Ponto de Fissão
Conto campeão*


Observei o céu de chumbo daquela tarde vertiginosa e inspirei o vento frio que anunciava chuva fraca. O sinal já havia soado, como de costume, e me encaminhei para a fila indiana que levava a saída. Parecíamos gigantescas formigas deixando a labuta do dia em direção ao nosso formigueiro pessoal. Naquela tarde, em especial, havia uma sensação de resignação no ar. Como se o mundo prendesse o ar e esperasse pelo estouro do balão.

Os pássaros cantavam em euforia, migrando em grandes massas. O mundo animal estava agitado, mas o nosso não. Saiamos em piloto automático, seguindo um trajeto costumeiro, sentindo o peso do dia sobre nossas costas. Era um trabalho difícil e perigoso, mas a demanda necessitava de pessoas para aquele tipo de serviço, e nós não nos importávamos muito com o que pudesse acontecer.

Mas hoje, se houvesse alguma forma de sentir, eu sentiria arrependimento.

Naquele começo de noite, cheguei em casa com o sol lançando seus últimos raios pela janela leitosa da sala. O brilho tênue ainda era suficiente para iluminar o interior. O sofá, companheiro inseparável de fim de dia, esperava por mim com sua indiferença costumeira. Joguei-me sobre ele e deixei que a cabeça desnuviasse, liberando o estresse em ondas que se espalhavam pela casa. As pernas relaxaram, enviando o alívio através do corpo e da mente. Os pensamentos se desprendiam como fuligem de madeira queimada, desfazendo-se em pequenos e frágeis pontos negros. Uma onda maciça de endorfina atravessando os polos do corpo. Relaxei e esperei a pancada, mas ela não veio. Não era comum o silêncio da chegada, então depois da estranha sensação de solidão, dei-me conta de que estava realmente sozinho.

Chamei, mas não ouvi resposta. Esposa e filho, que nunca tinham o costume de não estarem presentes, não se encontravam. Vasculhei pelos quartos, banheiro e cozinha, mas nada encontrei. Era algo no mínimo estranho.

Voltei para a sala e me sentei novamente, imaginando o que poderia ter ocorrido. O sol ainda derramava sua luz amarelada sobre mim, tão intensa quanto em ponto de zênite. Estranhei.

Olhei para a fora, esperando encontrar a causa do problema, e o ar escapou dos pulmões em uma lufada só.

Uma aglomerado de naves em forma de prato pairavam acima dos prédios, da praça e da cidade inteira. Luzes amarelas, vermelhas, verdes e azuis rodopiavam como um caleidoscópio ensandecido. Vi pessoas levitando, ascendendo envolvidas por uma luz branca e pura. Mais pura do que qualquer uma que eu já tivesse visto. Ouvi um som forte capaz de dilacerar meus tímpanos. Tentei, inutilmente, tapá-los, mas de nada adiantou. Um clarão forte e doloroso desceu sobre mim e me fez perder a consciência. Apaguei, sentindo os joelhos tocando o chão, e em seguida flutuando.
 
 
***

 
Fundo branco em luzes de neón.

Vida esvaindo através de frascos

e instrumentos de cirúrgicos

prata e

preto

incisão no lóbulo frontal

cortes

precisos na altura

do coração

Homem, mulher e criança

Cabelos negros

e recolhimento de amostras

DNA em forma de imagens

Um passeio por monitores gigantescos

Frequência cardíaca que se esvai

e a morte já esperada

Os olhos fecham e a boca seca denuncia a desidratação. Vultos esqueléticos e com mãos viscosas transitam diante de mim. Duas bolas negras me observam, vendo através como um raio-x não natural. Não sinto dor, e o medo esvaí antes de poder se juntar em uma quantia considerável. Penso nas drogas, no governo, no fim de tarde com a família e no cheiro das máquinas da fábrica. A consciência foge

escapando aos poucos

como grão de areia

jogada ao

vento.

 
 
***
 
 
Quando acordei, retalhos das horas anteriores assombravam minha mente. O sofá macio segurava minha cabeça e o corte ainda doía. Passei a mão e senti o viscoso encharcando meus dedos. Levantei-me, assustado, olhando para mão em vermelho vivo. Tropecei em algo, perdi o equilíbrio e cai enquanto virava de peito para o chão. A sensação dos pontos do peito se abrindo é indescritível. A camisa começou a encharcar e então olhei para o lado, buscando o que me derrubara.
E ali, deitada, estava minha esposa.

O vermelho que manchava o tapete era forte. O cheiro de ferro já tomava conta do ambiente. Tentei me arrastar até ela, e quando consegui alcança-la, chamei seu nome. Gritei e implorei que me respondesse, mas não houve resposta. Levantei o olhar, chorando como uma criança, e o terror se completou.

De bruços, jogado por cima da cadeira como um casaco, meu filho descansava. O chão empoçado denunciava a impossível salvação. Cambaleei até ele, chorando agora com mais força, e o abracei. Por um bom tempo permaneci naquela posição, na esperança de que isso pudesse valer de alguma coisa. Mas nada aconteceu...

A escuridão tomava conta da cidade, e com o ferimento escorrendo, tropecei escada abaixo até chegar ao chão. O cimento ainda quente tocava meus pés e não trazia nenhum acalento. Singrei pelas ruas vazias até desistir de tentar encontrar algo. Ao longe, a roda gigante apagada parecia um esqueleto, tão soturna e mortal em sua inanição.

Sem rumo eu andei, seguindo o trajeto em direção à usina, na esperança de encontrar alma viva que fosse. E então senti o estouro.

Um estrondo reverberando pelo chão e se alastrando através do corpo. O alarme disparou de imediato, chiando desesperadamente. O fogo subiu em labaredas gigantescas, iluminando o céu e revelando os invasores. Vi mais uma vez as naves transitando, pausando sobre os prédios e emitindo sua forte luz. Corpos flutuaram e se mantiveram no meio do caminho, estáticos. Os discos voaram em direção à usina e os despejaram no fogo. Como um espectador, eu nada podia fazer. Apenas chorar. Até sentir o corpo levitar e o chão se tornar distante.

Vi meus entes queridos lado a lado de mim, por uma última vez, e cai.  

O amontoado de ferro e concreto se aproximou, enquanto o mundo desacelerava. A névoa radioativa já pairava pelo buraco, e eu pedi, a quem quer que fosse, que pudesse prover pelos que restaram. Fechei os olhos, respirei pela última vez, sentindo o vapor de urânio adentrando os pulmões, e encontrei o chão.
 
 
***
 
 
Hoje eu já não vivo, mas ainda existo. Derreti em um líquido tão volátil quanto água, e derramado sobre os pilares de ferro, minha consciência permaneceu preservada. Eu não como, não falo e nem durmo. Não tenho corpo e sou um fantasma do que um dia fora a vida. Não há uma força capaz de me explicar o porquê. E se há, nunca mostrou as caras. No entanto, Pripyat fora evacuada. Os homens constataram ter sido um acidente. Terrível, inesperado... realmente uma lástima. Mas eu sei.

Sei o que ocorreu, mesmo desconhecendo as motivações que levaram a isso. Mas isso já não mais importa. Chernobyl foi fechada, o sol já não mais brilha aqui, e ao longe eu ainda posso ver. Posso ver aquela roda gigante zombando da vida, sobrevivendo às intempéries, assombrando a noite.

Quanto aos extraterrestres que nos visitaram, nunca mais os vi. Mas hoje já não faz tanta diferença. Creio que nem mesmo eles seriam capazes de resolver meu problema, e sinceramente, estou cansado. Viver sem ser vivo é doloroso. Só quero descansar, e um dia ter a capacidade de sonhar, só para sentir aquela mesma sensação de outrora, onde um sofá indiferente me aguardava em fim de tarde, e beijos e sorrisos alegravam meus dias.

 
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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 01/03/2015
Reeditado em 13/03/2015
Código do texto: T5154232
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