. Facilmente passaria por uma alma desencarnada que sem ter como pagar vagava pelas margens do Estige.

De fato ocultou-se em meio a figuras disformes, alguns até seus pares, não temia fantasma algum, a não ser o da fome. Crassos caminhava de olhos baixos, temia ser reconhecido. Desviava-se de corpos mutilados implorando clemencia, sufocava-se em meio a podridão.

Levou alguns dias esgueirando-se entre os mortos até alcançar o pequeno cais onde atracava a embarcação.

O condutor não possuía uma tarefa fácil. Eram muitas as lamentações, as tentavas de barganha, tinha também aqueles que sem o soldo tentavam clandestinamente a viagem. O remo ajudava a separar estes e aqueles. No primeiro dia ficou apenas observando a labuta, sem o atrevimento de uma ação. A intenção era investigar o campo, arquitetar uma estratégia. Passaram se ainda três dias apenas observando. Sorte a dele, que naquele lugar fome e sede eram castigo aos condenados.

Mas uma vez brilhou a lanterna dos desesperados. As águas oscilavam ao sabor cadenciado das remadas. Os candidatos ao embarque se acotovelavam ante o cais, as lamurias pareciam aumentar. Entre eles uma alma vivente espreitava, seus minúsculos olhos percorriam o cenário. Como uma serpente traiçoeira preparava o bote.

Na cintura da medonha criatura uma algibeira parecia recheada, no fundo da embarcação grandes alforjes de couro de cabra mantinham-se amontoados.

Quando o ultimo passageiro foi selecionado, a revolta costumeira dos demais definiu a oportunidade. Segurando firme na proa agitou a embarcação. Uma velha esguia caiu levando consigo um abastardo comerciante espartano. Os outros, se agarravam como podiam.

Era o suficiente como distração. Agilmente afanou uma das bolsas, quase não conseguiu ergue-la por sobre os ombros. Pelo volume poderia carregar umas cinco, porém aquele farnel pesava além de seus cálculos. Arrastou-se por entre os condenados, tentava ocultava-se na putrefação que se afastava parecendo temer um contagio.

Com suores frios escorrendo pela testa jugou estar livre antes de cessar a fuga, tinha certeza de ter percorrido vários quilômetros, não podia aguentar mais o peso da fortuna em suas costas. Caiu, mantendo-se inerte por instantes.

Ao erguer-se percebeu que poucos metros havia vencido em sua fuga. A sua volta as almas formavam um semicírculo. Atrás de si, Caronte estendia sua mão pedinte.

Cada moeda continha parte do peso dos pecados a serem espiados.

Apegado ao vil metal, o larapio teimava em devolver. Agora também nem fazia sentido, seu espirito ainda vivente passaria pela provação que só os mortos são capazes de aturar.

Crassos muito medroso iniciou sua longa ladainha, em minutos parecia lamentar mais do que aqueles que por cem anos perambulavam sem destino. Com fogo nos olhos, nada podia convencer o servo da escuridão.

Após muita conversa, o paciente barqueiro pareceu recordar sua própria história. Ele também era um ladrão condenado pela eternidade por um roubo malfadado. Mais que isso, permitiu que Crassos retornasse ao seu mundo portando a bolsa contendo centro e treze óbolos de metal.

Como sei e porque estou contando esta historia?

Alguns dias fui convidado a participar de um amigo oculto. Poderia escolher qualquer coisa. Inadvertidamente desejei uma moeda antiga.

Já fazem dez dias que recebi pelo correio um raro óbolo de metal. Exatamente um daqueles roubados por Crassos. Ao tocar cobiçosamente a peça fui conectado ao mundo dos mortos. Desde então convivo com antigas aparições. Acreditem, por horas fiquei a luz de uma grande fogueira ouvindo as minucias deste caso.

Nada na vida se ganha sem esforço. Quando alguém lhe oferta algo que você muito deseja saiba que alguma coisa você deverá dar em troca.

Qual foi o destino de Crassos? Um herói desconhecido que ousou entrar e sair do mundo inferior.

Visto que sua alma nada acrescentava ao mar de condenados, Caronte propôs um acordo.

Ele poderia retornar ao reino dos vivos com seu pequeno tesouro se concordasse em ofertar uma alma inocente para cada moeda maculada que tanto cobiçou. Somente terminada sua tarefa poderia usufruir o benefício que elas poderiam comprar.

Ele aceitou a proposta, faria qualquer coisa para sair dali com vida, ainda mais tendo permissão de levar o objeto de sua cobiça.

Havia ainda outra condição. Ao deixar o Tártaro, após ver a luz do sol, ele teria um prazo de treze dias antes de iniciar sua parte do acordo e depois contariam cem dias para sua finalização. Isto não cumprido, sua alma para sempre serviria como reparo ao fundo da fúnebre embarcação.

Retirado o peso da culpa, o larapio seguiu pelas sombras da morte. Ao divisar ao longe o portão que lhe daria a liberdade o ladino sacou sua adaga mutilando-se, privaria desta forma o negociador de ter sua recompensa enquanto ele próprio nunca mais conheceria a beleza de um por de sol.

Logrado, Caronte amaldiçoou o tesouro.

Agora cada um que cobiçosamente tocasse qualquer parte daquele tesouro arcaria com a paga de cento e treze almas por cada moeda, até que todas estivessem devidamente expiadas do pecado da ganância.

Infelizmente agora sou eu quem devo saldar esta antiga divida. Tenho ainda três dias para iniciar minha tarefa ou então quem sabe, algum de vocês meus queridos amigos se ofereçam para tomar meu lugar.

É só pedir e desejar esta preciosa moeda de metal.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 28/11/2014
Reeditado em 28/11/2014
Código do texto: T5051189
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.