A Vingança das Bonecas

Atanagildo Ferreira, mais conhecido por seu Gildo, herdara do pai um pequeno negócio no centro da cidade. O estabelecimento já fora, na década de sessenta, referência no fabrico de bonecas artesanais, sendo que o produto mais procurado eram as mimosas de porcelana. Agora, com poucas bonecas confeccionadas além do estoque, já que o herdeiro optara por não contratar empregados, a loja mantinha-se aberta como espécie de antiquário. Mas, de vez em quando, surgia na vitrine principal, linda e peculiar, alguma nova boneca, o que ajudava a perpetuar o encantamento da sociedade local pela charmosa lojinha.

As bonecas que seu Gildo fazia eram frutos do ofício aprendido com o pai. Pareciam-se muito com as antigas, que estavam cuidadosamente colocadas nas prateleiras, ordenadas por data de confeccção; já as que seu Gildo criava, uma por vez, eram colocadas em exposição durante aproximadamente quinze dias. As meninas colavam o rosto no vidro, admirando a obra de arte.

A boneca que estava na vitrine era uma delicada cachinhos loiros, com a cabeça em gesso; os olhos eram pequenos, azuis e ostentavam compridos cílios castanhos; as bochechas rosadas, salpicadas suavemente por sardas; os lábios bem clássicos, em um cor-de-rosa envelhecido. O corpo era de pano, à exceção das mãos e dos pés, que também eram de gesso. Como roupa, um vestido azul claro rendado com detalhes em crochê, acompanhando os sapatinhos. O gesso não foi pintado como pele, o que dava à boneca um tom acinzentado que remontava aos arcaicos requintes imperiais.

Apesar da tão conhecida e apreciada alma de artista, seu Gildo escondia um lado tenebroso da sua personalidade, e infelizes daqueles que o conheciam. Ou melhor dizendo, daquelas. Aquelas pobres meninas...

A cada final de semana, o suposto homem respeitável de meia-idade viajava sem deixar avisos de para onde ia. Quando fazia as malas e colocava-se ao volante, rumando aos vilarejos dos interiores, já não era mais o seu Gildo das bonecas; elegia um nome qualquer, tirava o gorro cinza de todos os dias e adotava intrigante expressão facial de palhaço circense.

Atanagildo não era um tipo bonito; de estatura mediana, com as espáduas largas e os braços relativamente longos, sofria de um mal qualquer na coluna que lhe curvava o corpo para frente; as mãos eram curtas, roliças e calosas. O que mais chamava atenção, contudo, era o rosto.

Agarrada à cabeça, a cabeleira preta, que era cuidadosamente pintada toda a semana; as sobrancelhas cerradas, quase emendando-se, espessas e irregulares, contrastando com os grandes olhos castanhos; o nariz, poluído por tuchos de pêlos que, por muito grossos, ficavam à mostra, ainda que aparados, pendurava-se por sobre a boca em forma de comprido gancho. A boca, corroborando com a desarmoniosa face, era fina e curta, afastada do queixo; este, por sua vez, completava o desagradável semblante, praticamente confundindo-se com o pescoço por conta da retração.

Àquelas épocas de adolescência, Gildinho - como era carinhosamente chamado pelos familiares - desenvolvera um estranho apreço pelas bonecas da loja. Quando os pais descobriram, ficaram escandalizados, mas o jovem tinha uma explicação plausível. Certa manhã, dona Gilda precisou de uma mala de couro, que ficava guardada em cima do guarda-roupas do filho; foi então que percebeu algo semelhante a uma mecha de cabelo presa em uma das portas do móvel. Ao abrir a porta, esparramaram-se pelo assoalho do quarto dezenas de bonecas, de todo o tipo, oriundas, sem dúvida, da oficina do pai.

Aconteceu que, quando interrogado a respeito da estranha coleção, Gildinho disse que apreciava muito a profissão do pai, e que como os artigos eram vendidos rapidamente, intentava guardar modelos para, no futuro, dar continuidade à tradição da família. E ficou por isso mesmo.

Agora, Gildo colecionava outros brinquedos...

Ainda era dia quando "Antônio" estacionou próximo ao parquinho. Foi até à banca de jornais, comprou uma edição recente de um estadual e sentou-se no banco ao lado, que dava para os fundos da área de recreação infantil. Com as pernas cruzadas e o e jornal aberto, observava confortavelmente o movimento ao redor.

Amanda acabara de chegar com a babá, que estacionou duas vagas à esquerda do carro de Gildo, ou melhor, Antônio. A pequena correu logo para dentro do parque em direção aos balanços, sujando os sapatinhos brancos de areia.

- Amanda! Não vá se emporcalhar toda! Alô? Oi, Roger! É, estou trabalhando ainda...

Assim que a jovem cuidadora distraiu-se ao telefone, Antônio começou a planejar. Comprou um algodão-doce verde e esperou pela oportunidade.

- Ahn? O quê? Onde você está? Ah, já vi você! Certo, mas é um cafezinho e só. Não, a menina vai ficar bem... Tem um monte de crianças ali com adultos.

Acenando para um rapaz no outro lado da rua, a babá foi ao encontro dele, deixando a menina desacompanhada, ainda que por poucos minutos, conforme ela própria deixou claro quando aceitou o convite de Roger.

Ali estava a oportunidade de Antônio. Enrolou o jornal e pôs debaixo do braço; guardou o algodão-doce dento do casaco; entrou no parquinho e sentou-se perto dos balanços. As outras pessoas estavam muito ocupadas cuidando das próprias crianças para reparar no homem ou mesmo em Amanda.

- Ai!

Amanda caiu do balanço.

- Amanda? Oi, Amanda! Você está bem?

- Aham! Quem é você?

- Antônio. Me chamo Antônio. Sua babá precisou

sair e pediu que eu levasse você para passear um pouco, que tal?

- A mamãe sempre disse para eu não falar com estranhos.

- Ah, mas eu não sou estranho! Veja, até te trouxe um algodão-doce!

A menina sorriu, timidamente. Era tão angelical, tão meiga... Parecia uma boneca. Os cabelos loiros ondulados, curtos na altura do pescoço, com uma tradicional franjinha; usava uma tiara vermelha com bordados de morangos, acompanhando o vestidinho rodado. Os olhos pareciam duas esmeraldas de tão verdes e brilhantes.

- Abra. É para você! - disse Antônio, oferecendo o doce. - Me diga, quantos anos você tem?

Acocorou-se junto à criança.

- Assim. - fez o número cinco com os dedinhos da mão direita.

Agarrou a pequenina pela mão e a levou para o carro. O monstro, que na ocasião batizara a si mesmo de Antônio, mas que na verdade era o Gildo, o Gildinho, aquele Gildo das bonecas, escancarava a repugnante boca em um sorriso macabro e nojento, deixando aparecer os curtos dentes superiores.

Antes que anoitecesse, já estava ele em casa. O lugar onde morava nada tinha de parecido com a loja de bonecas; era extremamente sujo e nefasto, afastado da vizinhança. Os cômodos, em estado deplorável, tinham pelos cantos amontoados de panos coloridos, rendas, sapatos, adornos de cabelo e coisas do gênero.

Anoiteceu. Gildo pôs-se a cavar no quintal. Despejou dentro da cova o conteúdo de um saco plástico - a pequena Amanda, fria, nua, violada, morta. Enterrada a sete palmos.

Adentrando à casa pelos fundos, procurou por uma tesoura. Tinha na mão um pano vermelho; era o vestido de moranguinhos. Não dormiu a madrugada toda, costurando, pintando, trabalhando... Tomado por um êxtase demoníaco e condenável.

Às sete da manhã, seu Gildo já estava na sua loja. Orgulhoso, trocava a bonequinha cachinhos de ouro da vitrine por outra; esta tinha cabelo curto e franjinha, olhos verdes, e um gracioso vestido com bordados em forma de morangos, igual a tiara que lhe enfeitava. Como de costume, antes de abrir loja, foi cuidar da limpeza das bonecas nas prateleiras, lugar para onde a cachinhos loiros iria também.

Algo não estava certo; a boneca com a sombrinha lilás estava do lado errado. Como era possível? Ele jamais alteraria a ordem delas, era importante para ele. Percebeu então que todas as bonecas haviam sido mudadas de lugar. Ficou furioso. "Invadiram. Vou avisar a polícia!" Que irônico.

- Alô. Alô? Mas que diabos?

A linha estava muda. O fio do telefone fora cortado. Caída próxima à tomada, estava uma boneca de porcelana. Com a cabeça quebrada por conta da queda, o material, por muito antigo, já havia afinado, tornando-se cortante.

Até parecia que a bonequinha cortara aquele fio. Seu Gildo achou engraçado. Quando virou-se para a porta de saída, teve o caminho bloqueado. Por mais de cinquenta bonecas.

- Acabou a brincadeira. Pode sair de onde estiver.

Apenas silêncio. Seu Gildo preocupou-se. Será que alguém sabia? Conhecia o Antônio, o Álvaro, o Agenor... Seria possível?

- Anda logo! Não tem graça nenhuma.

As prateleiras tremeram forte, derrubando as bonecas que nelas ainda estavam. A maioria, ao cair no chão, quebrou-se. Se algo tinham em comum era o tamanho e o material do corpo: cerca de cinquenta centímetros e o feitio de pano, preenchido com algodão grosso, dando-lhes um peso de aproximadamente um quilo e meio.

Levou as mãos à cabeça. "Minhas bonecas! Minhas bonecas... Destruídas!" Mal teve tempo para pensar quando houve um segundo tremor dentro da loja.

Atanagildo Ferreira, mais conhecido por seu Gildo, herdara do pai um pequeno negócio no centro da cidade. O estabelecimento já fora, na década de sessenta, referência no fabrico de bonecas artesanais, sendo que o produto mais procurado eram as mimosas de porcelana.

Atualmente, é conhecido como "a loja das bonecas malditas", dadas às circunstâncias em que o dono foi encontrado pelos proprietários de comércios vizinhos numa manhã. Coberto por mais de duzentas bonecas, um peso de quase quatrocentos quilos, morto sufocado. No topo da montanha inusitada, uma única boneca estava intacta. Era uma de cabelo curto e franjinha, olhos verdes, e um gracioso vestido com bordados em forma de morangos, igual a tiara que lhe enfeitava.

_________________________________________________ Morituri

Nota da autora: o texto possui poluição visual, inserida propositalmente. Se o leitor não a reparou, talvez sinta, pelo tema em questão, a mesma hediondez que eu.

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 27/03/2015
Reeditado em 30/03/2015
Código do texto: T5185548
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