As aflições de Gabriel
 
I
 
Gabriel suportou firme os socos e pontapés, sempre aguentava muito mais do que se imaginaria para um garoto de sete anos de idade, na verdade, há três dias havia completado oito anos, porém tal data nada representava além de números, as velhas aflições permaneciam com ele. Pôs-se de pé quando a chuva de urina acabou e os garotos mais velhos debandaram, cuspiu o sangue e retirou a camiseta da escola atirando-a num regato próximo. Sentia dores e vergonha por estar ferido e sujo, mas a raiva ganhava espaço fazendo-o espumar e trincar os dentes. Não entendia, de todo, o significado daquela sentença sussurrada cada vez mais frequente em seus ouvidos “o irmãozinho da prostituta”, mas supunha ser algo errado e feio. Os apelidos e risinhos davam ganas de esmurrar quantos pudesse, mas os gestos obscenos e todo aquele ar íntimo era o que de fato detonava algo por dentro. “Vou pegar a tua maninha assim, e assim”, e os traquejos chamavam a raiva, explodia e saía vitorioso no mano a mano, mas não demorava para ser surrado em grupo.

Caminhou furioso para casa e bateu a porta com tanta força que o relógio preso à parede se espatifou no chão, mas isso não surtiu qualquer efeito, pois a dorminhoca permaneceu deitada sobre o sofá. Aproximou-se dela e fez das mãos duas bolinhas, o rosto estava lavado em lágrimas. Olhou-a ressonar vestida com minúsculas roupas brilhosas após mais uma noite fora. Conflitos maiores que ele rasgavam sua infância atirando-o num nível incerto de idade, jamais entendeu por que o dono da boca havia retirado a vida daquela que ele chamava de mãe, mas sabia que aquilo não tinha nada a ver com línguas e dentes.

“Se tu ficar de conversinha, as pessoas do governo vêm me prender e te coloca numa casa que só tem doido.”

Era o que ouvia sempre que perguntava algo, e agora, mesmo que o intento de esmurrar aquela mulher e exigir respostas fosse grande, os velhos medos tomavam espaço. Permaneceu com os punhos erguidos, mas já não tinha coragem de desferi-los, a ideia de segui-la e ver de perto o que fazia quando o deixava trancado e sozinho no quarto, afluiu e ele afrouxou os músculos sentando-se diante da TV. De tudo o que mais intrigava era a sensação de sentir-se pequeno, como se sua vida fosse um livro fechado só para ele.

Despistou a fome com pedaços de pães velhos, e quando se lembrava da surra recebida há pouco, olhava para outra e meneava a cabeça afastando qualquer dúvida ou medo na decisão tomada.  Pela noite, o jantar vagabundo veio seguido das reprimendas. A irritabilidade gratuita era a forma de mantê-lo calado e tolhido.

Subiu as escadas, foi para o quarto e esperou o som da chave e bater de portas, sentindo o peito pulsar elétrico. 
Seguiu com os olhos os passos e remelexo da mulher até que ela desaparecesse na esquina, depois abriu a janela e atirou a tábua de passar roupas nos os galhos mais firmes do abacateiro próximo. Sem pensar mais em nada, seguiu no rumo de baixo.

Os ventos em prévia de chuva traziam o frio e chacoalhava a árvore tornando a descida mais difícil. Quando tocou o chão e observou o feito, o sorriso de contentamento não se demorou por muito tempo no rosto, pois nuvens de uma coloração púrpura se condensavam acima do seu telhado. O medo de perder o rastro era superior, e o menino passou a correr no asfalto perguntando de si para si por que havia demorado tanto para fazer aquilo. Vez por outra, os olhinhos castanhos se lançavam para cima e se espremiam estudando as nuvens estranhas, a noite também tinha o clima mudado repentinamente causando maior estranheza ainda.

Gabriel percorreu a ruela sentindo sobressaltos com ar lúgubre trazido pelo lusco-fusco e clarões que lambiam o entorno. Na travessa a sua frente, as poucas pessoas que passavam seguiam apressadas temendo a chuva. As perninhas magras estacaram no fim de um muro e as mãos foram levadas ao queixo onde os dedos tamborilaram frenéticos (um costume seu). O frio e o medo comprimiam a garganta de Gabriel, que viu mulher dar com a mão para um ônibus e ingressar nele. Permaneceu agachado para não ser visto e depois avaliou se seguia no mesmo rumo ou não. Sabia que o ônibus iria até o centro da cidade, mas em que ponto deveria descer?

Enquanto decidia se permanecia ali ou voltava para casa, um vendaval elevou à poeira que o deixou cego por alguns instantes, sentiu as primeiras gotas desabarem furiosas fazendo um som líquido e alto ao espatifar-se no asfalto, e então partiu em regresso. Correu para casa contraindo os músculos todas as vezes que os lampejos clareavam tudo, as roupas ficaram ensopadas num piscar de olhos com a enxurrada que aumentou numa profusão absurda. A desgastada sandália quebrou e foi abandonada sobre a grama na frente da casa, e próximo do abacateiro ele se deteve ao ver um raio e ouvir um fragor ensurdecedor. Recurvou-se pondo as mãos nas orelhas, e logo tornou a ficar ereto e apressou-se galgando os primeiros galhos no rumo de cima.

Entretanto, os olhos não puderam conceber o que viram, raios desceram da nuvem púrpura e crisparam o vazio enterrando bolotas no solo, do tamanho de uma moranga banhadas em faíscas fluorescentes. Logo seres saíram delas com seus vários membros de coloração chá, como asas de baratas. Não eram lulas, nem polvos, muito menos gafanhotos, mas tinham formas que lembravam cada um desses seres. O menino abraçou o troco da árvore e fechou os olhos numa atitude pueril como se assim afastasse a visão daquelas formas inumanas. Os seres corriam escalando as paredes das casas e depois tudo o que se escutava eram gritos.

A ânsia do medo e curiosidade o fez abrir os olhos no mesmo instante que recebeu um jato gosmento e translúcido certeiro no rosto. A sensação narcótica instantânea o fez desprende-se e cair sobre o gramado, e um odor semelhante ao de um percevejo mesclado a cânfora, rescendeu chamando o vômito que esguichou empapando o rosto. O clamor dos vizinhos era ouvido, e Gabriel, pasmo de medo, via-os correr em desespero porta afora caindo imóveis quando jatos lançado das bocas dos seres o alcançavam. O frio congelou a espinha ao perceber aqueles cocurutos triangulares com grandes olhos de aparência líquida, que se prostraram sobre seu corpo o observando sem qualquer expressão. Enquanto os clarões dos raios demarcavam as silhuetas das criaturas e um brilho circular se formava nas nuvens roxas, um grito débil escapou pela boca de Gabriel antes de perder as forças.
 
— Gabriela!
 
II
 
Os tamancos podiam ser ouvidos distante, ela seguia arrumando a saia que insistia em subir, e também passava a mão nos cabelos desalinhados. O movimento na ruela onde morava era estranho, o sol mal havia subido nos céus e tanta gente já estava ali, apinhada. Deu uma corridinha e parou ao ouvir lamentos em voz alta, pensou que algum mendigo houvesse sido morto, mas a cada pedaço de chão que percorria, percebia que havia algo mais. Correu por fim segurando a pequenina bolsa próxima do seio e quase não conseguiu romper o grupo de pessoas paradas na frente de sua casa. Havia choro, e homens de uniforme. Rombos no solo próximo do velho abacateiro eram fotografado e palavras de ordens se seguiam com propósito de debandar os curiosos.

Entrou apressada, sem deixar de cismar ao perceber a tábua de passar roupas, caída no chão. Percorreu a casa chamando pelo nome do menino, mas não havia qualquer resposta. Quando a porta do quarto dele foi aberta, a mulher procurou em cada recanto, frustrando-se ao perceber que Gabriel não estava ali. As lágrimas rolaram com sabor de remorso mesmo que as ideias estivessem tumultuadas e que não houvesse tempo para reflexão. Nunca permitiu que ele a chamasse de mãe e todas as vezes que aqueles olhos a encaravam, Gabriela sentia cada vez mais próximo o momento de ser julgada por ele.  
 

III
 
Gabriel não sabia em que realidade estava, as sensações tomavam conta dele e quando pensava que as iam perder a consciência de vez, descargas quentes, elétricas, o despertavam fazendo-o urinar e evacuar ao perceber que seu corpo era manipulado por seres inumanos. Aguentou desperto a introdução de algo em seu nariz que arranhou a garganta e penetrou fundo, e então foi inserido em um tanque transbordante de muco entorpecente divagando entre o sono e a vigília.  Sem que soubesse catéteres eram inseridos e mudanças fisiológicas aconteciam evocando constituições primitivas do DNA humano; que emergiam impelidas por uma torrente de enzimas mutantes. O alargamento da compatibilidade com o material exógeno permitiam o êxito das transformações. Os espasmos constantes eram controlados por fios introduzidos no cérebro, gostos indescritíveis invadiam a sua boca, mas o pior eram as visões que se erguiam.

Homens com pernas de insetos cambaleavam amparados por aquelas falanges compridas, cabeças cujos membros seguiam colados, dispensando o tórax, como uma aranha bizarra, corriam pelo chão. Seres híbridos de vasta coloração pululavam, fazendo-o sentir-se num pandemônio real, e desejando ver um rosto amigo, escutar os gritos e reprimendas de Gabriela, mas ela não estava ali e a cada instante ele sentia que se perdia e perdia também parte da consciência e os poucos sentimentos que sua curta vida o ensinara restando apenas o medo e a raiva.

Muito tempo se passou até chegar o momento de ser despertado de vez.
 

 
Demorou para perceber que respirava ar ao invés de muco, o chão era arenoso e recebia uma luz fraca. Via contornos redondos, mas ainda sentia as ideias atabalhoadas que o faziam crer que o frio congelava também o seu sangue, e por esse motivo o peso nas pálpebras insistiam em se manter fechadas, no entanto as imagens numa tela, atrelado ao zunido constante, aos poucos chamavam a
 atenção dele. Permanecia deitado percebendo que aquilo era inconcebível. Um homem com asas de morcego tentava fugir de outro que mais parecia um tritão. Logo ele entendeu que o cenário ali exposto era o mesmo onde estava. O vídeo seguia intercalando outras imagens, sempre de disputa.

Quando a luz aumentou, as energias despertaram, o calor o fez querer ficar erguido dando uma sensação de liberdade, mas o susto duplo ao notar que não estava sozinho e que já não era mais o mesmo, deixou-o petrificado.  No lugar da pele, escamas de uma coloração ultravioleta, garras negras logo após os dedos, que também não eram os mesmos. Sua sombra projetada no chão o fazia estremecer, e a violência dos sentimentos entrelaçava-se formando um novelo de ódio.   Na tela a sua imagem era exibida e o que ele via era um lagarto monstruoso que remexia a cauda involuntariamente conduzida pela raiva e fisgões na nuca.

Hordas de seres, calados até então, urraram alto assim que um portão foi aberto e um ser-escorpião adentrou. O “lagarto menino” não sabia para onde direcionar a atenção. Estava numa arena, preso em uma redoma transparente, junto de criaturas de cabeças ovóides, chatas, cilíndricas, triangulares... que zumbiam e agitavam seus diversos membros  numa aquarela de tons jamais vista.  A primeira investida veio, e sem que ele pudesse pensar, foi desviado do golpe ao sentir descargas de choque. Não compreendeu por que se movia involuntariamente, até que longas pinças o feriram e ele caiu. Então percebeu os tentáculos cheios de ventosas sobre a redoma e os olhos gigantescos com um “Q” de deboche.

Como se fios estivessem atados em seu tórax, cabeça e membros, sentiu puxões e tremulou como a marionete que era para lá e para cá ouvindo o coro dos que presenciavam aquele duelo. A cauda, rija como espada, invadiu certeira na face do escorpião-homem e ele bamboleou clamando alto com a voz engasgada pelo sangue. O chão tingiu-se de vermelho e uma nova descarga cessou o lamento elevando a poeira quando o ser caiu inerte no chão. O alarido ensurdecedor seguiu ante a vitória, mas o lagarto, que ainda guardava vestígios do que foi Gabriel, não pôde acreditar no que acabara de fazer.

O queixinho triangular ergueu-se para o alto e um bramido agudo ecoou, numa tentative vã de expurgar toda a raiva e frustração guardada desde que se entendeu por gente (!). O silêncio trouxe a eternidade em segundos que cristalizou o tempo. Ele tamborilou o queixo com as garras, controlando primeiro o frenesi da cauda, depois os raios que explodiam por dentro também passaram a ser ignorados.  Os passos seguiram vacilantes devido aos dolorosos comandos vindos das mãos alienígenas sobre a redoma, mas ele aguentava e prosseguia no rumo do grande portão, indiferente se conseguiria transpassá-lo
ou não, a única certeza que possuía, era a de que deveria seguir em frente a qualquer custo. 
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 01/03/2015
Reeditado em 13/03/2015
Código do texto: T5154568
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