Uma nave em formato de cama DTRL22

O veículo espacial lembrava brevemente a imagem duma cama infantil, mas não era uma cama e nunca seria na mente do pequeno Alberto. Sua grande imaginação não permitia o contrário. Viajava longe, até o infinito e além. Como gritava alegre e confiante mesmo cansado da rotina hospitalar. Desbravador do Universo. Batalhar para vencer, repetia. Sua vontade tinha força de lei e ai daquele que o confrontasse. Todos deveriam ver o que ele queria. Todos deveriam fazer o que ele queria. Enfim, era um monstrinho em desenvolvimento. Não era para menos, havia há pouco se curado de um câncer raro, era definitivamente um sobrevivente. Um sobrevivente mimado até os dentes. Porém, isso não depreciava sua luta. E a cama permaneceu assim, como nave por muitos anos.

Entretanto seu reinado não foi eterno. E,subitamente, de um dia para outro o seu trono foi surrupiado por um alienígena do mal. Um novo bebê surgiu para abocanhar suas atenções como um buraco negro. Um maldito intruso no seu ninho.

Adeus mimo e olá responsabilidade. “Você já é um homenzinho” diziam. Seu irmão era a causa da ruína, o limitante do poder, a grande muralha que impedia a conquista.

Porém, o tempo passou. Sua inocência diminuiu. E a batalha chegou ao fim. Conformou-se com as ruínas de um triunfante passado. Ó lembranças cruéis. Ó lembranças que não se cicatrizam. Ó ferida que não se cura.

Nesse período, a criatura também cresceu. Detinha, agora, um quarto só para ela. O mais próximo do de seus pais. O que no lugar de sua nave se erguia um berço de ouro. Um berço troféu. Um quarto do que era seu.

Não bastasse sua mente já atormentada pela realidade. Uma aparição começou a intrigá-lo: Nas noites mais escuras, quando a lua se esconde entre nuvens e o silêncio engole a consciência sonolenta. Os ruídos da madeira o acordavam dolorosamente. Fazia algum tempo que via aquele mesmo fantasma. Eram íntimos, mais próximos até do que ele imaginaria.

Nem precisava abrir os olhos para enxergar aquele ente mais negro que a escuridão. Para sentir o coração frio mas ainda ritmado. Ainda vivo. Que quicava em seu peito. Sentia sua presença e isso o assombrava ainda mais. Faltava-lhe coragem e corria para a cama dos pais.

- Tinha um fantasma no corredor - dizia em prantos se aconchegando entre os adultos.

- Um fantasma? – olhou de relance para a mulher.

- Eu disse para não assistir filmes de terror. Eu avisei – afirmava a mãe categórica.

- Filho, essas coisas não existem.

- Mas eu vi, com meus próprios olhos. Eu vi - Argumentava para si mesmo.

- Tá bem, vamos lá ver – falou enquanto se levantava sem nenhum ânimo.

- Estava aqui, olha. Nessa posição.

- Hm, mas não tem nada agora.

- Ele estava indo para o quarto do João – Apontou.

- A porta está fechada Alberto.

- Fantasmas atravessam portas pai.

- Está bem. Viu, satisfeito? Não tem nada aqui também - Demonstrou, abrindo delicadamente a porta.

- Vai ver ele se assustou e sumiu, pode ter sido só um alarme falso né pai – Pulou animado.

- OK. Pode ter sido isso. Vamos voltar para a nave agora. Você tem que acordar cedo amanhã.

- Tudo bem - Uma chama aflorou.

- Vem, deixa que eu te levo pra cama.

- Não. Não precisa pai. Eu vou sozinho.

- Então tá. Boa noite - Disse o pai surpreso pela independência repentina.

- Boa noite.

Alguns equinócios se passaram e a paz se instaurou. Dizem que a paz é somente um intervalo estratégico. Uma corrida armamentista pré-guerra mundial. Alberto concordava mesmo sem compreender. A vingança fora curada de seu espírito. No entanto, nenhuma doença some sem deixar resquícios. Depois da calmaria é que surge a tormenta.

E, num desses afélios, quando a Terra se afasta da luz. Os esporos enterrados bem lá no fundo. Germinaram.

Olhou o relógio. Faltava um minuto para zerar. Uma contagem regressiva para o que estaria por vir.

O gélido hálito balançou a cortina. O coração palpitava em movimento acelerado, e o calor dificultava a homeostase. Um sentimento de asfixia tomava sua garganta. Sim. Aquilo estava preso havia muito tempo. Uma panela de pressão. Era aliviar. Ou explodir. Tremores tomaram conta de seu corpo. Seus órgãos vibravam enquanto uma a uma as proteínas desnaturavam. Explodiam.

- Esse é o fim? – indagou à luz que se materializava à sua frente.

- Não se preocupe. Todo fim é um novo começo. Marte está a sua espera. Você será um imperador. Um César. Um Augusto – Prometia.

- Mas, e a minha família?

- Eles não precisam de você. Vão ficar bem.

- Não quero ir sozinho.

- Fique tranquilo. Precisamos ir. Antes que... Essa não.

- Ele está aqui. Fuja!

Uma adaga perfurou. Do epicentro, diversos rios secundários se enraizaram. Era como se da fina lâmina emergissem diversas descargas elétricas.

- Tarde demais. Desculpe Senhor. Eu falhei – E se espatifou no ar.

- Não existe escuridão, existe a falta de luz – Repetia para consigo mesmo enquanto sua mente digladiava entre o sonho e a realidade. Ora estava em seu quarto. Ora numa dimensão paralela. Eu sou Augusto! A dor não me consumirá eu sou um sobrevivente.

- Não, não por muito tempo – Estocou seu peito.

Milhares de formigas emergiram se alimentando de sua pele. O veneno torturava seus nervos e os insensibilizava também. A voz teimava em não sair. Não adiantava clamar por ajuda.

O ácido fórmico já o preenchia por completo. Levantou a blusa e teve um choque. Sua epiderme salpicada de picadas vermelhas parecia emanar fumaça de tão quente. Bamboleou e as lágrimas não tardaram a desabar. O ar lhe faltara. Mas ainda assim proclamou:

- Você não pode me vencer. Eu não vou permitir isso!

- Bem, não é o que parece – Riu com uma pitada de escárnio – Você é somente uma criança – e adentrou o corredor.

Alberto sabia aonde ele queria chegar. O fantasma era uma criatura faminta de carne inocente. Seu irmão veio à mente.

- Que droga! Só eu posso maltratar o meu irmão. Mais ninguém – Caminhou na medida do possível. Mancava e apertava o peito em chamas esguichando suas lágrimas pelo caminho.

A criatura estava bem à sua frente, com aquele sorriso hipócrita. Ele não via, mas sabia que estava sorrindo. A lâmina pendia em seu braço, quase como que uma extensão deste.

Levantou pronto para o abate. E, desceu.

- Pelo amor de Deus! Socorro! Ouvi gritarem. É muito desespero seu policial. Nem acredito que isso aconteceu. Eles eram meus vizinhos há 20 anos. Conheço o Alberto desde que ele nasceu. Não consigo acreditar. Parece que tudo não passa de um pesadelo. Eu liguei imediatamente para a polícia. Infelizmente...

- Obrigado pelo depoimento Senhora. Pode se retirar. Boa noite.

- Boa noite – Respondeu ainda incrédula e com a fala engasgada pelo choro.

As luzes e sirenes acordaram o bairro inteiro. Em questão de minutos uma horda de curiosos cercou o local.

Dentro da ambulância os pais se abraçavam tentando se consolar.

- Não acredito como não suspeitamos antes. Se ao menos...

- Tudo bem querida. Vai dar tudo certo.

- Não! Não vai dar nada certo. Deu tudo errado. Tudo errado. Meu Deus!

Ambos não se conformavam, nem conseguiriam por muito tempo.

- Nós tentamos esquecer. Não vimos os sinais. Fingimos estar tudo bem.

- Mas não estava! Se...

- Algumas coisas... Talvez tenha sido melhor assim – Disse engasgando – Ele está melhor agora. O fantasma do câncer que tanto assombrou, agora se foi.

Um triste fim para um novo começo – Disse o espectro visível.

No céu, a Lua refletia iluminando uma pequena nave em formato de cama infantil que planava rumo a Marte ou a um lugar melhor, quem sabe.

- Ao infinito e além.

Tema: Fantasmas.

Rako
Enviado por Rako em 18/05/2015
Reeditado em 21/05/2015
Código do texto: T5246214
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