[7 Desafio Contadores de Histórias - 11¤ Conto ] - Novo método para caçar bandidos


Miguel Carqueija


Quando entrei para a Polícia de Investigação, em dezembro de 2080, conheci logo Erastótenes Quintela, o famoso Delegado Quintela, e fui alocado em seu grupo, o que para mim foi uma sorte extraordinária.
Mandaram que eu me apresentasse a ele. O Pablo Mandarim me introduziu em seu gabinete e pela primeira vez pude ver pessoalmente e falar com Quintela, um homem tremendamente careca e com cara de sapo cururu.
Ele mandou que eu sentasse. Depois, sem dizer palavra, acionou um botão em sua mesa que chamou um holograma de uma garota que me oferecia um cafezinho. Achei o humor de muito mau gôsto - afinal o cafezinho era apenas virtual e eu não poderia nem segurar a chícara, quanto mais tomar o conteúdo. Mas o Quintela aparentemente achava muita graça em seu próprio senso de humor infame: caiu na gargalhada, enquanto eu me mantinha sério.
-O.K. garota pode ir - e assim dizendo ele despachou a avantesma. -Pois muito bem, Tomás - agora que tomou seu cafezinho, vamos ao que interessa. Porque você quer trabalhar na Polícia de Investigação?
-Quero subir na minha profissão. Quero ascensão funcional.
-Isso é um justo motivo, mas eu quero motivações mais altruístas. Servir à sociedade, combater o crime, isso não lhe interessa?
-Isso já é inerente à profissão.
-Muito bem. Gosto de quem dá respostas diretas. Eu estou justamente com um caso interessante: o de Vivaldo Quintino. Um sujeito rico, da alta sociedade, possui fazendas hidropônicas na Lua, aparece nas colunas... mas é um bandido e eu vou prendê-lo.
-Você tem provas contra ele?
-Ainda nenhuma que possa obter do tribunal mais que dois meses de cadeia. E nem dois séculos seriam o bastante para ele. Eu estou compondo a minha equipe atual e você completará o número necessário para esta missão. Nós só descansaremos depois que o Quintino estiver no xilindró.
-Bem, eu gostaria de saber mais detalhes...
-Já viu filmes de gangster?
-Dos velhos tempos? Oh, já, alguns.
-Ele é bem um gangster moderno. Por exemplo, é um dos chefões do comércio de zips e possui muitos contatos internacionais. Quem trabalha para ele e suas vítimas estão sob regime de terror, como é comum no mercado de zip.
-E ninguém fala, mesmo? E o soro da verdade?
-Nunca usei isso. Só o faria em último caso.
-E como é que nós vamos agir?
-Você vai ver. Primeiro eu o apresentarei ao resto da equipe.


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Passaram-se alguns dias. Eu fazia apenas serviços burocráticos e rotineiros quando, por volta do meio-dia de uma quinta-feira, o sapo cururu (perdão, o Quintela) chamou-me ao seu gabinete. Segui para lá, acompanhado por uma escolta de garotas em traje de ginástica, porém todas transparentes. O Quintela possuía em sua sala uma verdadeira central técnica com a qual monitorava seus hologramas por todo o andar. Nem sempre utilizava garotas. Às vezes éramos acompanhados por dromedários, o que, tendo em vista o espaço de que dispúnhamos, era irritante.
Chegando lá deparei com a turma completa, esparramada nas poltronas de plástico do gabinete. Lá estavam Jane Açucena, com sua pele cor de ébano contrastando belamente com a roupa azul-marinho; Ubaldo Tomé de Souza, com seu jeitão de Fred Flintstone; Aderaldo Antonioni, cheio de tiques nervosos (o menor era ficar manipulando as sobrancelhas); Estevão Durango Jones, com seu boné verde-amarelo e sua mania de ficar olhando o teto; Alaíde Vasques, gorda e com seu aspecto de indolência, apesar de sua comprovada eficiência; e Orestes Napoleão Silva, que preferia ser chamado de “o Silva” e usava óculos de armação bicolor (lado esquerdo amarelo, lado direito roxo). Diziam que nós éramos - ou seríamos - os sete de ouro do Quintela.
-Bem, gente - foi dizendo o delegado - agora que estamos completos, vamos dar início à operação. Vamos falar com o Quintino.
-Mas, Quintela - objetei - ainda não vi nenhuma investigação...
-Isso já se fez há anos. Você viu o dossiê dele.
-Sim, mas...
-Não adianta ficar em investigações infrutíferas que não levam o homem à cadeia. Vamos usar o método direto. Ele vai almoçar com uma garota no Alçapão. É para lá que nós vamos.
Nosso grupo foi todo para o micro-ônibus usado por Quintela, que um funcionário chamado Trindade dirigia. Em pouco mais de doze minutos paramos em frente ao restaurante Alçapão, na Gávea, e durante esse tempo não consegui opiniões mais elucidativas do que estas:
UBALDO - Ele sabe o que faz, você verá.
SILVA - Eu sei lá! Esse homem é mais doido que eu!
JANE - Ah! Ah! Você ainda não conhece os métodos do Erastótenes! Pois não perde por esperar...
ALAÍDE -Eu calculo o que vai acontecer, mas será tão interessante que eu não pretendo antecipar nada.
ESTEVES -Já reparou como é bonito o teto desse ônibus?
ADERALDO - Tudo tem relação com a capacidade do Quintela de ficar atanazando os outros.
Chegamos ao pátio de estacionamento do Alçapão e Quintela, carregando como um vendedor ambulante - desses de bandeja presa ao pescoço - seu equipamento holográfico de última geração, comboiou o grupo até uma mesa que reservara, junto da mesa de dois lugares do Quintino. Com Esteves olhando o teto branco 
enquanto escolhíamos lugar, Quintela fez surgirem os hipopótamos em versão bem
reduzida, e com sapatilhas de bailarina (evidentemente inspirados na “Fantasia” de Walt Disney) e aproximando-se do Quintino, berrou de forma a ser ouvido a um quilômetro de distância:
-Alô, Quintino, seu safadão! Quando é que você vai confessar, afinal?
Vivaldo Quintino - homem bem apessoado, de cabelos pretos, e no momento acompanhado por uma loura colunável, de busto avantajado - olhou estupefato para o policial e seus hipopótamos.
-Que é que você quer comigo? Que palhaçada é essa?
-Ouviram? Ele chama isso de palhaçada!
Quintela e os paquidermes caíram na gargalhada. Logo os quatro hipopótamos bípedes dançavam, irônicos, ao redor da mesinha onde a garota, já apavorada, compartilhava uma refeição com o gangster. Mais prático que o Quintela, Orestes pedia uma “pizza” para oito.
Eu confesso que não estava entendendo nada, mas o volumoso Ubaldo tocou-me o braço e observou:
-ESSE é o método dele, Tomás. Observe.
Sem deixar de manipular os controles dos zoologramas, Erastótenes dançava, cantava e vociferava alegremente:
-Nós o conhecemos bem, Quintino! Sabemos quem você é! Só queremos que você confesse! Não é, rapazes? O que é que vocês têm a dizer?
E os hologramas hipopotâmicos, fazendo mesuras debochadas, exclamaram em uníssono com as suas bocarras:
-Confesse! Confesse! Confesse!
Vencendo a inicial perplexidade, Quintino avançou sobre Quintela e deu-lhe um soco na cara, que o jogou a tres metros de distância. Foi o bastante para que Jane pulasse gritando:
-Está preso! Agrediu um policial!
Os hipopótamos cercaram Quintino e começaram a bater nele. Ou fizeram de conta que o faziam, já que hologramas não possuem materialidade para isso. A mulher correu, apavorada, e Vivaldo, buscando se livrar dos absurdos bichos, pegou sua valise e tentou correr; mas foi detido pelo nosso grupo.
-Que estão querendo fazer? Foi ele quem me provocou! Meu advogado vai arrasá-los!
-Veremos - disse o delegado Quintela, já refeito do soco.
A imprensa chegara nesse ínterim. Aliás, até fotografaram a cena do “vôo”de Quintela. Claro, ele é que chamara a mídia.


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Nos dias que se seguiram a batalha jurídica e publicitária desabou feia. Os colunistas amestrados, que mamavam nas tetas do gangster, caíram em nossa pele, especialmente na do delegado. Dizem os advogados que um cidadão pode ser processado por qualquer coisa; assim, não foi difícil aos advogados do Quintino arranjar um processo contra o Quintela, por utiulização abusiva de imagens holográficas. Este porém já tinha um promotor preparado de antemão para processar o Quintino, o que foi feito com base na agressão física testemunhada. No fim, na ausência de leis sobre a utilização de hologramas - não era uma contravenção prevista - a multa por agressão a um policial foi bem superior à multa aplicada no delegado por “perturbação da ordem pública” (nós outros fomos absolvidos por termos apenas assistido) e assim, nesse primeiro “entrevero”, o Delegado Quintela não só não precisou desembolsar um tostão sequer, como ainda recebeu uma boa grana e pôde gratificar a todos nós e ainda saiu lucrando.
Mas é claro que ele não se dera por satisfeito.

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-Vamos continuar pressionando - foi ele dizendo na reunião que se seguiu.
Já tendo percebido quais eram os estranhos métodos daquele meu chefe, animei-me a opinar:
-Será que isso dá resultado... ficar chateando o homem? Ou estamos apenas arranjando encrencas?
-Você verá. Eu sei bem como agir - respondeu Quintela, seguro de si.
E assim, numa tarde de sábado em que o gangster, como apuramos, estava em casa, fomos todos nós até a frente da mansão, na Barra da Tijuca, e cada um de nós portava um grande cartaz. Como a lei permitia qualquer passeata pacífica que não atrapalhasse o trânsito ou causasse danos materiais (num ato de desburocratização, anos atrás, eliminara-se a necessidade de autorização prévia), o delegado estava tranquilíssimo em relação às consequências. Eu porém me sentia um autêntico idiota, portando uma tabuleta onde se podia ler:


E AÍ? VOCÊ NÃO VAI CONFESSAR?

FALE, V.Q! FALE!


O “V.Q.”era uma precaução do delegado. Poderia, em último caso, alegar que não se poderia provar que aquelas iniciais referiam-se a Vivaldo Quintino. Outros
portavam cartazes semelhantes:


“V.Q.: NÓS NÃO DESISTIREMOS FACILMENTE” (Ubaldo)


“V.Q.: SUA CONSCIÊNCIA NÃO DÓI? OLHA QUANTA MALDADE VOCÊ ESTÁ FAZENDO!” (Jane)


“ESTAMOS TRISTES PORQUE O V.Q. CONTINUA COM AS SUAS TRAVESSURAS” (Aderaldo)

“V.Q.: É FÁCIL. BASTA ESCREVER O QUE VOCÊ FEZ E ASSINAR” (Alaíde)

“SOMOS A SUA CONSCIÊNCIA LHE ATORMENTANDO, V.Q.!” (Esteves)

“DESISTA, V.Q. VOCÊ NÃO CONSEGUIRÁ SE LIVRAR DE NÓS” (Silva)


Quando começou a juntar gente, o Vivaldo apareceu acompanhado pelo filho e por meia dúzia de gorilas e foi dizendo ao Quintela:
-Escute aqui, palhação. Não vou soltar a minha matilha de mastins mordedores, porque provavelmente eles matariam você e todos os demais por dilaceração total. Não vou lhe agredir, porque é isso que você quer. Não vão conseguir mais um tostão de mim por indenizações ridículas. Vou só lhe dizer uma coisa. Se a sua idéia é ficar me atazanando, eu posso simplesmente entrar no mesmo jôgo. Posso contratar um grupo para ficar em frente à sua casa ou para segui-lo cantando canções debochadas, posso até botar anúncios na televisão chamando-o de bobalhão - qualquer coisa tão pouco ofensiva que a Justiça não se importará, mas atingirá você. E de qualquer modo você nunca me botará na cadeia com esse método.
-Um momento! Você disse que tem uma matilha de cães mordedores?
-É claro. Cães de guarda têm que morder quando for necessário. Por essa você não me pega.
-Estão todos vacinados contra a raiva?
-Pô, cara! - disse o Junior, filho do Vivaldo. - Tás afim de empentelhar o meu pai? Não me importo de te quebrar a cara e pagar a fiança depois!
-Calma, Junior - Quintino encarou Quintela: -Estão todos vacinados sim, esper-
tinho. Quer ver os atestados?
-Se não se importa, eu quero. Porque se houver uma irregularidade...
-Então venha e deixe a sua tropa de fora.
-Pois não, V.Q. Já sabe que se eu não voltar inteiro dentro de 30 minutos...
-Não sou nenhum idiota, seu idiota. Ninguém lhe tocará num fio de cabelo. Vamos logo!
Vários de nós protestaram, mas algo me impeliu a ser o mais enérgico:
-Isso é que não! Chefe, desculpe mas ao menos eu irei! Sozinho você não vai!
-Grande coisa - disse Vivaldo. - Está bem, cara de tamanduá, vem só você.
Engoli o insulto ao meu nariz - que afinal não é tão grande assim - e segui o Quintela para o interior da mansão. Ele porém estava visivelmente aborrecido com a minha presença:
-Não queria que você viesse. Tenho minhas razões.
-E eu tenho as minhas para ir. E ponto final, ou iremos todos nós!
Esta sugestão desagradou mais ainda o Erastótenes, por isso ele se conformou com a minha presença. Iria entornar o caldo se o impasse surgisse, pois o Vivaldo não daria entrada ao grupo.
Entramos. Era bonito realmente lá dentro. Jardins, repuxos, um coreto, alamedas de cerca-viva. E uma porção de cães de aspecto selvagem, porém disciplinados, que nem se aproximavam, à falta de uma ordem de ataque.
Fomos caminhando pelo piso de pedras portuguesas, e então, após uns vinte passos, Erastótenes apontou para o alto de um jardim e falou:
-Ei, Quintino! Que pássaros esquisitos são esses?
-Hein?
Vivaldo não pôde deixar de olhar, assim como o Junior; eu é que não caí, e quase consegui deter o Quintela quando ele levou à boca um apito tirado de um dos bolsos. Ele apitou com fôrça, mas eu não escutei nada.
Foi o bastante para alvoroçar a cachorrada. E assim, diante do meu espanto, Quintela saiu correndo como um guepardo e gritando:
-Tomás! Tomás! Você vai ter que verificar se eles estão vacinados! E tomara que estejam!
O muro era muito alto...

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Duas semanas depois eu pude visitar o delegado no Hospital Italiano, onde ele fôra submetido a transfusões de sangue e algumas dezenas de pontos. Embora ainda todo enfaixado, não perdera o bom humor.
-Devo lhe dar os parabéns, Quintela. Você disse que colocaria o gangster na cadeia e colocou. A minha dúvida é: valeu a pena?
-O preço foi um pouco alto, sem dúvida.
-Um pouco alto! Você deu sorte em escapar com vida!
-Eu tenho sete vidas, Tomás. É verdade que dessa vez eu quase me arrependo...
-Jamais copiarei os seus métodos. Ainda que você tenha posto até o filho do Vivaldo no xilindró. Prezo muito a minha pele.
-Bom, sabe quando eu terei alta?
-Creio que daqui a um mês.
-Um mês! Estou impaciente, amigo. Tanta gente para por na prisão...
Suspirei.
-Já vi que você não aprendeu a lição. Só peço a Deus que não sobre para mim...





(imagem do filme Fantasia, de Walt Disney)