GOTAS DE LUA DTRL 22

APOSTA

" Felipe, eu quero ser um corredor quando crescer."

" Mas você nem consegue ganhar de mim na corrida. Como vai ser um corredor?"

" Quer apostar?"

" Apostar o quê?"

" Eu aposto minha bolinha leitosa da lua, Gabriel. E você?"

" Eu aposto cem bolinhas. Certo?"

" Combinado. Pronto? Um, dois e tr..."

Na estrada de terra vermelha, quatro pés descalços deixaram uma nuvem de poeira. Nesta corrida, não houve ganhador. Iria ter um, porém, só alguns anos mais tarde.

***

- Ahhhhhhhhhh... Essa cadeiras podiam ser mais confortáveis, né?

- É verdade. E essa quimioterapia acaba com a gente.

- O que você tem?

- Câncer no fígado. E você?

- Câncer em tudo - Risos.

- Vem cá, o senhor não é aquele velhinho louco da corrida?

- Depende de qual corrida, se for daquela que parei no meio, sou eu sim. É mais fácil reconhecer velhos loucos, certo?

- Ah, me desculpe pelo louco. Não quis dizer isso. Mas devo dizer que todos lhe chamaram assim mesmo. Faltava tão pouquinho para terminar a prova. Tenho esta dúvida desde então - ajeitei-me na cadeira. - O que aconteceu naquela tarde?

- É uma longa estória.

-Tempo é o que mais tenho - Risos.

Olhando para as bolsas de quimioterápico, Felipe assentiu com a cabeça afirmando que tempo não seria o problema.

- Desculpe minha indelicadeza. Prazer, Jorge.

- Felipe. A seu dispor - Fez um aceno tirando um chapéu imaginário mostrando uma branca careca.

- Já carregou uma grande dúvida que não conseguiu desprender-se dela, Jorge? - Perguntou-me Felipe.

- A culpa machuca e dói. A culpa é intensa e cruel…. Dormir a noite sempre foi difícil até o dia da maratona. Sabe o bem de ganhar uma mente tranquila ao deitar-se para dormir? Não, você não deve saber.

***

INFÂNCIA

Era incrível a mira de Gabriel quando jogávamos bolinha de gude. Após girar os calcanhares na terra para fazer as covas, não demorava muito para gritar:

"Estou na matança"

Com uma admirável destreza, enchia sua garrafa com bolinhas de gude para irritação de todos nós. Eu não ficava particularmente triste, pois ele sempre dividia comigo as bolinhas mais tarde. Fazia parte do show o disfarce para não ser injusto com os outros. Gabriel só não dividia as bolinhas leitosas que ganhava. Essas sempre guardava. Ele tinha uma teoria sobre elas.

"Comento dessa teoria depois. Temos tempo, né? Risos."

À noite, sempre brincávamos de esconde-esconde. Comíamos batata na fogueira. Estrela nova cela. Contávamos algumas estórias de terror, mas não tínhamos contextos suficientes, e sempre acabava em comédia ou trivialidades do nosso cotidiano.

Ser criança é muito bom. Foi muito bom. Não sei lhe dizer se nasci na época certa, mas foi tão bom ter a rua como quintal de casa. Meus pais eram autoritários, sim, porém, meus irmãos e eu não tínhamos rédeas quando tudo era tratado com respeito.

***

MARATONA

" É incrível como este senhor de 62 anos irá chegar na quarta posição nesta meia maratona. Caros telespectadores, o que estão vendo é algo que irá ficar na história. Ao longo destes 20 quilômetros, o senhor Felipe de Souza Tavares, de 62 anos, está a apenas um quilômetro da reta final, e na incrível quarta posição. Sim, quarta posição! Nunca na história da meia maratona de São Paulo aconteceu algo do tipo. Estou até arrepiado pela capacidade deste senhor. Com uma face serena e não demonstrando cansaço algum, segue para os próximos 850 metros com uma diferença de 1,5 quilômetros para o quinto colocado. Os espectadores situados na rua não cansam de aplaudí-lo. Confesso que aqui na cabine também o aplaudo.

Mas o que aconteceu? Parece que ele encontrou algo na guia e sentou-se. O que ele está colocando no olho? Algum tipo de lente que pegou do chão? É uma bolinha de gude?! Ele apenas ri. Apenas 250 metros para o final da prova. Não da pra acreditar nisso que estamos presenciando.

É uma bolinha de gude aquilo mesmo? O quê? (...)

***

GOTAS DA LUA

"Felipe, sabe o que descobri?"

"Não. O quê?"

"Vão mandar um homem para a lua ainda esta década. Meu pai disse que é briga de uns países ai. Explicaram que lá tem muitas crateras, ele mesmo me disse. As crateras são buracos, sabia? Olha isso.

Brincávamos de bola no quintal de casa, chutando-a para longe, Gabriel veio em minha direção."

Tirou a uma bolinha leitosa muito brilhante de dentro do bolso e a estendeu para mim:

"Você acha que isso veio dos buracos da lua também? Falou com os olhos ansiosos."

"Que bobagem, Gabriel. Imagina que isso caiu da lua logo aqui."

"Mas olha que estranho - fechou as duas mãos em concha e estendeu pra mim: - Vamos, olhe, brilha no escuro. A lua brilha no escuro também".

Não tínhamos ido a escola esse dia. A manhã nasceu chuvosa, cinza e não havia energia elétrica. Como não tinha nada a ser fazer mesmo, escutei pacientemente a estória de Gabriel e sua teoria sobre gotas da lua. Por um segundo, fiquei tentado a acreditar, mas não acreditei. Como será possível cair um pedaço do buraco da lua simplesmente aqui? Só achava estranho aquilo brilhar no escuro.

O rádio da minha mãe acordou na cozinha e escutei o estrondante barulho da geladeira voltando a funcionar. A energia voltara. Um raio de luz iluminou o quintal da minha casa e já não garoava mais. Gabriel já estava me chamando do portão para irmos pra rua. Eu sempre soltava um risinho de admiração pela rapidez dele. Sempre pensando a frente de mim.

***

CICATRIZES

" Ei, garotos, vocês não podem ficar ai dentro. É só para adultos - Gritou o dono da locadora."

Gabriel soltou a fita cassete no chão, deu-me a mão e saímos correndo. Já caía a tarde, e o céu estava alaranjado. Já bem longe e ofegantes, descansamos as mãos em nossos joelhos.

"Essa foi por pouco, de novo - Disse respirando em pausas."

"Você viu o filme daquela loira? Eu ainda vou casar com ela. Você vai ver."

"Você e essa loira viu, Gabriel. Toda vez só fica vendo a mesma fita."

"Você é muito medroso, Felipe - disse Gabriel olhando uma pipa pairando sem destino no céu. Apontando para o alto disse: - Vamos atras?"

Antes de ele terminar a frase, eu já estava colocando os chinelos em meus cotovelos e saindo primeiro em disparada. Tentei, em vão, ser mais rápido que ele dessa vez.

Um pouco menor que eu, Gabriel já tinha mais cicatrizes em seu rosto e mãos do que eu e você poderíamos ganhar a vida inteira. Todas provenientes do futebol, da época dos pipas, das quedas de bicicletas. Caímos feio uma vez de carrinho de rolimã. Ah, que época boa. Olha essa cicatriz - estendeu-me o braço esquerdo - foi desse dia... Ambos brancos e de cabelos castanho claros, era fácil dizer que éramos irmãos e não amigos. Mas, diferente de mim, Gabriel tinha esperança nos olhos. Os meus acumulavam um tom de cinza. Bem mais do que é hoje.

No céu laranja, a pipa boiou demais para que pudéssemos pegá-la.

-

" Enfermeira, pode me dar um saquinho, por favor?"

"Claro."

"Me desculpe, Jorge"

"Ah, não me peça desculpa. Já tomei muitas doses, mas sempre vomito com essas quimioterapias. Você estava contando da sua infância. Parou na parte da pipa..."

"Ah, sim. Alarme falso, Enfermeira, não sai nada do meu estômago. Mas ficarei com o saquinho. Obrigado."

"Posso continuar amanhã, Jorge? Acabou minha sessão."

"Claro que sim. Amanhã estarei aqui com certeza. Risos."

-

- Gostei, Jo. Mas este livro que vai escrever é uma estória real mesmo?

- É sim, Letícia.

- Estou gostando. Que nostálgico, né? Queria estar do seu lado quando teve câncer. Me sinto culpada às vezes, sabia?

-Já disse para parar de ser boba. Não tinha nem como. Quando me curei, viajei para o nordeste e conheci você. Através dele, indiretamente, conheci a mulher da minha vida.

-É verdade. Mas então, quero saber como termina. Estória linda desses dois meninos. E esse senhor Felipe, morreu? Vou colocar mais partes no livro, posso? Fantasiar mais um pouco...

-A escritora aqui é você. Também não me lembro muito bem da estória. Faz tanto tempo. Memória boa daquele senhor. Bom, ele só foi contar a parte final um mês depois. Faltou em todas as sessões anteriores. Eu sempre fitava a porta na esperança de encontrá-lo. Até que apareceu sorridente como sempre um dia...

- Peraí, a pipoca no microondas.

***

SONHOS ROUBADOS

"Duvida eu ir ali no meio?"

"Gabriel, é perigoso."

"Ah, seu medroso. Eu sei nadar. E essa represa não é tão funda assim."

- Felipe, Gabriel não voltou mais. De longe, suas mãos suplicaram oxigênio, e, na minha covardia, não pude ajudá-lo. Não pude. De cabeça baixa e chorando, vi seu corpo boiando na mais pura calma e sem destino. Como um verme, me senti na necessidade de entrar em qualquer pedaço de cocô que pudesse achar. No momento, eu fazia parte daquele mundo.

Foi a primeira vez que os olhos de Felipe mudaram de tom. Ao comentar sobre a morte do amigo, senti sua angústia doer dentro de mim. Dessa vez ele vomitou muito. Trocou duas vezes de saco e a enfermeira já deixou um terceiro ao seu lado. Ao mexer no bolso da sua calça, sua aflição cessou e continuou a estória.

"Voltei muito tarde para casa este dia. Descalço e sujo, não escutei uma palavra do que minha mãe dizia. Apenas deitei. Em meu quarto, vi Gabriel em pé, e molhado, me chamando para brincar. Com o travesseiro na cara, gritei chorando. A maior dor que já tive.

Ardi em febre esta noite. Quando me vi, estava em um hospital chamando Gabriel aos gritos. Uma leve injeção trouxe meu sono e, ao piscar meus olhos pela última vez, vi as lágrimas da minha mãe cair sobre nossas mãos entrelaçadas. Eu devia ter morrido naquela tarde também.

***

DOR

" Em uma manhã cinza e de garoa, a polícia estava batendo palmas em meu portão. Escutei dona Ofélia, mãe de Gabriel, aos prantos lá fora."

- Sim, Jorge, minha covardia não me deixou dizer nada do que aconteceu à ninguém - Pegou mais uma vez o saquinho e vomitou. - Eu era um zumbi que não ia mais para a rua, vivendo só na escuridão dos meus próprios pesadelos em minha casa.

" Passou-se dois meses entre choros, gritos de animal e mais agonia para o processo policial ser arquivado culposamente. Ao me encontrar, raras as vezes, na rua, dona Ofélia sempre desatava a chorar. E, por consequência, eu também.

-Acredita em fantasmas, Felipe? - Perguntou-me com um risinho sarcástico.

-Não muito - Respondi relembrando uma estória de infância -, acho que não existem. Ou talvez. Não sei.

- Pois deveria - Respondeu-me inclinando-se na cadeira.

***

FANTASMAS DO PASSADO

Já mais velho, acordei em uma noite com um cheiro de peixe. Ao acender a luz, Gabriel estava em pé, todo molhado, na beira da minha cama.

'Por que não pega minha mão, Felipe? - Dizia inclinando o dedo indicador em minha direção.'

Minha voz nunca saia com aquelas aparições. Sentia a mesma incapacidade do dia em que ele se afogou. Antes, eu só o via de longe. Porém, agora, a cada dia piorava. Em uma vez, ele segurou meu braço e repetia:

' Era assim que você tinha que me pegar. Vem cheirar a água comigo, ela enche os pulmões. É bom'

Suado, pálido e com frio, chegou a hora de ser apanhado pela última vez por minha mãe. Deixando nosso lado evangélico de lado, fui levado em uma sessão espírita.

***

PERDÃO

" Depois de meses sem sucesso, Gabriel falou comigo. Sua voz doce saiu dos lábios daquela senhora de olhos fechados à minha frente. Chorei como nunca. Gritei agoniado. A palavra desculpa saiu milhares de vezes, involuntariamente também, por minha boca. Só parei após sentir um beijo em minha face. Tentei abraçar o nada. sabia que era ele ali me consolando."

'Eu te perdoo, meu amigo. Nunca te fiz mal, foi apenas seus pensamentos. Eu chorava aqui por ti, também. Sei que não foi culpa sua, eu não queria um amigo morto comigo. É tão bom ver seu sorriso daqui. Veja como esta sorrindo.

"Não lembrava o quão doce são as lágrimas. Seu gosto salgado que tanto me infernizou, deu lugar ao mais puro doce de mel. Em paz, me abracei sozinho. Ele estava ali comigo."

'Amigo, tenho que ir. Escreverei uma carta aqui, entregue-a para minha mãe, por favor. Ganhei minha paz. Vou para perto de Deus agora. Felipe, eu te amo, meu amigo.'

***

ABRAÇO

Após sair daquele sala escura, um vento calmo encheu meu pulmões. Estava em paz comigo mesmo. Olhei para minha mãe e sorrimos juntos. Por insistência minha, deixamos flores e umas bolinhas de gude, na sepultura de Gabriel.

Dona Ofélia leu aquela carta ali mesmo no portão. Como de costume, não consegui encarar seus olhos. Olhando para o chão, vi suas lágrimas caindo ritmadas evaporando-se logo após. Depois de ler, apertou a carta contra o peito e chorou mais. Abracei-a.

Choramos juntos. Dessa vez de felicidade. Dona Ofélia deu-me um beijo no rosto e me pediu desculpas. Abracei-a tantas vezes que perdi a conta. Afinal, senti Gabriel ali conosco. O cachorro amarrado no fundo do quintal, balançava sua calda revendo o velho dono ali conosco. Ele estava ali nos abraçando também.

-

- Que estória hein - Disse enxugando os olhos de algumas lágrimas disfarçadas. Mas, o que a estória tem a ver com a corrida? Perguntei.

Levantando-se, sua quimioterapia já havia acabado há algum tempo, deu-me um risinho grutual e tirou uma bolinha do bolso da calça.

- Isso é uma gota da lua - Estendeu aquela bolinha de gude na minha direção. - Tome, segure.

Era um objeto qualquer, mas ao saber da estória, aquela pequena coisa esbranquiçada me causou arrepios.

-Ainda não entendo - Disse devolvendo sua bolinha.

Guardando de volta no bolso me respondeu:

- Naquele dia a lua apareceu a tarde. Em um céu azul de sol. Na guia encontrei essa bolinha reluzente para mim. Senti Gabriel do meu lado, dividindo comigo, pela primeira vez, uma bolinha leitosa - coçou o nariz e continuou. - Ganhei nossa aposta. Logo mais sei que irei brincar com ele lá no céu.

Felipe deu-me as costas e saiu pela porta principal da clínica. Nunca mais o vi.

Tema: Fantasmas

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Boa noite galera do DTRL. É sempre uma honra participar deste desafio. Peço desculpas, minhas sinceras desculpas, pelos erros que possam encontrar no conto. Além de postar aos 45 minutos do segundo tempo, faltou-me tempo para uma revisão adequada. Mas não deixaria de participar por isto. Começarei minha leituras e boa sorte à todos. Que esta grande família permaneça sempre unida!

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 03/06/2015
Reeditado em 09/06/2015
Código do texto: T5265393
Classificação de conteúdo: seguro
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