Os Hathaway’s - DTRL 23 #LUTO#

O som do crepitar produzido pelo motor em chamas invadia a cabine e atordoava Charlie. A asa direita da aeronave parecia não mais resistir à intensa velocidade imposta pela perda abrupta de altitude. O Avião iria de fato cair.

O piloto tentava controlar o monomotor em fúria sobre a imensidão do Oceano Atlântico. Todos os fatores convergiam para o seu eventual fracasso. A pane elétrica, a explosão inexplicável dos componentes mecânicos, e por fim a quebra das asas. Charlie nunca esperaria dar o braço a torcer sobre as superstições que envolviam aquele local, e talvez esse tenha sido o seu maior erro.

Ele morreria no enigmático Triângulo das Bermudas.

Faria parte daquela história que tanto negava ser real, mas da qual pretendia aproveitar-se para lucrar. O vôo no seu pequeno avião não era mero passeio instrutivo. O jovem americano pretendia fazer riqueza levando estrangeiros supersticiosos para sobrevoar o misterioso local. Por ironia quis o destino, ou seja lá quem rege as leis irônicas do mundo, que o piloto fosse parte daquela estatística de casos inexplicáveis.

Charlie viu seu horizonte transmutar-se em um azul profundo.

Sentiu o impacto da aeronave com mar inebriante, desmaiando instantaneamente.

O piloto poderia estar grato por isso. Devido a sua inconsciência ele não veria a água invadir a cabine e penetrar em seu corpo. Completando-o, por inteiro, com a água salgada do Oceano.

***

- Ele está acordando! Ele está acordando! – gritava incansavelmente um pequeno homem barbado ao lado de um improvisado leito hospitalar.

A cabeça de Charlie doía como se dela tivessem sugado toda a massa encefálica existente. Ele duvidava que aquilo fosse possível, mas após sobreviver aquele acidente teria que reconsiderar vários de seus conceitos.

Antes que pudesse dizer algo, o pequeno homem que devia ser seu encarregado, tratou de tranquilizá-lo. Disse que os destroços do avião juntamente com o seu corpo flutuaram até a praia daquela ilha, onde os nativos trataram dele.

- Está se sentindo melhor? – disse uma voz vinda do outro lado do quarto.

Charlie revirou-se na cama com dificuldades e viu um homem muito elegante que acabara de entrar. Ele usava um smoking preto, uma cartola e uma chamativa gravata borboleta vermelha. O acessório rubro parecia ter luz própria, e apenas o fato de encará-lo fazia com que a cabeça do piloto latejasse.

- Torcemos muito pela sua melhora, nobre amigo – disse o homem elegante – sou Sr. Wolowitz Hathaway, com três dáblios, ao seu dispor.

A mensura feita pelo homem e sua demasiada elegância contrastavam completamente com o ambiente no qual se encontravam. Um breve girar de pescoço seria o suficiente para ver tudo que existia naquele local. A cabana era coberta por uma lona amarela, que com o tempo havia enegrecido, não possuía ao todo mais que seis metros quadrados, e a mobilha era uma mistura de porão abandonado com cabana de pesca, também abandonada.

- Você ficará bem em breve, dormiu por dias, mas já está praticamente curado – disse antevendo a próxima pergunta do piloto ali deitado.

O pequeno homem, que Charlie estava quase certo se tratar de um anão, vestia-se de um modo ainda mais peculiar. Sua roupa era basicamente constituída por um único pedaço de pele de algum animal semelhante a uma onça, mas que certamente não teria sido caçada por ele. Charlie não riu, pois ainda estava atordoado, mas aquela figura mais parecia um daqueles pequenos bonecos que ficam mexendo a cabeça sempre que o vento sopra, só que nesse caso, ele estava fantasiado de homem das cavernas.

O piloto sentiu vontade de tocar a cabeça desproporcional do homem para ver se ela balançava, mas sua curiosidade foi cessada com a chegada de outra figura inesperada.

Um palhaço.

Ele entrou no quarto muito sério enquanto limpava as mãos sujas em uma flanela ainda mais encardida de graxa.

- E então? A que patamar está nosso conserto? – perguntou Wolowitz Hathaway com três dáblios.

- Nada bom, Nada bom – repetia o palhaço. – O primeiro passo foi retirar o motor estragado e substituir pelo que tínhamos no carro maluco, mas não ficou bom. Bem... você sabe, aquele motor explode direto, não sei se isso poderia ser um problema durante o vôo.

- Vôo? Vocês estão consertando o meu avião?

O palhaço olhou para Charlie como se só então tivesse percebido sua presença ali e então prosseguiu.

- Ah, sim. Estamos consertando. Mas que belo estrago o senhor fez, hein? Será que ninguém lhe explicou que esses aviões não podem mergulhar na água? – sua entonação indicava que ele não estava sendo sarcástico.

- Do que você está falando? Eu não caí de propósito.

- Não? – se intrometeu a miniatura de homem das cavernas – Vimos quando você desceu na água, e se me permite dizer, parecia ser muito experiente nisso – mais uma vez não havia sinais de sarcasmo.

As outras duas figuras concordaram com a cabeça.

- O quê? É lógico que eu não fico caindo por ai, afinal de contas quem são vocês? E por que diabos estão vestidos assim? Não estou entendendo mais nada.

Os homens baixaram os olhos para verificarem suas próprias roupas e não pareceram surpresos com o que viram.

- Qual o problema com elas? Esses são nossos trajes de trabalho – disse o homem elegante – Nós somos o Circo Hathaway.

Clap, Clap – HEY! – bateram palmas e gritaram.

Para Charlie aquilo não podia estar acontecendo. Primeiro o acidente, e agora isso? Em poucos minutos já sentia os sinais daquela overdose de loucura.

- Acho que você já está suficientemente bem para me acompanhar em um passeio pelo acampamento – Prosseguiu três dáblios – Não se preocupe, os palhaços cuidarão do seu avião, eles consertam de tudo.

Charlie olhou para o palhaço em busca de uma confirmação, mas recebeu apenas um mostrar de língua mal humorado.

- Venha – puxou pela mão o homem elegante.

Quando saíram do cubículo que lhe servia de ambulatório, Charlie viu o que parecia ser um acampamento mal elaborado. Tendas se estendiam por todos os lados, palhaços, malabaristas e contorcionistas espalhavam-se pelas cabanas a beira mar carregando utensílios ou apenas realizando os seus números.

- O que eles estão fazendo?

- Não é evidente que estão ensaiando?

- Sim, mas para quem vocês se apresentam? Quero dizer, existe mais alguém aqui?

O homem de smoking o olhou como se aquela fosse a pergunta mais tola que já ouviu em toda sua vida, deu um sorriso sem graça e respondeu:

- Sim. Você está aqui. Vamos realizar nossa apresentação para você.

Charlie interrompeu a caminhada e olhou espantado para o homem que lhe acompanhava.

- Para mim? Vão fazer isso tudo apenas para mim? Olha, eu agradeço, mas realmente não é necessário, seria abusar muito e...

- Não é opcional, nobre amigo – interrompeu. - Digamos apenas que tínhamos uma única senha e ela foi vendida para você. Para sempre.

Era o suficiente para o piloto saber que não deveria contestar esse fato, afinal, se os palhaços concertassem seu avião, o “para sempre” ali, não duraria mais do que dias.

- Vocês nunca tentaram sair daqui? As Bahamas não devem ficar muito longe, talvez até uma pequena embarcação pudesse...

- Sair? – O homem pareceu claramente ofendido - Por que sairíamos? Temos exatamente tudo o que precisamos aqui.

Houve um breve momento de silêncio que para Charlie pareceu horas assustadoras, mas logo seu medo foi dissipado quando o anão vestido de homem das cavernas voltou montado num pônei e lhe entregou uma maçã do amor.

- Coma, você se sentirá melhor.

Aquela maçã caramelizada era a coisa mais maravilhosa que Charlie provara. Um verdadeiro néctar dos Deuses. Animou-se, portanto, quando o três dáblios prometeu que ele poderia comer quantas desejasse durante o espetáculo que aconteceria naquela noite.

Estranhamente estar ali já não mais lhe parecia ser algo tão ruim.

A noite chegou e o prometido foi cumprido. Uma cadeira estava reservada formalmente para Charlie, com direito a plaquinha com seu nome e tudo, e logo ao lado dela estava a barraca da mulher barbada, que lhe servia algodão doce, churros e maçã do amor durante todo o show. Posteriormente ele ficaria sabendo que a mulher barbada na verdade se chamava Stuart Hathaway, e que era primo-segundo do apresentador do circo.

Cada membro apresentou o seu numero e o piloto aplaudiu euforicamente cada um. Ele estava irradiante, o espetáculo lhe parecia belíssimo e por breves momentos esquecera-se até de que pretendia voltar para casa.

- Respeitável público, estamos lisonjeados com a ilustríssima presença de vocês esta noite e esperamos que possam voltar no próximo espetáculo. Esse foi o Circo Hathaway.

Clap, Clap – HEY! – todos bateram palmas e gritaram.

Assim terminou aquela noite.

A noite seguinte terminou da mesma forma, e todas as outras depois dela também. Charlie sentia-se cada vez mais familiarizado com aquelas pessoas que para ele eram como se fossem sua própria família. Ele não mais tinha saudade de casa e nem ao menos se lembrava do avião que os palhaços haviam prometido consertar.

Aquele passou a ser o seu lar.

Desde que melhorara do acidente, o piloto saiu do ambulatório e foi posto para dormir no quarto comunitário junto com os outros membros do circo. E assim ele passou todas as noites naquela ilha, até que algo de estranho lhe perturbou o sono.

Charlie havia sofrido com enjôos naquela noite, e acabou vomitando grande parte do que comera durante o espetáculo. Evitou contar aos demais sobre o ocorrido, pois não queria ter que dormir sozinho no ambulatório mais uma vez, ele queria ficar ali, junto com os seus novos irmãos.

Durante a noite sua barriga revirava e o som de vozes conversando durante a madrugada o fez despertar. O piloto sabia que uma das regras da ilha era que não saísse da cabana durante a noite, ele nunca havia se perguntado o por quê daquela imposição, mas sempre depois do espetáculo havia um toque de recolher e todos iam dormir.

Mas naquela noite tudo parecia diferente.

As vozes, cada vez mais próximas, pareciam não se importar com aquela regra básica. Charlie resolveu então investigar quem estava burlando aquela lei. Levantou-se e caminhou na ponta dos pés até o lado de fora da cabana.

Ninguém pareceu acordar.

A lua cheia iluminava as ondas quebrando na praia. A luminosidade ali era tão forte que suas pupilas demoraram a se acostumar. Charlie aproximou-se da água, e vislumbrando o horizonte viu o que nunca imaginaria ver.

Uma ilha.

A propósito, outra ilha igualzinha a que ele estava, como se um espelho colossal tivesse sido colocado em alto mar. A única diferença que ele pôde perceber era que aquele pedaço de terra bem a sua frente parecia translúcido, quase como se fosse um fantasma.

Charlie aproximou-se tanto quanto possível da água, chegando ao ponto de molhar seus pés. De fato existia uma ilha. Aquela seria sua salvação. Nesse instante não conseguia lembrar-se do que lhe prendia naquele local. Via os mesmos shows todos os dias, comia a mesma comida. Ele era tratado bem, mas era evidente que aquela não era sua casa, não sabia como poderia ter um pensamento tão absurdo. A saudade do seu lar invadiu o peito e alimentou a sua alma.

Ele teria que chegar até aquela ilha.

- O que você está fazendo aqui fora, Charlie?

Era a voz do três dáblios que soou atrás dele, e pela entonação ele não estava nada feliz.

O piloto virou-se e viu que todos os membros do circo estavam ali lhe observando. A penumbra ocasionada pela sombra das barracas em seus rostos os deixava com um aspecto demoníaco.

- Você não comeu Charlie? Estava nos enganando?

A comida. Era isso que mantinha os pensamentos insanos do piloto com relação aquele lugar. Ele não gostava dali, queria voltar para casa e rever sua família.

Eles deram um passo à frente. E quando Wolowitz gritou “Os Hathaway’s”, todos bateram duas palmas e gritaram “Hey!”. Correndo na direção do piloto.

Charlie apavorado jogou-se ao mar e começou a nadar desesperadamente. Sentiu algumas mãos escorregarem pelos seus pés úmidos e quase fecharem em seus tornozelos, mas o medo lhe fez bater os braços cada vez mais rápido, independente do que acontecesse. Ele sentia as dores agudas do esforço e as cãibras por sua falta de preparo ao nadar, mas só parou para olhar para trás quando o som das braçadas dos seus perseguidores sumiu por completo.

Não havia mais nada.

Nem os artistas do circo e tampouco a ilha estava lá. Tudo havia desaparecido.

Com os músculos esgotados, Charlie se pôs a boiar. A maré estava lhe direcionando para aquele outro local que esperava ser sua salvação. Daquela noite ele não se lembraria se chegou a dormir dentro d’água, mas quando acordou, já estava rodeado pelos socorristas na ilha de Inágua. Os médicos lhe disseram que era um milagre que tivesse sobrevivido por tanto tempo após o acidente, pois Charlie encontrava-se no inicio de um caso de hipotermia e bastante desidratado, tendo que ser rapidamente transferido para um hospital em Nassau, na Ilha de Nova Providência, local de onde ele havia partido em seu avião alguns dias antes.

O Milagre de Inágua, como ficou conhecido o caso do piloto, foi comentado pelas Bahamas e rapidamente espalhou-se pelo continente. O rosto de Charlie ganhou as manchetes e várias entrevistas foram solicitadas, mas o piloto se recusava a explicar o que havia acontecido.

Toda a repercussão só cessou uma semana depois quando outro grande mistério ocorreu naquela mesma ilha. O pequeno Circo Hathaway, que tinha iniciado suas apresentações um dia antes do desaparecimento do piloto, foi criminosamente incendiado e todos os artistas morreram sob a lona em chamas.

No dia do incêndio Charlie não estava mais no hospital.

Encontrava-se muito ocupado naquele momento.

Segurava em uma mão a maçã do amor, e com a outra um galão de gasolina.

TEMA: O Triângulo das Bermudas

T J Nicodemus
Enviado por T J Nicodemus em 05/07/2015
Reeditado em 16/07/2015
Código do texto: T5300303
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.