Paranoia

A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.

(Michel Foucault)

- Eu estou dizendo, Denise, eles estão atrás de mim!

- Por favor, Renato, não existe "eles". Já conversamos um milhão de vezes sobre isso. Olha, amanhã vamos ver o Doutor Eliott, certo? Ele vai saber explicar melhor pra você. Tenta dormir, já é tarde.

- Não posso. Se eu dormir, eles me pegam. Como é possível você não entender? Cansei de tentar convencer os outros de que não sou maluco. Só me preocupo em me manter vivo.

- Ai, ai, meu irmão. Tudo bem, dorme aqui no meu quarto hoje, no sofá-cama.

- Se eu ficar, pode ser pior. Eu nem deveria ter vindo. Eles podem começar a te perseguir também.

Furtivamente, voltou para o quarto dele.

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- Bom dia! O nome é Renato. Temos consulta marcada pras oito.

- Certo, qual o convênio?

- Particular.

- A senhora é o que dele?

- Irmã.

- Por gentileza, preencha alguns dados pro cadastro dele nesta folha e os seus onde diz "acompanhante". Aqui, a caneta.

1. Nome: Renato de Vargas Moreira.

2. Idade: 23

3. Escolaridade: superior incompleto

4. Estado civil: solteiro

5. Acompanhante (nome/idade/estado civil/relação com o paciente): Denise de Vargas Moreira, 25, solteira, irmã).

Haviam quatro pessoas aguardando.

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PRIMEIRA SESSÃO

- Renato Moreira. Por aqui.

- Olá.

- Olá!

- Sentem-se, por gentileza. A senhorita é a... Denise (olhando o cadastro), certo?

- Sim!

- Então você é o Renato. Como vai Renato?

Silêncio.

- Acho que podemos conversar por enquanto, Denise.

- Bom doutor, meu irmão pensa que tem alguém perseguindo ele.

- Sei. Quando começou?

- Há uma semana. Ele chegou em casa da aula perto das onze da noite, apavorado, dizendo que tinham seguido ele por uma rua escura.

- E por que não considerou verdade?

- Na hora achei que fosse. Ia até ligar pra polícia. O senhor sabe, moramos sozinhos, prefiro ser precavida. Mas aí ele começou a dizer umas coisas sem sentido.

- Como o quê?

- Ah... Que eram uns tais seres que ele viu num sonho...

- E ele falou sobre esse sonho? Quer dizer, antes?

- Não. Só naquela noite.

- E o que ele falou do sonho?

- Não muito. Só que eles, os seres, eram muito perigosos.

- Histórico de doença mental na família?

- Não que eu saiba.

- Drogas? Seja sincera.

- Não. Quer dizer, ele deu em fumar depois que começou com isso...

- Fumar o quê?

- Os meus cigarros.

- E no geral, como ele se comporta? É agressivo? Hábitos?

- Nunca foi agressivo. Mas não tem dormido nem comido direito, e também parou de ir às aulas.

- Aulas de quê?

- Direito.

- Certo. Renato, quer me falar mais sobre isso?

Silêncio.

- Denise, vou receitar uma medicação que vai ajudar a dormir e com o apetite, mas temos que remarcar, pra semana que vem, porque preciso conversar com ele.

- Eu não sou louco!

- Calma, meu jovem. Ninguém disse que você é. Até descobrirmos o que se passa, preciso que você fique mais calmo. Eu quero realmente te ajudar.

- Como, se não acredita em mim?

- Bom, isso eu ainda não sei, você não quis falar comigo.

Silêncio. Passaram na farmácia antes de voltar para a casa.

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SEGUNDA SESSÃO

- Denise, acredito que seu irmão sofra de esquizofrenia paranoide, mas ainda é cedo pra um diagnóstico definitivo.

- Credo, doutor... Que tristeza...

- Mas fique tranquila. As pessoas em geral costumam fazer um bicho de sete cabeças com a esquizofrenia, mas o fato é que (...)

Muitas explicações clínicas.

- Agora, Denise, quero que você saia e o Renato entre. Talvez demore um pouco. Ele tomou os remédios?

- Não teve jeito de fazer ele tomar.

- Chame ele e saia, por favor.

- Renato! O doutor Eliott só quer conversar, tá?

Silêncio. Entrou, ela saiu.

- Senta aí, rapaz. Não precisa sentir vergonha de mim ou medo. Só quero que me conte o que está acontecendo.

Silêncio. Cabeça baixa.

- É importante pra Denise. Você não se importa com ela?

- Tudo bem! Tudo bem. Pela Denise. Eu sei que o senhor não pode resolver doutor, e não leve como ofensa. É que não estou imaginando essas coisas. Mas também não tenho como provar que são reais, por isso estamos aqui.

- Me fale sobre essas coisas. Comece do ponto que quiser.

- Foi numa sexta-feira. Eu voltava da aula caminhando, como sempre. Não leva mais do que dez minutos, não é tão longe de casa. Quando eu entrei na rua Onze com a Tavares Costa, que é bem escura mas bem sossegada e com vigilância, porque é uma rua curta onde só mora rico, eu vi a sombra de um deles entre as árvores da calçada.

- Vamos tentar estabelecer algo aqui. Quem são eles?

- Eu já falo. Antes, vou terminar de contar daquela noite. Aí eu vi a sombra de um deles por entre as árvores. Pensei que fosse um bandido e apertei o passo. Aí vi mais dois na esquina. Um deles se aproximou de mim. Quando vi que eram eles, saí correndo e nem olhei pra trás.

- E a rua estava deserta?

- Aquela parte do bairro é bem calma. Não tinha ninguém.

- Entendo. E depois?

- Depois cheguei m casa e contei tudo pra Denise. Ela ficou chateada comigo, sabe. Pensou que eu estava pregando uma peça nela, pra assustar. Depois ficou nervosa e tal. Brigou comigo até se convencer de que eu não estava chapado.

- E o que, exatamente, você disse pra ela?

- A verdade, doutor. A verdade.

- Eu também gostaria de ouvir a verdade sobre "eles".

Um longo suspiro.

- Uns dias antes, eu sonhei com eles. Eu vi tudo o que estavam fazendo.

- E o que você pensou quando acordou?

- Ué, nada. Que foi um pesadelo. Eu estava assustado e tal, mas achei que foi um pesadelo e fui dormir de novo.

- Me conte o que você sonhou. Descreva as pessoas, seres, objetos, tudo do que se lembrar.

Abriu um bloco de anotação grande.

- Ah, é difícil explicar. Era uma sala gigante, sei lá... E tinha uns tronos de concreto... Tipo naqueles filmes épicos, sabe? Então... E nos tronos estavam sentados reis eu acho. Pareciam com reis, só que eram enormes estátuas. Enormes estátuas de reis, posso dizer assim. Tinham cara de... Ah, doutor, não dá pra explicar.

- Tente.

- Os olhos eram rasgados, pareciam de japonês, só que maiores um pouco. O nariz... Não tinham nariz. E a boca era uma coisa assim cheia de dentes pontudos e acavalados que não se fechava. Eram todos iguais, uns sete ou oito. Usavam coroas que nem as de rei mesmo, capas e cetros. O corpo parecia normal. Gigante, como eu disse, mas que nem de gente.

- Gigante quanto, mais ou menos?

- Ah, uns vinte e poucos metros. Não sei, não sou bom em medir coisas. Umas duas paredes destas aqui, talvez.

- Certo. E o que esses reis faziam?

- Nada. Eram estátuas. Mas no meio da sala tinha o desenho de uma serpente no chão. Foi aí que eu vi o que estavam fazendo...

- Quem estava fazendo?

- Eles! Alguns deles chegavam com sacos pretos e despejavam perto da cauda da cobra... Eram órgãos, doutor! Órgãos humanos! Corações e pulmões, pingando sangue. Quando colocavam eles perto do desenho, a cobra ia ficando vermelha de baixo pra cima, e os órgãos murchando. E eles ficavam felizes!

- Me fale deles agora. Quem ou o que você acha que eles são? Como eles são?

- Não sei quem ou o que eles são. Aliens, andei pensando nisso. Mas, não, com certeza não. Eles são... O senhor não assiste desenhos animados, né?

- Na verdade, não.

- Como é que eu vou explicar então... Eles são só uma sombra fumacenta. Vestem capuzes pretos e tem buracos no lugar dos olhos. Parecem pessoas fantasiadas pro Halloween, mas com efeitos especiais.

- E as cores do sonho, basicamente preto e vermelho?

- E o cinza do concreto das estátuas. E da fumaça.

- Você tem inimigos, Renato? Alguém que você odeie ou que pense que te odeie?

- Além deles? Não.

- E o que aconteceu depois daquela noite? Viu eles de novo?

- Não. Mas posso sentir que estão me observando. Por isso não posso dormir entende? Se eu der brecha, eles vão me pegar!

- E você sabe por que eles te pegariam?

- Não tenho certeza. Acho que porque eu vi o que andam fazendo. Agora devem querer arrancar meu coração e pulmões, ou algo pior.

- Muito bem, acho que acabamos por hoje. Veja, eu não duvido de você. O que você sente é muito real, pra você.

- Claro, porque foi comigo e não com o senhor!

- Eu lhe asseguro que nenhum mal vai lhe acontecer. Vamos fazer o seguinte. Sua irmã quer contratar uma enfermeira pra ficar com você durante a noite, assim você pode dormir, que tal?

- Nem pensar! E se ela dormir? E se eles pegarem ela?

- Pense bem. Faça isso pela Denise. A enfermeira não vai dormir, acredite, trabalho com muitas. E se pegarem ela, bom, antes ela, não é mesmo?

Riu simpaticamente.

- Vou pensar.

- Chame a Denise. Até a próxima, Renato. Tenha cuidado.

- Vou ter. Tchau, doutor. Denise!

A porta bateu depois que Denise entrou.

- Como eu pensava, querida. O distúrbio que seu irmão tem não faz dele violento ou (...)

Muitas explicações clínicas.

- Fique de olho e contrate a enfermeira que indiquei. Voltem semana que vem.

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TERCEIRA SESSÃO

- Bom dia, Renato!

- Bom dia, doutor.

- Sinto em ter que dizer, sua aparência não melhorou muito desde a última vez que nos vimos. E a sua irmã?

- Não veio. Não conseguiu dispensa do trabalho desta vez. Quase pirou, me fez jurar que eu vinha.

- E a enfermeira?

- Ficou a primeira noite e foi embora.

- Por quê?

- Medo.

- De você?

- Não. Deles.

- Ela também viu?

- Ver, ver, não viu. Mas eu contei pra ela e ela começou a sentir eles também.

- É comum que ocorra, entre as pessoas, esse tipo de auto-sugestão com os sentimentos alheios. Existem inclusive casos de histeria em grupo.

- Tanto faz. Não tem nada a ver. Ela fez certo indo embora. A Denise que ficou "p" da vida com ela.

- Compreensível. Renato, chegamos num ponto em que preciso falar abertamente com você.

- É, eu já sei mais ou menos o que o senhor vai dizer.

- Mas me escute, tá bom?

O tom da voz era agradável.

- Tá bom...

- A nossa mente é algo muito complexo que muitas vezes nos prega peças. Me diga, você é religioso? Participa de alguma seita ou grupo religioso?

- Não.

- É ateu? Acredita em alguma coisa superior, como um deus?

- Olha, doutor... Nunca liguei muito pra isso, nunca frequentei religião ou seita nenhuma. Sempre acreditei que existia alguma coisa maior, sei lá... Mas depois do que vem me acontecendo, já não sei mais no que acredito.

- Como eu estava dizendo antes, a nossa mente (...)

Muitas explicações clínicas.

- Um esquizofrênico paranoico. É isso que o senhor pensa que eu sou. Beleza, até tava esperando coisa pior. Vai mandar me internar?

- Ah, não meu jovem!

Riu simpaticamente.

- Mas seria ótimo para você e para sua irmã que você tomasse os medicamentos, fizesse o tratamento direitinho, sabe. O que você sente é muito real, e você tem que aprender a enganar seus pensamentos, sabe, uma vez eu...

Muitas explicações clínicas.

Renato foi embora.

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QUARTA SESSÃO (do jornal local)

MANCHETE

" Jovem de vinte e três anos é encontrado morto pela irmã, de vinte e cinco, em casa. Os dois moravam sozinhos no bairro Três Flechas e a polícia investiga o caso; o garoto foi brutalmente assassinado a golpes de faca, e teve órgãos internos extraídos. A polícia suspeita de ritual de magia negra. A hipótese de tráfico de órgãos foi completamente descartada devido a detalhes do crime que não puderam ser revelados. Não há suspeitos ainda."

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SESSÃO RESTRITA (mediúnica)

- Se acalme, Denise. Ela já vai vê-la. A morte de Renato foi um baque terrível para todos nós. Você sabe que eu não concordo com o que estamos fazendo, né? Mas se vai te fazer se sentir melhor...

- Eu sei tia. Mas a culpa é minha. Eu não acreditei nele...

- Denise? Tenho algo para você.

Era a médium, com um papel na mão.

" Minha querida irmã Denise. Quero dizer que não foi culpa sua o que aconteceu. Eles me pegaram naquela tarde, quando cochilei. Eu estou em paz agora, e não é minha intenção te apavorar com descrições do acontecimento horrível que foi minha morte. A humanidade, por outro lado, corre um grande perigo. Quando a serpente acordar, os reis se levantarão e todos serão escravizados. Está próximo. Aproveite a vida, Denise. Faça aquele curso de música que sempre quis e viva sem medo. O medo os alimenta. Eu te amo. Renato."

Houve choro.

- Tia, é a letra dele!

- Não se deixe levar assim, minha querida. Saiu em todos os jornais.

- Mas não saiu em nenhum o que ele contou pra mim e pro médico.

- O médico pode ter falado.

- Mas não sabia que eu sonhava em cursar música...

- Renato pode ter dito em uma das sessões. Deixa seu irmão descansar, ore por ele. É o que devemos fazer.

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"A ciência não nos ensinou ainda se a loucura é ou não mais sublime que a inteligência."

(Edgar A. Poe)

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Nota da autora: sugiro, a quem não entendeu os tempos verbais e as orações do trecho "manchete", especialmente onde fala das idades, que dê uma olhada nas regras gramaticais. Dica para a leitora não autenticada que entendeu como contradição. - Morituri.

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 20/04/2015
Reeditado em 28/04/2015
Código do texto: T5214205
Classificação de conteúdo: seguro
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