Prove um Gole do meu Veneno

Ser o que se é de verdade, sem máculas, simples, verdadeiro, que não suga o sangue de ninguém, sem hipocrisia, autêntico, amado e venerado pelas pessoas, são qualidades que estão cada vez mais difícil de encontrar nesta multidão de almas penadas e marcadas. No entanto, procurando com lupa e peneirando bem os restos, pode ser que apareça alguém com tais características e satisfaçam o garimpador. Embora raras, porque caipira ninguém quer ser, essas almas penadas existem e são encontradas em locais de movimento intenso de massa: com a cigarro de palha em cima da orelha, botinas nos pés, as bocas da calça pula-brejo cortando as canelaa, bigode amarelado pela queima do rapé, escorado na bengala, veneno no coração e sorrindo de si, do mundo e para o mundo; além de possuir o que humano nenhum possui que é veneno no sangue e espontaneidade nas palavras, Zé Bedeu é boa praça. Não há um, digo um, que o reprove e não se engrace com o sujeito.

- Rahraharahrah. Eu solto mesmo cusparadas de veneno. Duvidas? Quer mesmo ver, então leia?

Em trajes de gala, Zé Bedeu chegou ao shopping dos humildes que são as feiras; (preferencialmente em dia de pagamento) incontinenti as mãos levantaram-se acenando para ele. O senhor simples retribuía a todos com um aceno e para alguns, parava para contar histórias.

- O senhor me conhece seu Hildeu, sou antigo no pedaço, quantos pessoas contaminei com meu veneno? Nenhuma. No máximo, um terrorzinho, de dizer que cuspo veneno; mas terror não mata ninguém, alerta! E limpou garganta para a cusparada.

- Não, Bedeu; vai em paz! Para sair das trevas, muita luz também, você precisa. Use toda a luz produzida pela Itaipu.

Em qualquer tipo de comércio, o que importa é vender, daí ele chega examina as mercadorias, que no caso, são verduras, frutas e hortaliças. Em uma das bancas, o hilário Zé pega o mamão com um mão e lança a utra para o feirante e pergunta com voz embargada e atropelando as palavras na frase: “Quantucusta umão”.

A vendedora olha o produto que está em sua mão e respondi o valor. Ele deposita o mamão na pilha, lança as duas, e volta a perguntar: “E as duasencalo, tendesconto”? A moça olha espevitada e respondi: “Não. Paga o preço dos dois”.

- Como assim, dois o quê? Perguntei quantucusta duasmão sencalos? Virando as costas, ele gargalha: rahrahrah, falo e peço uma coisa, querem me empurrar outra. Rahrahrah! Hum, esse povo!

Andando sempre sozinho, sem amigos para não contaminá-los, segue o Venenoso. Os clientes perguntam se ele é político e se tem santinho; os feirantes dizem não saber. Ao ver um bolo de gente, solta o berro: “Oia a nota de cem no chão”. Pessoas batem cabeça à procura da tal nota: "Aai minha cabeça! Tá vendo não, filho de puta deslavada"?

- O mesmo digo eu!...caduco velho!

Bedeu venenoso escarnece: “Não trazem dinheiro para feira e querem achar dinheiro? Nesse mundo só tem esperto e pedinte!”

Na caminhada especulativa pelo shopping que o desfile é pelos preços baixos; para em outra banca, essa de verduras e o feirante que não o conhece, interroga: “Vai levar o quê hoje ilustre cidadão”?

- Estou olhando, para minha tristeza, parece que a mercadoria é totalmente orgânica. Da terra, tenra! Regada com água mineral. É isto mesmo?

- Claro. São mais caras, porém só trabalhamos com mercadorias direto do produtor; produzidas artesanalmente e sem agrotóxicos.

- Tai o problema: só posso comer produtos com agrotóxico. É recomendação médica.

Estou acostumado desde pequeno. Se não for assim, pode oxidar o meu estômago e contrair uma baita úlcera e por extensão, um câncer. Ai, morro e morto não vai à feira.

- Também temos com agrotóxicos. O senhor olhou as que estão nas caixas? Temos produtos para todos os bolsos e gostos.

- Não. Agora tenho mais medo ainda. O senhor disse que só trabalha com produtos sem agrotóxicos e de repente, aparece com uma produção enfestada de pesticidas, veneno e agrotóxicos? Uma coisa ou outra. Sem chance charlatão, miserável!

Na banca vizinha, ouvindo a conversa, o feirante se intromete, tentando tirar proveito da situação: “As minhas verduras e os meus legumes são cultivados somente à base de agrotóxicos. Toda a plantação é pulverizada com veneno, inseticidas e pesticidas. Venha conferir de perto, mas por favor, tape as narinas e olhos.

- Muito ou pouco agrotóxico?

- Não tenho ideia, senhor! Mas o suficiente para elas se desenvolverem, de modo a ficar tenras e viçosas. Veja que pé de alface lindo e como as folhas são macias.

- Tem certeza mesmo que são cultivadas com agrotóxico? – pergunta. Pega o pé de alface nas mãos, examina bem e mastiga uma folha. Continua: “Parece de boa qualidade, no entanto, qual a quantidade de agrotóxico usada na lavoura”?

- Como disse, o suficiente para que elas fiquem como estão: bonitas, viçosas e saudáveis.

- Não. É melhor, não. O meu médico disse que tenho que comer as verduras com dosagens de agrotóxicos específicas e exatas; nem uma miligrama a mais ou a menos. É questão de vida ou câncer de morte.

Ao lado ficava a banca de pastel, lotada por aqueles que fazem regime e odeiam gordura saturada, onde os cães disputavam à dentadas um tequinho das sobras e numa dessas disputas, engalfinharam-se rolando no asfalto um por cima do outro. Bedeu viu o movimento, saiu correndo, gritando: "Passagem, passagem, passagem! Deixa que acabo com essa bagunça, já". Juntou um porção de cuspe na boca, salivou bem, trouxe o antídoto para aquilo que julgava necessário, chamou os cães oferecendo-lhes um teco de pastel, que pararam e levantaram a cabeça em direção a voz. Nos dentes da frente de Bedeu havia uma falha, que muito o comovia e foi por lá que atirou um: "Tssiii", feito barulho de spray que atingiu em cheio os olhos dos cães, fazendo-os quietarem; com isto, teve tempo suficiente para limpar a garganta e os brônquios, juntar um porção gosmenta e melada na boca bem preparada, chamando-os novamente, disparou uma cusparada na cara daqueles arruaceiros e infelizes, que boi bater e valer: saíram latindo, rosnando, choramingando e praguejando o importúnio de viverem na rua e sem lar para morar. Zé rezingou para a plateia:

- Esses não incomodam mais a feira: caixão e vela preta. 24h e tchau cachorros; adios perros, goodbye my dogs.

Vira-se para uma fulana ao lado e cochicha em seu ouvido: “Sabe, lá na vila, onde moro, fui apelidado de Venenoso”.

Ela para berra para o mundo ouvir: Vene...venenoso? Socorro, socorro, pessoal, pessoal, corram; a feira está empesteada de veneno! Corram! Aceito tudo, menos veneno; corram! Soco...socooooorro! Sai para lááá Venenoso!

A multidão se dissipa. Uns disparam a correr, atropelando-se. Calcanhares são chutados: "Sai, sai, sai, sai! Sai da frente seu lesma, num tá ouvindo que tem veneno na feira"! Outros arregalam os olhos em direção aos dois. Calmamente ele faz a explanação: “Sim, venenoso. Mas não sou um venenoso que mata, rouba, causa terror, estrupa, explode caixas eletrônicos, bebe, cheira, espanca a esposa, explode ônibus, trafica, não paga a pensão alimentícia, que perde tempo ouvindo o Datena, Essssquenta (não sou carioca, falô; cerrrrto!), etc. Sou da paz, inclusive sou religioso e para mim é Deus no céu e os alimentos, a verdura, os legumes, a carne; ambos, todos contaminados com veneno aqui na terra. Gosto mesmo é de dosagem cavalar de veneno. Uuuh, como transpiro veneno! Meu organismo está mais contaminado que o rio Tietê em sua passagem por São Paulo. Fico imensamente feliz por isto.

- Cada religioso com sua religião. Cada terrorista com sua forma de terror.

- E cada peçonheto com sua peçonha. A senhora tem mais um tempinho, então deixa-me explicar melhor: chamam-me de venenoso por eu gostar e muito de alimentos artificiais, enlatados, embutidos e com alta dosagem de agrotóxicos, pesticidas, formicidas, germicidas, herbicidas, inseticidas, piolhicidas, vermicidas; tudo que contém a terminologia cida e produtos afins. Oh, cida que se transforma em inúmeras Cidas para matar os ratos, matar os vírus, matar as ervas, matar os fungos, matar o lobisomem e por fim, matar os homens! Cidas, quem são vocês, vocábulos do latim? Desde pequeno, sempre como coisas com esses ingredientes. Sou hipocondríaco por alimentos infestados com veneno, daí, o apelido de Venenoso. Nem úlcera me pega, isso porque o meu estômago deve estar igual a rosa que os EUA lançou em Hiroshima e Nagasaki. O que a senhora acha? Estou fazendo bem para a minha saúde? Cada Venenoso, com a sua dosagem ideal de veneno.

- Cruz-credo! Credo em cruz, senhor!

Percebendo que foi mal interpretado pela interlocutora, retoma a negociação com o feirante. Este, no afã de vender, pois o meio dia chegava, diz para ele: “Ouvi atentamente o que foi dito para a senhora, talvez possa servi-lhe o que o senhor deseja. Qual é a dosagem receitada pelo seu médico”?

- Ainda não sei. O médico está fazendo o receituário em laboratório de manipulação, para elaborar a quantidade e os tipos de agrotóxicos que poderei comer. Tenho que preservar a minha vida. Obrigado e boas vendas! Rahrahrah.

E acenando as boas vendas para os demais amigos, conhecidos, curiosos, sem venenos, políticos, venenosos, assustadiços, mendigos, medrosos, desconfiados, religiosos, manetas de uma mão só, com duas mãos, peçonhentos, sem peçonha, pasteleiros e feirantes, foi-se Zé Bedeu com as mãos abanando.

- Semana que vem estaremos de volta: eu, o veneno e o meu terrorzinho que não suga o sangue de ninguém. Olha o dinheiro no chão! Êta povo cego e besta, sô! Nada a ver com Zé Bedeu! Olha a cusparada de veneno! Rahrahrah.

Depois de anos e anos frequentando a mesma feira, ao vê-lo, clareiras são abertas e enxurradas de pessoas batem cabeças para a passagem do homem sangue de veneno. Quando descobrem o seu talento e dom, ele migra e vai frequentar as feiras da cidade onde fixar moradia. Boa e feliz viagem Zé Bedeu; aprendi a ser PHD e pesquisador de terror urbano com você!

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 27/03/2015
Reeditado em 02/04/2015
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