1

A casa da rua San Diego jazia esquecida.
Cada vez mais abarrotada de condomínios, o velho palacete resistira ao tempo e conservava em sua fachada, os gostos prósperos que a tornaram tão sublime mesmo após 70 anos de pé.

Resolvi estuda-la para meu TCC.

Cursando o último ano de engenharia, tive como trabalho desenvolver um estudo sobre arquitetura contemporânea e antiga. Para mim, aquela suntuosa residência era o exemplo perfeito de que eu precisava.

Ela tinha fama de ser mal assombrada. Para começar, o número 666 afastava os curiosos mais temerosos. Em segundo lugar, desde pequeno cresci ouvindo histórias sobre aparições nos cômodos trancados há mais de 60 anos, época em que seu dono se mudara para a Europa após perder o único filho que teria caído num poço dentro do quintal.

Com o passar dos anos a fachada da casa foi envelhecendo e os contos sobre vozes vindas de dentro dela começaram. Iam desde gritos até sombras e vultos circulando o imóvel, como que zelando pelo lugar.

Lembro-me que por volta de meus 09 ou 10 anos tive a impressão de ver uma criança e uma mulher vestida com roupas negras e podres, como se tivesse ficado na água durante muito tempo. Desconhecendo os boatos que cercavam o passado daquela construção, me dirigi até lá, na esperança de sanar minha curiosidade e ver quem, após tantos anos estava lá dentro.

Quando cheguei na calçada em frente ao número 666, fui surpreendido por um homem muito velho. Se minha memória me permite lembrar, talvez ele tivesse uns 80, 90 anos.

Sem pestanejar ele tirou-me de lá puxando minha orelha até o carro, que era lavado naquele momento por meu pai.

Recordo-me de que meu ouvido ainda doía enquanto os dois se cumprimentavam e trocavam palavras um com o outro.

Foi quando eu soube que aquele senhor era o proprietário da casa. O homem que a construíra e anos depois a abandonara a caminho de uma nova vida em um pequeno país no Leste europeu.

Ele tinha voltado apenas para uma visita e retornaria no dia seguinte.
Cresci fascinado por aquele lugar. A ideia do que podia haver lá dentro me levou a estudar engenharia. Em meus planos, estava a restauração daquele imóvel; dar vida nova a uma casa velha e leva-la de volta aos tempos de sua suntuosidade.

Agora, no último ano do meu curso, obtive uma licença da prefeitura para estudar as dependências do imóvel em um período de 24 horas.
Recordo-me das pessoas dizendo para que eu não entrasse lá. Que maus espíritos cercavam aquele lugar, mas simplesmente não me importei.
Se eu pudesse voltar o tempo, teria dado ouvidos as vozes amigas que me em vão tentaram me alertar.

2.

Já passava do meio dia quando abri a porta da casa. A luz da rua cortava a semiescuridão, exibindo móveis luxuosos envoltos em sacos plásticos cujo uma grossa camada de poeira repousava sobre eles, como se adormecidos há muitos anos.

Após a sala, um longo corredor levava a mais cômodos, com mais móveis e utensílios ensacados. Tudo ali fora deixado no tempo. Na cozinha, louças repousavam esquecidas no armário. Talheres, copos, pratos. Uma porcelana cara demais para nunca ter sido roubada. Nunca ter sido levada por alguém.
Nos fundos, um jardim ressecado completava a aparência abandonada do lugar. Ervas daninhas cresciam em toda parte, ressaltando o clima estéril e mórbido que passou a reinar dentro de mim.

Uma sensação de incomodo que não consigo descrever bem. Talvez fosse medo ou insegurança repentinos que tomaram conta de mim. Ou talvez fora a enorme sensação de vazio, de solidão, de que algo não combinava; não batia.

Resolvi sair dali e entrar novamente. A casa permanecia silenciosa demais. Como se uma fera escondida nas sombras esperasse para me atacar.

Como se alguém tivesse esperado tanto por outra pessoa, que de repente se viu enlouquecido pelo silencio e pelo pavor que inspiravam aqueles cômodos fechados.

Um pouco desconfortável, resolvi voltar para minha casa. Precisava de alguém comigo para me sentir melhor.

Ao colocar minhas mãos na maçaneta, percebi que esta não abria. Tentando não me intimidar pelo silencio perturbador e pela crescente sensação de que havia outro ser ali comigo, girei-a com mais força.
Ela não cedeu.

Notei que estava suando frio e então ouvi algum barulho vindo logo atrás de mim. Uma louça caíra no chão. Eu não tinha dúvidas. O som de um prato ou copo se quebrando ecoou muito alto pelas velhas paredes, fazendo ressoar um assobio agudo em meus tímpanos.

Ofegante, porém tentando manter o pouco de controle que me restava, chutei a porta em uma tentativa vã de faze-la se abrir.

E então, para alívio de meu desespero, a maçaneta sob minhas mãos girou.
Mais calmo, saí na rua e contemplei  com alegria a luz do sol. O cheiro de poeira dos cômodos envelhecidos ainda continuava em minhas narinas. No entanto, a sensação de pânico se esvaiu, levada para longe pela normalidade da rua que cercava a casa da qual lutei para sair.


3.


O dia transcorreu sem novidades. Saboreei um rápido almoço e convenci meu irmão, Michael, a passar uma noite no velho casarão, após contar-lhe sobre os espólios que poderíamos tirar dali.

No fim da tarde, munidos de colchões e travesseiros, nos acomodamos na sala de estar. Auxiliados por uma vassoura, tiramos o máximo de pó que conseguimos e nos instalamos da melhor forma possível.

As 20h, após rápida refeição e muita bebedeira, tanto eu, quanto Michael já havíamos nos esquecido do motivo pelo qual estávamos ali. Em pouco tempo, duas amigas nossas chegaram, atendendo o convite feito pelo celular minutos atrás.

Em meio a bebidas e risos, arrastei meu colchão e Fernanda para um quarto sombrio da casa. Meu irmão permaneceu com Manuela na sala.

Não sei por quanto tempo apaguei. Acordei com Michael e Manuela me sacudindo violentamente. Lembro-me de uma expressão atordoada em seus rostos. Algo que manifestava desespero ou impaciência; não sei dizer.
Era mais de meia noite. Disso eu tenho certeza. Segundo meu irmão dissera, um garoto de olhos vermelhos surgiu perante eles enquanto transavam.

O menino trazia em uma mão um boneco com olhos de botão negros e agulhas enfiadas em toda sua estrutura.

Na outra, portava uma agulha. Sorrindo maliciosamente, fincou-a com violência contra o rosto do boneco.

Enquanto meu irmão narrava o acontecido, pude ver o inchaço em seu rosto e um furo fino do qual escorria sangue localizado perto de seu nariz.
Aparentemente havia algum sentido no que ele dizia.

Tentando ainda me livrar do resquício de sono que me restava, escutei novamente o barulho de louça quebrando na cozinha. Mas desta vez não fora uma só.

Alguém deliberadamente estava arremessando tudo no chão. O barulho de vidro estourando ficou insuportável, e tanto eu quanto os demais, levamos as mãos aos ouvidos.

Uns dois minutos depois e tudo ficou quieto novamente. Incomodado e visivelmente perturbado, sugeri a todos sairmos daquela casa.
O medo tinha tomado conta de mim, ao passo que me conscientizei de que havia mais alguém conosco.

Todavia, tínhamos um problema em sair do quarto, e todos nós sabíamos qual: O corredor que dava acesso à sala era extenso demais, e a porta de nosso quarto ficava a poucos passos da cozinha.

Sob a luz débil de minha lanterna, nos olhamos sem dizer uma palavra. O medo era coletivo. Notei isso ao notar que todos estavam de mãos dadas. Meu irmão estava mais próximo à porta. Ele ouviu os passos primeiro. Tudo aconteceu muito rápido.

Antes que fechássemos a porta do quarto, sentimos um frio repentino invadir nosso cômodo. O fantasma ou o que quer que fosse estava ali com a gente. Podíamos sentir sua respiração. O ruído zombeteiro vindo de seus lábios desfalecidos nos levou a histeria e saímos em disparada em direção à sala.
Ao mesmo tempo em que saímos do quarto, o som de coisas quebrando na cozinha voltou ainda mais alto. Instintivamente olhei para trás e o que vi tem me perseguido até hoje em meus piores pesadelos.

Uma mulher com parte da cabeça queimada e dentes em chamas balançava seu corpo pela cozinha, emitindo grunhidos horríveis que se assemelhavam ao mais duro cristal sendo quebrado com a maior das violências.

Ela parecia enfurecida, e pelo que notei, tentava nos perseguir mas não conseguia. Foi então que reparei uma corda em volta de seu pescoço. Presa por poucos fiapos, estava prestes a romper a qualquer momento.

Fosse como fosse, tínhamos pouco tempo e precisávamos sair dali.

Na sala, a criança ressurgiu. Roxa e com a pele descamando, ela se parecia com um cadáver afogado. Os olhos vermelhos se tornaram ainda mais vermelhos e ela sorriu para nós. O boneco de vodu jazia jogado no chão e tive tempo suficiente de alcança-lo e chuta-lo para longe.

A criança me olhou enfurecida e seus olhos se acenderam mais. Enquanto meu irmão tentava abrir a porta, algo chocou-se contra mim com violência e percebi desesperado que o menino havia me derrubado.

Da cozinha, ouvi o som da corda se rompendo e comecei a chorar em agonia. Nosso tempo para sair dali tinha acabado, a menos que Michael, Manuela ou Fernanda tivessem tido algum sucesso com a porta.

Fui arrastado corredor adentro por mãos ossudas que perfuraram a pele de minha perna. Ouvi, enquanto me debatia pelos corredores em direção a cozinha, vozes de furor, de um ódio incontido que ecoavam pela casa.

Quando fechei os olhos me preparando para o pior, meu irmão surgiu por cima de mim e me agarrou.  Contemplei a porta aberta e um lapso de esperança me invadiu. Na sala, o menino antes de olhar demoníaco, parecia assustado pela luz da rua, e chorava como uma criança normal.

Após muita luta, e com minha perna direita dilacerada, conseguimos sair da casa.

4.

Ao colocarmos os pés na calçada, o imenso casarão atrás de nós silenciou. Contemplamos seu interior e tudo estava como antes.

No entanto, as lembranças de nossa estadia naquele lugar nos perseguiram.
Meses depois, chegou até nós a notícia de que o antigo dono da propriedade havia falecido. Sem parentes, o corpo seria velado no cemitério municipal e enterrado apenas na presença do pároco local.

Na época eu já estava namorando com Fernanda. Liguei para meu irmão e para Manuela. Noticiei sobre o falecimento do antigo proprietário do palacete e combinamos de ir ao velório.

Lá chegando, descobrimos o nome de seu Raimundo e sua trágica história.
Sua esposa tornara-se adepta do vodu e, em um repentino acesso de fúria, assarinara o filho de modo tortuoso, enfiando-lhe agulhas em todo o corpo e tirando-as até ver o sangue do menino esvair-se por completo.

Após isso, jogou o cadáver da criança no poço do fundo do quintal e enforcou-se na cozinha.  O pároco afirmou que Raimundo teve de se mudar após presenciar aparições em formas demoníacas de sua esposa e filho.
Após longo período na Europa, retornara a cidade com intuito de vender a casa e morrera de infarto pouco depois.

Ao término do velório, enquanto selavam o caixão do defunto, ficamos pálidos e atônitos. Com exceção das pessoas que não estiveram na casa, eu, Michael, Fernanda e Manuela, contemplamos sentados no fundo da capela, a mulher desfigurada com a corda no pescoço, e o menino com olhos vermelhos e um boneco nas mãos.

Em um piscar de olhos eles sumiram. Não foi ilusão. Saímos dali desconcertados, porém com a sensação de que não presenciaríamos tal acontecimento mais uma vez.
Ledo engano.

Após o velório, juramos não contar a ninguém sobre o que se passou naquela casa. Anos depois ela fora demolida e aos poucos, com o passar do tempo, os relatos de assombrações foram se perdendo, assim como os dias de minha idade.

Sabendo que não os veria novamente, segui minha vida em paz. Passei meus dias tranquilo, embora uma sensação amarga, escondida bem lá no fundo de minha alma, me perseguisse hora ou outra.

Quando Manuela morreu, Fernanda e eu fomos consolar meu irmão em seu enterro. Naquele dia nós os avistamos novamente. Durante o sepultamento eles surgiram a poucas tumbas de distancia e foi ali, naquele momento, que nossa paz acabou.

Passamos a morar juntos e a viver com medo. Quem seria o próximo a morrer? Eles viriam nos pegar? Passaríamos para o outro lado de maneira tranquila?

Após vê-los novamente no velório de Michael e minha esposa, hoje eu tenho essa resposta. Amarga e dolorosamente, sei que virão me buscar.  Sinto-os perto. Fecho os olhos e os vejo próximos a mim. A mulher já não grita, e o menino não sorri.

Eles esperam pacientes, pois sabem que irão me levar.

Já fazem 45 anos desde que coloquei os pés naquela casa. Já não vale a pena guardar este segredo. Precisava contar a alguém antes de ir. E é isso. Esta é minha história que deixo a vocês. 

 
 ​Tema: Fantasmas.


 
Bonilha
Enviado por Bonilha em 14/05/2015
Reeditado em 14/05/2015
Código do texto: T5241300
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.