A vida segue em frente. - DTRL 22

Para meu tio Afonso.

Sabia que a vida era assim: seguia em frente.

E aprendeu da pior maneira possível. O sol ainda não havia nascido quando o garotinho acordou com frio e pôs-se a caminhar pelas ruas desérticas. Olhava para as casas e prédios em volta, pensando nas pessoas que estariam lá, ainda deitadas em suas camas quentes, sonhando sonhos gentis e confortantes.

Levava consigo uma mochila com alguns livros, um sapatinho azul, tamanho 14, e um boné do Pequeno Urso.

Com a sola dos pés em contato com o chão gelado e úmido, percorria vagarosamente a avenida, pensando em como as coisas eram injustas, e censurou-se por isso. Sabia que se algo não existia, em todo o universo, este algo era a justiça.

O dia ia passando e nuvens começavam a tomar conta do céu. Os pés do menino já estavam cheios de calos que, naquele ponto, não fariam qualquer diferença. Uma infinitude de carros inundava as ruas, barulhenta. O menino, usando apenas sua bermuda rasgada e queimada em alguns pontos, não era sequer notado. O corpinho era só ossos, mas seguia em frente corajosamente. Esperava pelo dia no qual poderia finalmente descansar.

Pensava na família que não via há muito...

E lembrava-se do passado.

Mal nasceu, o sol já estava se pondo, e o menino parou sob um viaduto e se deitou. Fechou os olhos, caiu no sono rapidamente – não que precisasse disso.

Dormiu e, é claro, sonhou.

Naquela noite, visitou uma casa em chamas.

As labaredas dançavam, violentas, e davam-se a tudo. A vela que fora acessa há pouco tornara-se uma tempestade de fogo. No pequeno quarto, pai, mãe e dois filhos dormiam. O irmão maior tinha por volta de sete anos e, o menor, três semanas. O ar começava a ficar pesado e os faltava, mas estes não percebiam a catástrofe que se iniciava.

Acordaram somente quando o bebê deixou que seu choro agudo ganhasse a noite.

E então, viram-se confinados naquele cubículo. O pai, que também era marido, segurou a mão da esposa e com a outra, levou o caçula ao colo. O filho mais velho estava paralisado de medo, sem saber o que fazer, e ao olhar para a mãe avistou somente horror.

“A janela”, pensou consigo mesmo, começando a socar o metal que bloqueava o caminho. Na hora, não sentiu a temperatura do ferro, mas as mãos nunca mais seriam as mesmas. Perderiam quase totalmente a sensibilidade, e os pulmões deixariam de trabalhar como deveriam. Lágrimas escorriam dos olhos de todos.

Sentiam a pele arder, queimar, e começavam tirar um pé do chão para colocar o outro, pois a pele frágil começava a derreter.

O bebê chorava e berrava.

Umas das pernas do pai começava a pegar fogo, e então seu grito uniu-se ao do recém-nascido. A mãe tremia e a sensação de claustrofobia passava a dominá-la. Um pedaço do teto caiu e esmagou uma das camas.

E então que a janela cedeu.

A mãe saiu primeiro, e passou a segurar o bebê para que o pai pudesse sair. O filho maior apoiou-se na cômoda e firmou as mãos no parapeito da janela. E aí a cômoda pegou fogo, e o menino caiu ao chão , gritando exaustivamente e, por fim, silêncio.

Acordou suando.

Lembrava-se perfeitamente do dia no qual havia morrido. Lembrava-se da dor, do inferno pelo qual havia passado antes que o fim chegasse.

E então percebeu que aquele não era o fim. E a morte, descobriu, não era tão ruim: ao menos, deixou-o escolher qual seria o próximo passo.

O menino escolheu esperar a família, pois não queria ficar sozinho e, além disso, tinha medo do que poderia vir depois.

A morte lhe deu um sorriso e estendeu a mão.

Levantou-se, pegou uma mochila e colocou ali algumas coisas: um exemplar de As Crônicas de Nárnia, presente da avó, e um sapato azul, que pertencia ao irmão. Tudo aquilo queimara na noite anterior, mas este era outro plano. Outra parte da criação.

Por último, colocou o boné do Pequeno Urso.

E começou a caminhar, com passos lentos.

Olhou para o mundo do qual já não fazia mais parte e avistou um avião da esquadrilha da fumaça cortando o céu e deixando um rastro branco para trás.

Sorriu, pois sabia o que fazer.

Tema: Fantasmas.

Este é o conto que você, Querido Leitor, acabou de ler.. Espero que tenha gostado. A ideia me veio durante uma tarde como todas as outras e, então, a escrevi. A primeira versão do conto não me deixou satisfeito, e vi a ideia ser reescrita. "Agora está um pouco melhor", pensei. E acho que estava mesmo.

Vez ou outra me pego pensando em como as coisas são quase sempre as mesmas - apenas uma variação aqui ou acolá. Sempre os mesmos caminhos, talvez um pouco mais cedo ou mais tarde mas, no geral, o mesmo. Alguns dizem que a vida passa rápido...

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 20/05/2015
Reeditado em 12/06/2015
Código do texto: T5248698
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