A ENTIDADE ESCONDIDA - DTRL22

Ataíde se esconde no porão.

Jussára espera seu filho, Ricardo, chegar para o jantar. Laura toma banho. O cachorro persegue o gato pelos corredores e quartos da casa. É noite. A temperatura fria não chega a ser desagradável. Os dois filhos de Ricardo estão no tapete da sala, brincando com blocos de Lego, do mesmo modo que Ricardo brincava quando tinha a idade deles. Lucas, um ano mais velho que o irmão Luís, parece entediado. No andar de cima Laura canta no chuveiro, pensando no namorado, João. Os dois namoram há quase três anos, e ela acredita que a qualquer momento ele fará o pedido, então poderá deixar a casa da mãe. Jussára tem a cozinha sob controle, só falta Ricardo chegar. Ele está atrasado, como sempre. Seu filho é um homem ocupado. Tão ocupado que chegou atrasado no dia do funeral da esposa, Joana, falecida há dois anos, teve traumatismo craniano seguido de hemorragia por conta de um acidente no banheiro.

Ataíde treme no escuro.

Um grito de criança assusta Jussára. Ela corre para a sala e pergunta aflita:

— O que aconteceu?

Seus netos param momentaneamente de brincar e olham para ela.

— Nada vovó — diz Lucas.

Jussára afirma que escutou um deles gritar, que era um grito de terror, muito diferente de um grito de brincadeira. Luís dá risada e diz que não escutou nada.

— A vovó tá ouvindo coisas — ele ri sem parar. Só para quando Lucas ataca e o acerta com uma peça de Lego no meio da testa. Então os dois começam a brigar, rolando pelo tapete e pelas peças de Lego.

— Crianças, cuidado para não se machucarem — adverte Jussára e ela volta para a cozinha.

Laura desliga o chuveiro, saí do box nua, molhada, gotas de água escorrem por seu corpo branco e macio. Os meninos continuam brigando na sala, o gato e o cachorro pararam de correr e olham as duas crianças com bastante interesse. O som da garagem abrindo e de um carro entrando anuncia a chegada de Ricardo. Jussára vai até a porta e a abre. O filho acabou de desligar o carro. Laura escova os dentes, ainda nua, o vapor embaçou o espelho e ela não consegue enxergar o próprio rosto.

Ataíde leva as mãos à face e tenta esconder o esgar feio.

— Oi mãe. Estou morto de fome — diz Ricardo, tirando o casaco e deixando ele e a mala sobre o sofá.

Jussára diz que ele já pode ir na mesa se sentar. Os meninos mal olham para o pai, pois voltaram a se entreter com o Lego e estão muito ocupados. O cachorro pula e festeja a chegada de Ricardo. O gato está parado encarando a porta fechada que leva ao porão. Ricardo, apertado, sobe as escadas de dois em dois degraus, chega no patamar superior e tenta entrar no banheiro. A porta está trancada. Laura ignora a maçaneta que gira duas vezes, cospe o creme dental na pia e, com a ponta dos dedos, desembaça o espelho apenas o suficiente para poder inspecionar os dentes. Ricardo vai correndo até a suíte da mãe para usar o banheiro. Jussára leva o jantar para a mesa pronta da sala. A carne de carneiro está com uma cara ótima. Lucas desiste do Lego e vai ver o gato. A descarga soa no andar de cima. Jussára volta para a cozinha, esqueceu dos guardanapos. Laura começa a se secar com a toalha vermelha.

Ataíde treme tanto, que dá agonia.

Lucas acaricia o gato:

— Quer entrar aí? No porão? — pergunta sem receber resposta.

Luís faz um castelo com as peças que o irmão abandonou. Imagina os bonecos de Lego como soldados presos dentro da fortificação em chamas. Um fogo imaginário queimando-os enquanto gritam de dor. Ricardo dá dois socos na porta:

— Olha a hora maninha!

Laura sente o coração pular no peito.

— Seu besta! — ela grita.

O irmão ri e desce as escadas. Despenteia o cabelo de Lucas, que está junto da porta do porão brincando com o gato e vai até a mesa de jantar.

— Sua irmã não saí do banho — diz Jussára.

— Eu que não vou esperar por ela — fala Ricardo e começa a se servir.

Lucas leva sua pequena mão à maçaneta da porta, abre-a um pouco e o gato entra correndo pela fresta que surgiu. O porão está escuro. O garoto olha para baixo, mas o gato já desceu as escadas e desapareceu na escuridão. Jussára ralha com Ricardo por não esperar os outros, e chama os netos para o jantar. Luís ignora a avó, entretido em sua fortaleza colorida. Laura leva a toalha ao espelho e o esfrega com ela em grandes círculos para desembaçá-lo. Quando termina vê no reflexo uma pessoa parada atrás de si encarando-a. Ricardo mastiga o carneiro, afastando o cachorro com a perna. Jussára vai até a cozinha para deixar o avental.

Ataíde vê o gato.

Lucas tenta acender a luz, mas o interruptor não funciona. Ele coloca o pé no primeiro degrau da escada do porão então a casa inteira treme com o grito de Laura. Ricardo, à mesa, engasga de susto. Jussára corre de volta para a sala com a certeza de que desta vez escutou um grito de terror. Se atrapalha no tapete e cai. Luís vê a avó cair e dá risada:

— A vovó quebrou o pescoço! A vovó quebrou o pescoço… — repete sem parar.

Ricardo consegue fazer descer pela garganta o pedaço de carne e vai até a mãe que geme no chão.

— Cala a boca moleque, acha isso engraçado?

Luís dá de ombros.

Desde a morte da mãe seus filhos tem agido diferente, Lucas ficou mais aéreo, parece que vive em outro planeta. O comportamento de Luís é ainda mais preocupante. Esses dias Ricardo o pegou coletando formigas no quintal e as colocando dentro de um pote de vidro vazio de palmito. Juntava várias e depois tampava o pote, e ficava lá sentado por horas a fio vendo as formigas. Só abria o pote depois que elas paravam de se mexer, então procurava mais formigas e repetia o processo.

— Estou bem, estou bem — tranquilizou-o Jussára. — Vá depressa ver sua irmã!

Ricardo sobe as escadas correndo. Sente o joelho direito fraquejar quando chega no último degrau.

Jussára vê a porta do porão aberta.

— Onde está o Lucas? — pergunta para Luís, que outra fez dá de ombros. Ricardo volta a tentar abrir a porta do banheiro, mas ela continua fechada.

— Laura! Laura? Tá tudo bem aí? Abre a porta!

Nenhum ruído ou som saí do banheiro. Ricardo pega distância, decidido a arrombar a porta. Luís começa a rir sem nenhum motivo aparente.

— Por que está rindo? — pergunta Jussára.

— Tive um déjà vu — ele responde.

Lucas está no porão. A luz mal entra pela porta e seus olhos mal enxergam o aposento escuro. Ele tenta chamar o gato, mas não tem resposta. Nenhum miado. Sente que não está sozinho lá embaixo. A porta do banheiro abre com estrondo e Ricardo vê sua irmã caída no chão úmido. Seu ombro dói por causa da pancada, mas ele faz pouco caso da dor, se agacha e começa chamar pela irmã, enquanto a aperta e a balança pelo braço.

— Laura! Laura! Acorda!

A irmã devagar começa a reagir aos seus chamados.

— O que aconteceu? Sua pressão caiu? – pergunta Ricardo.

Jussára pede ajuda do neto para se levantar, entretanto Luís lhe dá as costas de propósito e segue sua brincadeira com o Lego.

Ataíde vê Lucas.

Lucas tateia pela escuridão do porão, chamando pelo gato. Seus olhos estão acostumando-se ao escuro e ele já consegue enxergar diferentes tonalidades cinzentas. Laura recobra os sentidos e agarra o irmão:

— No espelho, ela está no espelho! — diz aflita.

— Calma, calma, acho que você pode ter batido com a cabeça é melhor...

— Não! Estou dizendo, ela está no espelho!

— O quê? Como assim? Quem tá no espelho?

Ele levanta e olha o espelho do banheiro. O que vê ali deixa-o paralisado e faz sua pele gelar.

— Mãe…?

A imagem de Jussára está refletida no espelho, como se estivesse presa dentro dele. Ricardo vê a mãe batendo com ambos os punhos fechados na superfície espelhada. Ela grita sem parar, desesperada, mas não saí nenhum som de sua boca.

No andar de baixo Luís não vê a boca enorme que se fecha sobre si, engolindo-o e levando-o à escuridão.

No porão Lucas encontra outro interruptor na parede e dessa vez a luz acende. Assim que vê o homem estranho ele abre a boca para gritar mas o homem, mais rápido, o impede tapando sua boca e o prendendo em seus braços fortes.

— Quieto guri, ou ela vai nos pegar — sussurra Ataíde em seu ouvido.

Eles podem ouvir o cachorro latindo e rosnando, até que ele dá um ganido agudo e se cala. Só resta o silêncio no andar térreo da casa.

— Mãe… mãe… o que está acontecendo? — Ricardo chora como uma criança. O reflexo de Jussára também chora. Todos choram.

— Eu estou aqui pra ajudar guri — diz Ataíde e continua: — Tem um monstro na casa de vocês, segui ele até aqui e pretendo capturá-lo.

O gato ronrona baixo aos pés de Ataíde e Lucas. Lucas tem certeza de que este homem é maluco, algum tipo de psicopata que fugiu de alguma prisão.

— Ricardo — diz Laura — Se a mamãe está presa no espelho, então quem está lá embaixo?

A expressão no rosto de Ricardo muda de medo para raiva.

— Espera, não vá!

— Meus filhos! — ele se livra da irmã e desce as escadas correndo.

Ataíde com olhos esbugalhados diz para o garoto debatendo-se em seus braços:

— Você precisa acreditar em mim garoto, sou a única esperança de vocês… — como o menino não para quieto ele insiste — eu tinha um guri igual a você, a mesma idade… e então ele foi tirado de mim… — sua voz fica embargada — ele era a minha família… a única que eu tinha e foi levado embora…

Lucas para de se debater, porque sentiu emoção sincera na voz do estranho. Ataíde sente o corpo do garoto abrandar-se:

— Eu vou te soltar agora, se você gritar, vai denunciar minha presença aqui, e o embuste que estou preparando pro monstro não vai funcionar… — Ataíde indica a armadilha para Lucas e o garoto vê um objeto retangular alto e fino coberto por um lençol azul — …e se não funcionar, sua família inteira vai morrer, entendeu?

Lucas balança a cabeça concordando. Ataíde o solta. O garoto olha o homem estranho, vestido com aquela roupa de camuflagem de exército, verde e preta, com graxa na cara. Tem vontade de gritar, de alertar a família, mas alguma coisa na postura daquele homem o comove… é mais que isso, sente que precisa ajudá-lo.

Ataíde olha o relógio de pulso:

— Falta pouco…

Ricardo encontra a sala vazia. Nenhum sinal dos filhos, nem do gato e do cão. Apenas os Legos jogados no chão, seu casaco e a mala no sofá, e o carneiro esfriando sobre a mesa.

— Lucas? Luís? Filhos! Onde estão?

Lucas ouve o pai e dá um passo na direção da escada. Ataíde coloca a mão em seu ombro:

— Ainda não, a armadilha precisa de mais tempo, se subir lá agora vai morrer.

— Mas meu pai, ele…

— Não podemos fazer nada.

Jussára aparece na entrada da cozinha. Sorri para Ricardo.

— Algo de errado, filho? — ela pergunta com cinismo.

— Quem é você? O que fez com os meus filhos?

Ela ri, e Ricardo vê a expressão maldosa em seu rosto. A mãe falsa é idêntica á verdadeira, mas ele duvidava que a mãe de verdade pudesse algum dia ter aquele semblante sinistro.

— Eles são meninos tão levados… detesto crianças levadas… as levo embora… você também tem sido muito levado Ricardo… você e a sua irmã… vou levá-los também…

Ela começa a se transformar. Ricardo vê sem acreditar. Surge a palavra "lobisomen" em sua mente… a boca dela está se prolongando, o nariz achatando… aquilo não é um lobisomem… a pele está ficando verde sua textura se tornando escamosa, igual a pele grossa de um réptil… é um jacaré? Um dinossauro?

— Um dragão! — exclama Ricardo sem crer no que acabou de dizer.

Com uma voz cavernosa o monstro fala:

— Feche os olhos filho… é rápido… você não vai sentir nada…

Ricardo sente os pés flutuarem, seu corpo inteiro parece formigar, é como se estivesse em um sonho, não é real, sente um sono insuportável e seus olhos começam a fechar. Laura aparece descendo as escadas, enrolada na toalha vermelha ela vê uma boca de pesadelo cheia de dentes distorcidos prestes a devorar o irmão. Então lhe dá um puxão conseguindo livrá-lo da mordida fatal. Foi por um triz...

— Sua ingrata, acha que pode desobedecer a própria mãe e sair impune? — diz o monstro.

Ricardo saí do estado sonolento e recobra os sentidos.

— Temos que sair daqui! — grita Laura.

— Meus filhos eles… não posso…

— Sair? Ninguém vai sair, vou engolir os dois juntos!

Lucas ouve os gritos de terror e não aguenta mais ficar sem fazer nada.

— Espere — o impede Ataíde.

— Não, eu preciso salvar eles…

Ataíde consulta o relógio.

— Nós vamos salvá-los.

A boca horrenda está aberta. Ricardo e Laura indefesos se abraçam compartilhando o desespero e a agonia.

Então, o monstro para, como se algo lhe tivesse chamado a atenção, e fecha a boca, virando a imensa cabeça reptiliana para o lado.

— Outra vez esse grito de criança — diz o dragão. — De onde vem? Será que… Sim! É do porão!

Ricardo e Laura não ouvem nada, mas Ricardo teme pelos filhos e tenta avançar, mas é impedido pela irmã.

O lagarto gigante entra pela porta do porão, deixando grandes rachaduras nas arestas quando passa por ela. Os degraus vão se vergando e quebrando a medida que seu corpo pesado vai passando por eles.

— Onde você está? – pergunta o monstro.

Ataíde e Lucas estão escondidos atrás do objeto ainda coberto pelo lençol azul.

— Agora — diz Ataíde e ele e o menino puxam o lençol.

O monstro vê o dono do grito horrendo preso no espelho. É um garoto com a pele cor de carvão toda rachada e sem uma perna. Os olhos dele são brancos leitosos e ele grita sem parar arranhando o espelho freneticamente pelo lado de dentro.

Os olhos do monstro ficam vermelhos de raiva e ele dá um berro enfurecido.

Laura e Ricardo caem no chão da sala, tapando os ouvidos. A visão de Lucas fica turva e ele desmaia. Ataíde cobre os ouvidos com a mão e, com uma determinação desconhecida, esforça-se para continuar em pé. O vidro estoura e a criatura escura de aspecto medonho saí dele. No andar de cima a verdadeira Jussára também se vê livre do espelho que se despedaça no banheiro. Ela está desacordada.

— Quem fez isso? – pergunta o dragão.

A criatura de uma perna só fala sem força:

— É uma armadilha, sua burra! — então se desfaz como papel chamuscado no ar soturno do porão.

— É o seu fim bruxa! — diz Ataíde.

O monstro ri.

— Vou engolir você inteiro! — mas não consegue se mexer — O quê?

O monstro olha pra baixo e vê que está dentro de um círculo de giz com feitiços de tempo e espaço gravados em um dialeto antigo, cheio de símbolos arcanos.

— Como? Quem… quem é você? — pergunta.

Ataíde tira um espelho de mão de dentro da blusa do exército.

— Isso não importa — ele ergue o espelho.

O monstro se vê refletido… então vê o local onde um instante atrás estava dentro do círculo… depois tudo fica escuro quando Ataíde guarda o pequeno espelho novamente dentro das vestes.

— Acabou.

* * *

Ataíde espera o ônibus. Tem uma mochila grande nas costas. Está cansado, mas não pode parar. Consulta o relógio, depois tira um mapa amassado do bolso e marca um X. O ônibus chega, ele entra na fila de embarque. As portas se fecham. O ônibus vai embora.

Lucas está no consultório sendo examinado mais uma vez. O ouvido direito perdeu 30% da audição o esquerdo está morto.

Ricardo, sentado na sala de espera, lê o jornal a procura de emprego.

Laura dorme na cama do namorado. Não tem sonhos.

Jussára põe a comida do gato e enche sua água. O gato ronrona. Ela não sorri.

Luís está no escuro.

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Tema: Criaturas Fantásticas do nosso folclore

Alexandre Royg Machado
Enviado por Alexandre Royg Machado em 22/05/2015
Reeditado em 24/05/2015
Código do texto: T5250822
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