A Quarta Cadeira

A casa era imensa. A vegetação selvagem tomava o velho jardim, o qual ao centro imperava uma pequena fonte onde dois anjinhos armados de arco e flecha davam um charme ao local. Minhas pernas tremiam a cada passo dado naquele lugar. O antigo portão fez um rangido que arrepiou cada pelo de meu corpo. Todavia estava decidido: iria passar a noite naquela casa, mostrando para os meninos da escola o quanto era corajoso.

Com a mochila nas costas segui para meu destino. Atravessei o jardim com rapidez de lebre. Todos na cidade falavam que a casa era mal assombrada. Tinha uns sete anos que não morava mais ninguém nela. O último morador foi um velho de cabelos longos e despenteados. Quando ia para a escola eu o via na varanda com um cachimbo na boca. Os garotos tinham medo dele. Eu também tinha. Lembro-me do tombo de bicicleta que levei próximo ao portão dele. O velho veio em minha direção. Queria ter podido correr, mas a dor era intensa. Abaixou-se próximo de mim e passou algum tipo de pomada na minha perna. O mau hálito veio acompanhado por uma voz rouca em quase sussurro:

- Vai ficar bom garoto.

Em seguida voltou à varanda. Puxando uma tragada funda daquele velho cachimbo sentou-se em sua cadeira de balanço. Quando morreu poucos foram ao velório. Senti pena do mesmo, mas a morte não tem pena de ninguém.

A varanda estava a minha frente. Hesitei por alguns minutos. Enchendo os pulmões de ar entrei. A velha cadeira de balanço ainda estava lá. Enrolada por plantas trepadeiras, incorporada para sempre na vegetação. A porta estava entreaberta. Empurrei devagar como se não quisesse incomodar algo ou alguém, porém em vão, o barulho ecoou por toda a residência acordando qualquer ser fantasmagórico que morasse lá.

A sala era imponente. Velhos móveis cobertos por poeira deixavam-na ainda mais com ar de abandono. Pelas janelas de vidro entravam resquícios do sol que aos poucos esmaecia por detrás das casas. Coloquei a mochila no chão revirando-a em busca de uma lanterna. Restava encontrar um lugar bom para montar meu acampamento.

Não sentia mais medo. Esquadrinhei a sala em busca de algo que servisse de cama. O sofá estava todo estragado, cheio de buracos. Não serviria. Acendi a lanterna e pus-me em direção da cozinha. Também era imensa. A porta do armário estava pendida como se fosse cair. Da mesa não sobrou nada. Apenas as pernas. Alguém levou suas partes. Ali também não encontraria nada que pudesse usar. Os quartos, pensei. Devia ter algum colchão que servisse.

Havia cinco quartos na casa, dois em baixo e três em cima. Ao retornar à sala a penumbra da noite repousava no cômodo. A escuridão não me assustava, pelo menos até aquele momento. Eu não estava preparado para o que viria.

Fui em direção ao primeiro quarto que ficava no fim de um corredor com acesso à sala. Para abrir a porta tive de fazer uma força. A mesma rangeu e se espatifou com o empurrão que dei. Acabei caindo sobre ela. O pó cobriu meu corpo. Ajeitando-me e batendo as mãos sobre a roupa fiquei em pé. A lanterna caiu mais a frente. O feixe de luz sobre a parede mostrou alguns rabiscos. Pareciam desenhos. Fui mais perto. Ergui a lanterna e tentei discernir o que via. Desenhos de criança. Apertei mais os olhos, havia deixado cair os óculos e apenas agora tinha percebido. Lançando os raios artificiais de luz em direção da porta procurei. Não adiantou muito. Acabei por me abaixar e tatear o chão, quando finalmente encontrei-os eu vi algo a minha frente.

Não sei o que era, porém fez um frio percorrer a espinha deixando cada pelo de meu corpo em pé. Um vulto de luz surgiu na minha frente e se apagou repentinamente. Quando me dei conta estava gritando e correndo em direção à porta.

A mente buscava alguma explicação científica para o que acabara de ver. Não importava. Apenas sair dali era meu objetivo. Quando cheguei a uns dois metros da porta a mesma se fechou com uma brutalidade que estremeceu toda a casa. Forcei a fechadura e nada. Minhas forças se esvaiam diante do medo. Com a lanterna em punho tentei encontrar outra saída. As janelas! De uma em uma fui forçando, mas nada. Com a lanterna quis quebrar uma, diferente dos filmes era impossível. Mal arranhei o vidro. Tentei a porta dos fundos na cozinha, também em vão.

O choro veio brando. Quase inaudível. Ergui a cabeça como animal sendo caçado. Fiquei imóvel recostado no armário da cozinha. Parecia choro de criança vindo do andar de cima. O que sentia era algo novo, nunca em minha vida havia tido tanto medo. Era como se estivesse anestesiado. Morreria ali? Esquecido por todos. Disse a minha mãe que ia dormir na casa de Cidinho. Ela não queria deixar, mas insisti muito até o sim. Arrependimento não me tiraria dali. Poderia ficar parado esperando o dia amanhecer. Sim, ótima ideia. No momento que minha mente acalmava-se com tal ideia um toque gélido em meu braço fez-me correr.

Não via nada, apenas corria como se já conhecesse cada parte daquela casa. As escadas rangiam sob meus pés. Entrei no quarto da esquerda e fui direto para o guarda-roupa. Ali me quedei por alguns minutos com a respiração bem lenta para não denunciar meu esconderijo. Seria o fantasma do velho? Não sabia o que pensar. Fitei no local onde a mão gelada havia me tocado. Rastros brancos na pele em formato de dedos. Não eram dedos de adultos. Talvez de algum menino de minha idade. Todavia desconhecia se naquela casa houvesse morado alguma criança. Isso era irrelevante. Tinha de sair dali a todo custo. Pensei na janela do sótão, sim, lembro-me de ter visto uma velha árvore na altura da mesma. Eu a escalaria e desceria até o chão.

Enchi meu peito de ar e me preparei para sair correndo. Contei até três e fui. Com os olhos fechados percorri o corredor de cima. Senti na pele mãos frias tocando-me. Onde estaria a escada? Onde? Não sei se foi instinto, mas mesmo na escuridão que me cercava acabei encontrando-a.

Com agilidade de um predador subi num pulo apenas. A janela estava a minha frente. A luz da rua invadia o cômodo. Percebi que não estava mais com a lanterna. Um sorriso se fez em meu rosto.
Um passo em falso. O chão se abriu sob meus pés.

A casa era feita com madeira em estilo americano. Dessas que se veem em filmes. Os primeiros donos a fizeram como sinônimo de status. Mas logo se mudaram para o sul. Deixaram aos cuidados de um casal. Os pais do velho que morava ali. Os donos jamais retornaram. Muitos afirmam que viajaram para os Estados Unidos. Nada disso importa.

Abro os olhos bem devagar. Sinto dores pelo meu corpo. A mente tenta organizar os pensamentos. Estava no porão. A escuridão era quebrada pelo pequeno feixe de luz que vinha do teto. Ao meu redor não consigo ver nada. Ao perceber que estava com meus óculos soltei um pequeno riso, que não durou muito. Sob uma das mãos algo liso e úmido. O cheiro agora penetrava pelas minhas narinas. Com asco quase vomitei. Lembrei-me da lanterna reserva que estava em meu bolso do short. Pequena, mas serviria.

Lancei a pouca luz que ela produzia em direção ao objeto. Calafrios percorreram meu corpo. Era um cadáver em estado avançado de decomposição. Um menino! Fui me afastando cada vez mais do morto. Tentei achar a escada que me tiraria dali. Ao voltar os olhos e a luz em direção do menino soltei um berro ao perceber que sentado o mesmo me encarava com suas órbitas vazias.

Os estalos dos ossos retorcidos enchiam o silêncio. Fiquei imóvel. O cadáver erguia-se. Era o fim, pensei. Fechei os olhos apertando forte querendo que tudo não passasse de um pesadelo. Era o fim. Senti o toque gelado de suas mãos. A cabeça do mesmo encostou-se à minha. Ouvi o sussurro fantasmagórico:

- Venha até mim, Charles. Venha até mim.

Abri os olhos e a luz se fez ao meu redor. Não estava mais no porão da casa.

*********

O velho deixa cair a caneta. A mão esquerda permanece apoiando a cabeça. Óculos na ponta do nariz. Volta-se para o casal a sua frente.

- Está no porão. Na velha casa na Rua das Flores.

A mulher põe-se a chorar. O marido abraça-a. Ambos agradecem e partem. O Velho volta-se para a quarta cadeira que havia ali.

- Obrigado, Charles. Você agora poderá descansar em paz.

- Quem era o garoto? – Com voz tímida perguntou Charles.

- Você não entendeu ainda, meu jovem? Era você. Tem mais de sete meses que seus pais estavam a sua procura. Agora terão a chance de enterrá-lo.

O menino ficou em silêncio por algum tempo, talvez absorvendo os fatos que agora faziam sentido. O velho psicógrafo sentou-se na cadeira da frente. Charles pôde ver pela janela daquele cômodo os raios do sol agonizando no fim de mais um dia. Ele sorriu e desapareceu em seguida.


Tema: Fantasmas
Sr Sillva
Enviado por Sr Sillva em 14/05/2015
Reeditado em 14/05/2015
Código do texto: T5242174
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