Os Bichos DTRL 21

Maristela cochilava diante da algazarra de bichos fofinhos que dominavam a tela plana e colorida da televisão. A pequena Ana Tereza, de apenas dois anos, saltava dentro do cercado cor-de-rosa, tentando alcançar o desenho animado enquanto gargalhava, aos gritinhos.

- Bichinhos escrotos – resmungou Maristela, passando a dedilhar distraidamente a tela sensível do celular.

Entediada, pensou em aproveitar a distração da pequena para dar um jeito no caos que dominava a cozinha. Não se considerava uma pessoa desorganizada; deixava as dezenas de copos sujos sempre bem guardados dentro da pia, onde não poderia vê-los a menos que estivesse muito disposta a se autoflagelar.

Não conseguia entender por que a louça suja se acumulava tanto. Nem ao menos cozinhava, em casa ou em parte alguma. Sempre almoçava em um restaurante, e a filha, na escolinha. Aos fins de semana, iam comer fora, ou comprava alguma coisa pela internet. No entanto, o simples ato de passar manteiga ou nutela em um pão parecia multiplicar a louça suja, que Maristela tentava ignorar o máximo de tempo possível. Chegava a comprar pratos descartáveis para não precisar lavar nada, e tinha dois ou três conjuntos de talheres para não ficar sem muito depressa.

Podia não ser muito higiênica, ou ecológica, mas chegava sempre cansada em casa, devido ao trabalho, e o trânsito a deixava estressada e com dor de cabeça. Para completar, a filha queria brincar até altas horas da noite, com as energias na maior carga possível.

“Amanhã é sábado, vou ter tempo de lavar”, pensou, suspirando e voltando a se recostar no sofá.

Antes que caísse de sono, a mãe solteira foi dar o melhor de si para fazer a criança dormir. Mais tarde, adormeceu ela mesma no sofá, enquanto tentava assistir a um filme.

Despertou assustada, com a estranha sensação de ter sido sacudida ou algo assim. Maristela olhou em volta, aliviada por não ter tido tempo de apagar a luz. A televisão havia se desligado automaticamente, o que significava que já era madrugada. Cansada, Maristela levantou-se, na intenção de ir para a cama, mas a impressão de ter visto um vulto a fez virar-se de supetão.

Parecia a sombra de um inseto, na melhor das hipóteses uma borboleta. Algo lhe dizia, entretanto, que não deveria contar com isso. Decidiu ir até a cozinha se armar com uma vassoura e dar um fim a esse incômodo.

“Onde é que guardo mesmo essa vassoura?”, pensou, um tanto confusa e sonolenta. Não se lembrava de ter varrido a casa recentemente. Afinal, o vento se encarregava de espalhar a poeira por ela.

Desistindo, Maristela optou por enfrentar a fera com um pano de prato intocado que encontrou em cima da mesa. Mal teve tempo de pegá-lo e escutou o zumbido de um voo rasante que lhe passou bem perto das orelhas.

Às cegas, começou a golpear o ar, irritada com a presença detestável do inseto. Imitando um ventilador, rodopiou com o pano na mão, mirando em todas as direções, até que teve a sorte de acertar alguma coisa.

Vitoriosa, viu o bicho nojento que agonizava no chão e terminou de esmagá-lo com o chinelo.

- Haha! Quem mandou se meter comigo!

Verificou se a janela estava fechada e saiu da cozinha, apagando a luz. Foi até o quarto, onde trocou as roupas por uma camisola nova cor-de-rosa. Deixou o abajur aceso e se enfiou debaixo dos lençóis.

Estava quase pegando no sono outra vez quando um ruído esquisito a despertou. Praguejando, Maristela se ergueu, pensando em ir ao quarto da filha verificar se ela estava precisando de alguma coisa.

Saiu para o corredor sem acender a luz, afinal não queria que Ana Tereza acordasse de vez e só precisava dar dois passos para chegar ao quarto dela. Entretanto, viu-se obrigada a mudar de opinião quando sentiu os pés descalços pisarem algo que definitivamente não deveria estar ali.

-Cacete! – resmungou, esfregando o pé na parede enquanto procurava alcançar o interruptor.

Talvez fosse melhor ter mantido a casa na escuridão. Seus olhos custaram a crer nas dezenas de baratas, besouros e vários insetos que sequer conhecia vagarem pelo chão e pelas paredes de seu modesto apartamento.

As perninhas de um repugnante invertebrado se despregaram da sola do pé de Maristela, que percebeu, horrorizada, que nem na parede podia se segurar, pois baratinhas gorduchas caminhavam em zigue-zague, fazendo estranhos percursos do teto ao chão. Outras, começando a criar asas, começaram a voar alegremente ao redor da lâmpada que acabava de ser acesa.

Maristela não se permitiu gritar, pois não gostaria nada que a filha acordasse em uma situação daquelas. Precisava sair dali com a menina o mais depressa possível, mas mal podia se mover devido ao nojo. Quando percebeu uma família de ratinhos se acomodar despreocupada sobre o sofá bege-claro, precisou se controlar para não vomitar nos próprios pés.

- De onde saiu essa bicharada?- perguntou-se, atônita, correndo até o banheiro.

Ali parecia estar tudo em ordem. Apenas uma lagartixa filhote a encarava, com muita dignidade, seus olhinhos arregalados em uma espécie de censura. Maristela voltou ao quarto, onde calçou os chinelos. Entrou no quarto de Ana Tereza, recolheu algumas roupinhas às pressas, metendo-as na sacola de bebê, e ergueu a criança ainda enrolada no cobertor, com cuidado para não acordá-la.

Precisava ainda pegar a chave do carro, embora não fizesse ideia de onde poderia se dirigir àquelas horas. Mantinha o chaveiro pendurado junto à porta da cozinha, e foi para lá que tentou ir, rangendo os dentes de nojo ao ter de caminhar esmagando insetos. Muitos deles exalavam um cheiro horrível ao morrer, e a criança em seus braços começou a resmungar baixinho.

-Ai, droga. Vamos lá. Só mais um pouquinho – choramingava ela, desesperada para sair dali.

Em um golpe de sorte, acertou o interruptor da cozinha. Quase deixou a filha cair ao ver a horrível cena que se desenrolava aos seus olhos. A maré de pragas havia derrubado ao chão parte da louça suja acumulada. Isso só podia significar que vinham de dentro da pia. O ralo fora do lugar confirmava a terrível desconfiança. Como que atraídos pela flauta de Hamelin, os imundos animais saíam em fila indiana do buraco desprotegido de sua linda pia de granito e inox.

- Ai meu deus – Maristela tentou libertar uma das mãos para pegar a chave do carro, mas um rato passou correndo pelo seu pé e a fez dar um pulo de susto e nojo. Com isso, a grande bolsa infantil pendurada em seu ombro caiu sobre uma floresta de baratas.

A pobre mulher dobrou ligeiramente os joelhos, apoiando a filha no outro ombro para conseguir libertar a mão para resgatar a sacola. Em um esforço que quase lhe deslocou o cotovelo, tornou a pendurar a bolsa a tiracolo e ergueu a mão para pegar o molho de chaves que lhe garantiria a liberdade.

Em volta do chaveiro, entretanto, uma família de besouros esvoaçava, alheia a seu desconforto. Cinco ou seis esbarraram em sua mão trêmula, e Maristela decidiu avançar mais um passo, quando acabou pisando em uma ratazana.

Dessa vez não pôde evitar uma triste queda direto no chão infestado de bichos nojentos. Conseguiu no máximo impedir que Ana Tereza encostasse no piso, mas pôde ouvir o asqueroso som de baratas esmagadas sob seus próprios cabelos.

Perdendo quase completamente o controle, a pobre Maristela ergueu-se de um salto, chutando ratos de cima das canelas, espanando a cabeça com os dedos, com a filha praticamente pendurada debaixo do braço. Por sua vez, a criança acordou aos berros, enquanto a mãe agarrava a chave coalhada de percevejos e tentava enfiá-la na fechadura.

- Consegui! – berrou histericamente quando a porta finalmente abriu, e lançou-se em direção às escadas.

Qual não foi o seu espanto, porém, quando a retaguarda do exército de ratos surgiu marchando do andar de baixo, avançando impiedosamente em sua direção. Horríveis ratazanas a atropelavam, afinal, ela estava entre eles e o destino que procuravam.

***

- Essa vizinha de cima é insuportável – resmungou Augusto para a esposa, logo na hora do café da manhã.

- Cinco horas da manhã e ela resolve arrumar a cozinha – concordou a esposa – Desde aquela noite em que ela acordou aos berros! Agora é dia e noite arrastando móveis pra lá e pra cá. Como é o nome disso mesmo? Mania de limpeza?

- Ah, sei lá. Hoje é a sua vez de lavar a louça, né?

- Eu sei. Ah, quando eu voltar, de noite, eu lavo.

***

Tema: pragas urbanas, em parceria com a música "bichos escrotos" (não resisti haha, na verdade eu queria escrever sobre cidades fantasmas mas faltou ideia).

Virginia Barros
Enviado por Virginia Barros em 27/03/2015
Reeditado em 28/03/2015
Código do texto: T5185779
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.