O Cachorro-DTRL23

Ele não sabia ao certo de onde viera aquela idéia. Talvez de um antigo filme dos anos noventa. Lembrancas de outra vida, se ele não se lembrava bem do titulo. De qualquer forma, isso era agora irrelevante. Somente algo importava: Lucas tinha certeza de que seu melhor amigo, Renato, há varios anos falecido, havia retornado na forma de um cachorro, e o esperava todos os dias na padaria.

Era uma padaria pequena, onde ele parava todos os dias para um café antes de prosseguir para o escritorio, tres quarteiroes adiante. O vira-lata, típico cachorro de rua com rabo fino e pêlo laranja bem curto, parecia ter sido informalmente adotado pelo padeiro. Estava sempre sentado próximo a porta. Era indiferente aos numerosos clientes que entravam e saiam, e estes tambem não lhe davam muita atençao.

Exceto por Lucas. Desde a primeira vez que o notara, meses atras, de imediato percebera algo especial em seu olhar. Ele sabia que o cachorro lhe lembrava alguém, mas nao podia dizer ao certo quem.

Pos-se a observá-lo. Agora, após pedir o café, não mais ia para uma das mesinhas nos fundos, onde costumava se sentar e ler o jornal. Não, preferia permanecer sempre ali mesmo, em pé, junto ao balcão, de onde tinha uma visao privilegiada do cachorro. As vezes, o animal o fitava com olhar curioso. Em outras, fingia ignorá-lo. Mas Lucas podia dizer que o cachorro estava sempre ciente de sua presença.

A idéia de que o cachorro fosse na verdade Renato havia brotado em sua mente aos poucos, como uma verruga. De inicio, tentou afastar a ideia da cabeça. Ele nem acreditava em reencarnação. E, se acreditasse, jamais pensaria que pessoas pudessem retornar na forma de animais.

Mas, por mais cético que fosse, ele não podia negar que as evidências eram muitas. O cachorro era chamado Rex pelos funcionários da padaria. Rex. Quase o mesmo que Renato. O pêlo laranja, extremamente similar aos cabelos loiros do amigo falecido. Os olhos castanhos. A compleição física magra. E a maneira como o cachorro o fitava. Uma expressão triunfal, quase zombeteira. Voce pensou que eu me havia ido. Mas eu voltei. Eu estou aqui, e para ficar.

A prova dos nove chegou com o teste do café. Lucas havia colocado um pouco de café em um copo de plastico e, timidamente, aproximara o copo do cachorro. Este levantara as orelhas de forma sutil, e Lucas podia dizer que Rex estava pronto para beber o café com avidez, ate a ultima gota, com ritmicos movimentos da lingua vermelha. Exatamente como Renato costumava fazer, quando ainda era vivo. Outros fregueses observaram a cena e pareciam embasbacados, ao mesmo tempo que se divertiam:

- Cachorro gosta de café? Eu não tinha ideia...

Foi a vez de Lucas sorrir para si mesmo. Não , cães não gostavam de café. Mas aquele não era um cachorro comum. Aquele era Renato. Renato que, enquanto vivo, bebia quatro copos americanos de café todos os dias.

Durante as primeiras semanas que se seguiram a descoberta, nada fez. Depois do episódio do café, Lucas havia virado motivo de chacota por parte dos outros fregueses regulares e mesmo alguns dos funcionarios. Perguntavam-lhe se pretendia convidar Rex para jantar. Certa vez, um dos balconistas, com um risinho, lhe havia dado dois copos de café, dizendo que os segundo era por conta da casa, para ele partilhar com o cão. Lucas apenas sorria e fingia não se importar. Tinha certeza de que o cachorro tinha a intencao de se comunicar com ele. Mas ali não seria possivel. De inicio, pensou em conversar com o Sérgio, o dono da padaria, sobre a possibilidade de levar o cachorro para casa, mas não tiha coragem de fazê-lo agora, com todas as piadas e brincadeiras.

Mas os pensamentos agora lhe perseguiam. Não mais conseguia se concentrar no trabalho. Passava os dias pesquisando sites sobre religiões orientais e espiritismo. Em mais de uma ocasiao, achou que o cachorro o seguira para o trabalho e, da janela de seu minúsculo escritório no décimo andar, tentava identificá-lo em meio a multidão de pessoas que caminhavam apressadas pela Rua Direita.

Por fim, venceu-se. Não sabia onde o cachorro dormia durante a noite, mas tinha certeza de que poderia achá-lo. Provavelemente ficava, ali mesmo, na rua. Voltaria naquela noite, depois que já tivessem fechado. E colocaria tudo em pratos limpos.

***

O primeiro pensamento que teve, ao descer do onibus e andar em direção a padaria, era que aquela não era um parte da cidade onde se deveria andar sozinho durante a noite. Mas ele não tinha muita escolha. Camihou a passos apressados olhando para a frente, evitando pensar nas histórias de crimes que costumava ler no jornal.

Ao se aproximar da padaria constatou, com um misto de alívio e frustração, que o cachorro não estava do lado de fora. A noite estava um pouco fria, e talvez o padeiro o houvesse deixado dormir do lado de dentro. A porta grande, de metal, estava trancada, mas havia um pequeno portão lateral que ele conseguiu forçar e abrir. Apesar da escuridão, podia dizer que estava na sala dos fundos, onde ficam os fornos. Um pequeno corredor o conduziu à parte da frente da padaria. Acendeu a luz.

Rex não parecia estar dormindo. Pelo contrario, estava sentado sobre as patas traseiras, como a esperá-lo.

-Renato!

O cachorro não esbocou reação. Continuou ali, imóvel. Lucas reparou que os olhos castanhos pareciam, agora, quase amarelos.

-Eu não esperava rever voce tão cedo. Sabia que um dia teríamos que nos reencontrar. Mas achei que fosse acontecer de outro jeito.

Silêncio. Lucas esperava um latido, um abano da cauda, um movimento das orelhas ou das patas, enfim, qualquer sinal de que o cachorro o entendia. Mas nada aconteceu.

- Eu sinto muito ter empurrado voce. Foi de brincadeira. Eu não achei que o poço da cachoeira fosse fundo. Eu nem sabia que tinha um poço ali, para ser sincero. Nunca tinha estado naquela parte da Serra do Mar- A voz estava agora embargada, mas ele sentia que precisava continuar – Desculpe não ter falado para ninguem. A gente só tinha dezesseis anos, e achei que eu fosse acabar acusado de alguma coisa, de ter te matado de proposito. Fiquei com medo der ir parar na FEBEM, ou no Carandiru. Sei que seus pais, por bastante tempo, continuaram tendo a esperanca de te achar vivo, mesmo depois de tantos anos. Mas no final desistiram. Por favor, diga que me perdoou. Diga que me perdoou!

***

O corpo de Lucas foi achado no dia seguinte por um sem-teto, em uma das fontes grandes da Praca da Sé. A profundidade ali não era muita, menos de um metro e meio, mas seus bolsos estavam cheios de pedras. A polícia não teve duvidas de que se tratava de suicídio.

A notícia da morte chegou até a padaria, onde foi o assunto da semana. Aquele sujeito esquisito, que parecia ter se apaixonado pelo cachorro empalhado do seu Sérgio, havia caído na fonte e morrera. Coisas da vida....

Temas: animais possuidos e pessoas desaparecidas

Henry Claude
Enviado por Henry Claude em 05/07/2015
Reeditado em 05/07/2015
Código do texto: T5300726
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