Julgamento - DTRL 22

Lá estava eu, podia ver meu corpo sem vida perfeitamente. Aos poucos os médicos e enfermeiros se afastavam, deixando sobre a cama o ser, agora inerte, em que tanto investiram. A vida se resumia a isso, chegar ao fim, e a minha chegava a seu fim ali.

O que seria de mim agora? Ou melhor, o que seria de minha alma?

Em vida nunca me preocupei muito com isso, afinal não valia a pena pensar na morte se ainda se estava vivo, haveria uma eternidade para fazer isso depois. Mas ao que tudo indica o momento de viver a eternidade havia chegado. Sem saber o que fazer, e sem saber para onde ir, e como ir, esperei. Olhei para cima, não sei se olhar é o termo, pois nem sabia se ainda possuía olhos ou equivalente, mas mesmo assim olhei, esperando o teto se abrir, uma luz brilhar ou um anjo aparecer.

O teto continuava intacto. Mas abaixo de mim uma mudança acontecia, não era mais meu corpo que se encontrava ali, aliás, a sala de pronto-socorro hospitalar em que me encontrava antes havia desaparecido, em seu lugar havia uma fenda, um buraco mais negro que a escuridão, e por essa fenda vi uma criatura horrível e majestosa subir, um ser ao mesmo tempo humano e animal.

“Então é isso” – falei – “Nada de Paraíso para mim, pelo jeito já fui condenado, pagarei pelos meus pecados e o Diabo veio em pessoa me buscar.”

A criatura, a quem eu julgava ser o Diabo, abriu sua boca, uma boca canina, cheia de dentes e presas, e falou:

“Aquiete-se, ainda não foi julgado, serás agora conduzido ao Salão dos Mortos e lá saberemos se serás ou não punido. Pois teu coração será pesado junto à Pena da Verdade.” – essas foram as palavras ditas pela criatura, e foram pronunciadas de maneira tão solene que fez todo o meu ser estremecer.

“Mas quem, ou o que, é você?” - perguntei.

“Tenho muitos nomes” – respondeu ele – “Mas em tua época sou lembrado apenas como Anúbis. Agora, me acompanhe.”

Anúbis. De onde conhecia aquele nome? E onde estavam os anjos ou arcanjos? Os santos ou mártires? Os espíritos, guias ou orixás? Jesus, Deus ou o Diabo? O que era aquela criatura que me recebia na mansão dos mortos?

Segui Anúbis, ele um meio homem, forte, de pele morena, praticamente negra, musculoso e com aquela estranha cabeça de animal, uma cabeça de cão ou lobo, ainda não sabia ao certo. Quanto a minha forma não poderia descrevê-la, me sentia ainda como um homem, mas não me via como tal, não sentia meus membros ou cabeça, apenas uma consciência errante.

E a nossa volta tudo muda. Anúbis me trouxe por mágicas desconhecidas a um enorme espaço sem paredes, com um horizonte infinito ao redor. No que parecia ser o centro de tudo vejo uma pequena balança, e perto da balança a mulher mais linda que já havia visto até então, a única palavra que encontro para descrevê-la é a de Deusa.

Então percebi que o próprio Anúbis também deveria ser um Deus e descobri a verdade: esqueça tudo o que aprendeu no catecismo, o que te contaram na escola dominical, o que os filósofos discutiam e os ateus negavam. Não havia Deus, havia deuses, e eu me lembrei do nome Anúbis e de sua cabeça, agora a reconhecia como uma cabeça de chacal, de um velho livro de lendas. Aquele era o guardião dos mortos dos antigos mitos do Egito Antigo, e aquela, a quem não me lembrava o nome, era também uma deusa, e eu sabia por que estava ali, seria pesado e julgado.

“Maat, trago-lhe um homem” – disse Anúbis.

“Diga teu nome.” – falou a deusa.

E eu disse meu nome.

“Agora é a hora” – falou Anúbis novamente.

E após ele ter dito isto senti uma dor tremenda, a dor em um peito que não mais existia. E vi nas mãos de Anúbis, vermelho e pulsante, a origem de tanta dor, lá estava meu coração, única parte restante de meu corpo mortal, pronto para ser medido.

Anúbis segurou a pequena balança, num dos pratos pôs meu coração. Maat retirou de sua cabeça uma pena, a Pena de Verdade, e o entregou, ele a colocou sobre o outro prato e esperou. Então a balança pendeu, pendeu para o lado do coração.

E eu sabia o que aquilo significava.

“Não verás o barco de Rá” – disseram em uníssimo Anúbis e Maat.

Céu para os bons? Inferno para os maus?

Não, antes passaremos todos pelo salão dos mortos e nossa alma será julgada pela Pena da Verdade. Aos bons uma nova chance de provarem que merecem seguir, e aos maus...

Ouvi um ronco surdo, um ranger de dentes, um arrastar de patas e então eu o vi, Ammit, o cão dos mortos, misto de leão, crocodilo e todo tipo de bestialidade possível.

Ele se aproximou de mim e antes que eu dissesse qualquer coisa senti seus dentes dragarem minha alma e tudo que fui deixou de existir, permaneceu apenas minha dor e lamento, estes sim eternos, durando para todo o sempre.

E nos últimos instantes de minha existência vi Anúbis trazer mais almas descrentes para serem julgadas.

TEMA: Mitologia Egípcia.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 02/06/2015
Reeditado em 02/06/2015
Código do texto: T5263407
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