MAIS QUE DESGRAÇA PELADA SÔ!!! DTRL 22

ARAUTO DO APOCALIPSE

Pois é, para todos aqueles que zombavam de mim, com seus sorrisinhos sarcásticos, comentando sempre a meia boca as sandices do maluquinho da vila, vou contar esta história. Não que estavam completamente errados, mesmo eu me convenci da loucura, abracei seus devaneios saciados apenas a base de fórmulas mirabolantes que me tornaram uma espécie de zumbi, um espectro de mim mesmo. Perdi toda a beleza da vida, assassinei meus objetivos, entreguei-me nas mãos sinistras do destino.

Por mais que possa parecer uma história triste, antecipo seu fim, saibam que este conto de fadas macabro tem seu desfecho clássico. Dinheiro, fama e principalmente mulheres, na minha vida agora já não faltam. O doidinho da vila já era, ninguém mais me chama assim.

Vivíamos numa comunidade rural, meu pai agregado de uma fazenda produtora de café, além do pouco salário podia morar num ranchinho as margens do rio que serpenteava por entre a plantação, na várzea também era permitido cultivar uma roça de milho e feijão. Essa talvez tenha sido a fonte oculta do meu sucesso atual.

De calças curtas, durante a semana seguia a pé por algumas léguas rumo à escola da vila. Eram poucas casas servidas por umas três ruas que nem nome tinham, a pequena capela do outro lado da pracinha encarrava de frente o grupo escolar, ambos, presentes dos fazendeiros locais. Para diversão, o bar do “Sô Tião” e a mercearia da “Maria Véia” disputavam os pinguços de fim de semana. O campinho de terra batida era uma atração à parte.

Terminadas as aulas que assistia com afinco, retornava morosamente rumo a um parco almoço e ao farto sol da tarde que me castigava na lida daquela gleba desgraçada. As lágrimas confundiam-se com as gotas de suor. Dez anos tinha na época e praguejava como um velho ranzinza. Minha mãe condescendente sempre alertando:

- Reza meu “fio”. Dê graças a Deus pela vida que tem! “Gradeça” pelo pouco, pois tem gente sentindo “farta” até do “de cumê”!

Eu era um tanto hiperativo, apesar de que na roça aquilo era chamado de encapetado, não desejava limites, agia como se fosse o senhor das rédeas do destino. Meu pai por sua vez, me via como um pequeno adulto, para meu azar, imputava obrigações como tal. Era um suplício permanecer atado à labuta enquanto o rio corria solto, os pássaros voavam livres e meu espirito desejando sempre mais.

- Eh vidinha “mardita”! Eh Desgraça Pelada sô!

Durante a solidão do trabalho, as pragas e maldições eram uma constante.

Caso tropeçasse:

- Ôh Desgraça Pelada!

O sol estava muito quente:

- Ôh Desgraça Pelada!

Se acordava cedo:

- Ôh Desgraça Pelada!

Chegou ao ponto em que até por ouvir o canto das cigarras, soltava logo um sonoro Desgraça Pelada.

Minha mãe em sua simplicidade, dizia:

- “Lava a boca com sabão minino! Não chame a coisa ruim que ela vem! Essa muié num tem a graça de Deus! Chama ela não fio!”

Deus e o Diabo para mim eram a mesma coisa, eram um só. Deus é um grande brincalhão, com estranho senso de humor. Como pode permitir o sofrimento das crianças, como podia me destinar a tão triste sina. Deus e o Diabo tinham um acordo, um dava a felicidade e o outro a roubava.

Os anos passaram, juntamos dinheiro para comprar uma casinha de tijolos na vila. A vida melhorou e nem por isso a Desgraça saiu do meu peito.

Antes de desistir de me fazer crer em Deus, em sua derradeira tentativa pouco antes dos meus dezessete anos, ouvi descrente a última história:

A Desgraça Pelada era uma matrona extremamente rica, tinha de tudo que uma pessoa poderia sonhar e mesmo assim seu coração era vazio, nada lhe fazia sorrir, cobiçava tudo que via pela frente, não por necessidade, mas apenas para que não fosse de outro. Queria sempre mais, tentava preencher sua alma atormentada com coisas mundanas e nada conseguia. Nada lhe dava conforto. Seus dias eram consumidos em meio à maltratos e xingamentos, seus serviçais não passavam de seres inferiores, na verdade a humilhação até que lhe permitia um pouco de alegria, adorava ver o sofrimento alheio.

Quando a velhice chegou, mesmo com tantas posses se viu abandonada, a angústia e o desespero levaram na ponta de uma corda sua miserável vida. Agora, amarrada a uma divida de suicídio, sempre que invocada, das sombras por detrás das portas espreita as almas infelizes como a sua.

Bobagens de uma caipira ignorante que insistentemente me aborrecia com as mesmas ladainhas.

De cabeça cheia, farto de tanta falação, o erro fatal. Uma das piores coisas que um filho pode fazer. Ignorei os pedidos por orações e gritei:

- Cala a boca sua Desgraça Pelada, você só sabe me encher o saco!

Foi como se com minhas mãos arrancasse um pedaço de seu coração. Antes de sair batendo a porta atrás de mim ainda pude ouvir seus pedidos em meio aos soluços:

- "Fala assim não fio, essa muié vai te levar pro pasto e deixar ocê por sete dias e sete noites em cima do coqueiro mais arto de lá.”

Tarde da noite voltei. Meu coração amargurado batia um pouco mais suave. Tinha tantos sonhos impossíveis que o ar quase me faltava, era pura decepção, meus objetivos jamais seriam alcançados. Poucos minutos lamentando minha sorte foram o bastante para cair nos braços do sono, meu único desejo era despertar para um dia melhor.

Naquela madrugada de ventos mornos, o coaxar dos sapos às vezes era interrompido pelo berro de uma rês desgarrada. Estava num estado letárgico, dormia mas percebia os acontecimentos a minha volta. Um choro baixo me irritava, parecia estar bem perto, quase ao lado da cama. Magoei tanto minha mãe que logo pensei em seu sofrimento. Virei tentando não ouvir. Os murmúrios só aumentavam. A consciência pesou, sabia que se não me desculpasse ela não dormiria.

- Mais que Desgraça Pelada. Vou ter que levantar.

No escuro do quarto caminhei rumo ao interruptor. Ao som do click, a luz se fez presente. Algo estranho parecia se mover atrás da porta aberta. Minha mãe certamente veio me ver enquanto dormia, envergonhada se ocultou ali.

Ela estava de cócoras. Uma velha assustadora com longos cabelos desgrenhados, ralos porém compridos, dava até para ver o casco sarnento de sua cabeça. Sua face medonhamente enrugada pela ação do tempo, tinha um dos olhos branco como se cega fosse de nascença, o outro de um amarelo anêmico no fundo negro das orbitas, o nariz enorme e achatado assemelhava-se a uma batata. Seus gritos feriam meus ouvidos, a língua animalesca bailava numa cavidade parcialmente desprovida de dentes. Mesmo curvada como se fizesse uso de uma latrina percebia-se sua altura anoréxica, a pele pustulenta cobria os ossos sem carnes, nas costas uma fileira pontuda denunciava sua coluna vertebral. Pela frente, suas mamas pendiam sobre uma enorme barriga murcha que por sorte cobria sua genitália. Do corpo exalava o cheiro acre de carne podre.

Diante da horrenda aparição, o choque foi tanto que gritei como se o som fluísse direto de minha alma em seguida desabei como uma árvore vitima do lenhador. O baque contra o chão de assoalho frio foi minha ultima recordação daquela noite.

Fiquei dias em estado catatônico. Meus olhos fundos miravam o infinito, o alimento mesmo que forçado eram devolvido aos vômitos. O silêncio da minha alma só era quebrado quando alguém por descuido desligava as luzes deixando entrar a escuridão.

O pavor da noite arrancava de mim urros tenebrosos, os dentes rangiam como se quisessem dilacerar a própria mandíbula, os músculos se retesavam enquanto o corpo tremia em espasmos alucinados.

Do pequeno hospital segui para uma clínica especializada, na verdade um pardieiro que abrigava loucos e psicopatas, muitos de jaleco branco. Fisicamente estava bem, nada indicava uma doença. Minha mente atormentada se tornou um prato cheio para os pseudocientistas. Infusões, choques elétricos, beberagens, sangrias e acreditem por dias ficava dependurado de cabeça par baixo pois diziam ser falta de sangue no cérebro o meu problema.

Depois de tanto sofrimento, aos poucos recobrei algum juízo. Delirava muito ainda, ouvia sempre as mesmas vozes infernais, por onde andava percebia sua presença esgueirando-se por entre as sombras. Não adiantava nada reclamar, ninguém mais a via e a cada relato uma nova sessão de terapia. Descobri que se ficasse em silêncio o sofrimento era menor. Por muito tempo rastejei pelos corredores imundos daquela pocilga, quase perdi o dom da fala. Definhei muito naquele tempo, noite após noite convivia com seus gritos e fedor.

Em alguns anos fui devolvido ao lar, não por estar melhor. Aquele tipo de instituição não cabia no mundo civilizado.

Em casa ela me acompanhou. Minha mãe rezou uma novena, o padre encheu de bênçãos nossa morada. Nada adiantou. Seu Dedé, pai de santo afamado correu a nosso auxílio. O velhote negro da Guiné cantou, rezou, bebeu um litro de cachaça, fumou uma dúzia de pitos que fediam mais que a Tal Mulher, agora era assim que a chamávamos e de novo nada aconteceu. Lá do seu canto ela xingava, fazia caretas, gritava coisas que nem eu entendia. Até um bode Seu Dedé matou, fiquei todo lambuzado com seu sangue, ele queria que eu ficasse pelado atrás da porta, exatamente no local onde dizia que ela estava. Aí foi demais, minha negativa selou o fracassado ritual, a culpa da malograda tentativa era exclusivamente minha.

Na vila corria a boca miúda as mais cabeludas sandices cometidas por mim, inúmeras inverídicas é claro. Minha fama de herege arrependido afastou as pessoas, num esforço inocente meu pai arrancou todas as portas da casa, ficou apenas as das entradas. De madrugada ela me despertava aos berros. A porta da sala, mesmo trancada, aparecia escancarada e a coisa lá atrás.

Eram tantas provações que já não desejava mais viver, aquele sofrimento devia ter um fim, fui vencido. Ao menos meus pais poderiam ter um pouco de paz. Entregar-me-ia naquela mesma noite aos prazeres da criatura obsessora, seriam os últimos instantes da minha vil existência. Um laço improvisado sustentaria o peso de meu arrependimento, como uma fruta podre penderia do galho da jaqueira. Ela zombava da minha dor, ria do meu desespero.

Decidido a entregar-me em seus braços o temor passou, na morte estaria condenado a pactuar com tão repugnante aberração. Num último instante, ao cruzar o umbral da maldita porta, meus olhos fitaram aqueles que sem brilho me cobiçavam. Já não a temia, sentia-me como seu igual, detive-me sentando lentamente a sua frente.

A desgraçada babava, xingava e cuspia. Falava tanto e eu pouco entendia. Ficamos ali por algumas horas, nunca soube o que ela disse naquela madrugada. Minha mente ainda atordoada parecia viajar em seus olhos, meus ouvidos durante anos feridos por seus grunhidos malditos pela primeira vez escutaram apenas o vento lá fora. O tempo passou, o sol estava prestes a surgir, não percebi quando ela se foi, não vi quando o silêncio invadiu meu coração. Quase as seis da manhã o som de um velho rádio de pilha me despertou daquele transe. Olhei em volta e estava só, novamente havia paz.

Durante o dia pensei sobre minha insanidade, finalmente entendi o tamanho da minha loucura, descobri que tudo aquilo era apenas uma ilusão, um sonho ruim condicionado por uma vida sem graça. Implorei a Deus por seu perdão. Agradeci por não perder a alma naquela noite de angústia. Acordei mudado, pronto ao recomeço, seria uma nova pessoa.

Em paz esperei por uma noite tranquila.

Meia noite e dois, lá estava a Desgraça Pelada gritando e berrando em seu canto.

Revoltado, joguei as cobertas para o alto, saltei decidido a estrangular a maldita criatura. Parti em sua direção. Antes do contato com sua carne podre me detive. Senti uma profunda tristeza em sua face. Era como se me olhasse no espelho, vi em seu rosto meu próprio sofrimento.

Sempre gostei de gritar e xingar, sentei e deixei que ela descarregasse sua ira, afinal uns gritos a mais ou a menos não iriam incomodar ninguém, apenas eu podia ouvi-los.

Por diversas noites escutei pacientemente suas histórias, aos poucos minha alegria voltava, troquei o dia pela noite. Por não ter nada melhor que fazer comecei a anotar o que ela dizia. Ela já não me xingava tanto. Contava-me coisas sobre deuses e demônios, presente e futuro, falava sobre criaturas nefastas travestidas de humanos que circulavam livres entre os mortais. Aprendi um pouco sobre a luz e as trevas. Descobri que o bom não é tão bonzinho assim e que mesmo os maus têm seu dias de mocinho.

Recontei algumas de suas histórias, muitos achavam que eram apenas mais delírios do doidinho. Tudo bem, o que importa é o fim do conto de fadas.

Desgraça em geral é uma calamidade, um desastre capaz de chocar mesmo aqueles que não estão envolvidos. Daí as coisas se esclarecem. Aquela mulher foi condenada a conhecer apenas as coisas ruins do reino divino uma vez que sua graça ela desprezou. Tornou-se um Arauto do Apocalipse, uma mensageira do fim dos tempos.

Tentei espalhar suas novidades. O doidinho se tornou profeta, por sorte o manicômio havia sido fechado. Naquela vilazinha sem futuro ninguém acreditou.

Parti para uma cidade maior onde muitos charlatões ganhavam a vida à custa do crentes. Comecei prevendo mortes macabras de pessoas influente daquele lugar. Parti para celebridades e desportistas. Criei um blog e comecei a cobrar, estranhamente com arranjo financeiro as coisas passam a ter mais credibilidade. A grande jogada se deu mês passado graças aos milhares de acesso que triplicaram. Após a previsão do terremoto do Nepal pude fechar um acordo milionário com uma conhecida multinacional japonesa, agora vivo do patrocínio. Ninguém deseja ver seus investimentos ruírem, e se acontecer é bom saber com alguma antecedência.

Quanto a Desgraça Pelada, ela ainda me acompanha. Ainda a vejo atrás das portas, continua velha e feia, às vezes mesmo durante o dia sinto sua presença, ouço alguém sussurrar em meus ouvidos, suas mãos geladas afagam meu peito, parecem querer me recordar de um compromisso futuro. Enquanto isso vou vivendo...

TEMA: Criaturas do nosso folclore e fantasmas

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 26/05/2015
Reeditado em 26/05/2015
Código do texto: T5255141
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