O rastejar de mil olhos - DTRL23 #LUTO#

O jovem de camisa listrada e cabelos penteados para trás era uma das poucas pessoas àquela hora da noite na principal avenida de Terenos, a pequena cidade no interior do Mato Grosso do Sul com quase 18.000 habitantes. Gabriel, vendedor de uma loja local, olhava atentamente para o cartaz preso à parede de um supermercado. Na folha sulfite, o rosto de dez crianças dividiam espaço, com os respectivos nomes e uma mesma data abaixo de cada foto. 13/02/2015. "Sexta - feira", pensou Gabriel.

- Todas elas desapareceram no mesmo dia. Dez crianças de uma só vez, não é algo fora do normal? - Disse um senhor que vendia cachorro quente num carrinho e passava por ali.

Gabriel olhou para ele e concordou num gesto indiferente com a cabeça. Pegou um cigarro do pacote amassado escrito "Hollywood" e ascendeu com o isqueiro. Deu uma tragada demorada e soltou a fumaça sobre o cartaz à sua frente. O velho já havia saído e o rapaz continuava a olhar para as fotos. Ele conhecia quatro daquelas dez crianças e uma delas era seu irmão caçula, sumido há 25 dias.

Seus pais ainda procuravam insistentemente, recebendo ajuda de vários voluntários da cidade. Vasculhavam a região minuciosamente e nem sequer uma pista era encontrada. As dez crianças sumiram durante um passeio promovido por uma escola local, onde levariam os estudantes para conhecer a rotina em uma das fazendas da região. Durante o trajeto matutino, o ônibus da prefeitura que os transportava apresentou uma falha, até então não esclarecida pelas as autoridades locais. Ao parar o veículo e descer para verificar o ocorrido, o motorista deixou a porta aberta. Segundo relatos da professora que monitorava a turma, as crianças estavam brincando umas com as outras e rindo muito, até que do nada, como se houvessem escutado um som diferente no matagal ao lado da estrada de terra, elas começaram a correr para fora do ônibus. A professora alegou ter tentado segurá-las, mas foi empurrada violentamente sobre um dos bancos e bateu a cabeça, perdendo a consciência. O motorista disse também não se lembrar de nada após ter descido do ônibus. Os dois afirmaram ter acordado quase no mesmo instante, porém, não havia mais sinal das crianças. Para os moradores locais, assim como para a polícia e os pais dos desaparecidos, essa história não fazia qualquer sentido e os dois adultos presentes na ocasião estavam sob investigação. Investigação demorada e sem resultados até então.

Gabriel saiu dali e começou a caminhar sem rumo pela calçada. Não chorava mais como os pais, mas seu peito doía cada vez que pensava no irmão. Já fazia uma semana desde que ele resolveu tomar um rumo diferente na busca. Caminhou por duas horas até chegar ao local exato do desaparecimento. Não iria vasculhá-lo como os voluntários já haviam feito; apenas iria sentar e esperar. Sentar e esperar era o que ele vinha fazendo nesta semana. Levou um banquinho de madeira no primeiro dia e desde então ficava ali, na beira da estrada de chão batido, olhando para o matagal à sua frente, durante quase a noite inteira. Não sabia o que esperar. Não imaginava o que poderia ocorrer por fazer aquilo. Simplesmente sentava ali e fitava o mato à sua frente. Plantas típicas do cerrado, emaranhado de mato e algumas árvores mais altas. As crianças correram por ali, segundo a professora. Deixaram um rastro, que até certo ponto desaparecia, como se houvessem evaporado. Gabriel não pretendia entrar naquele matagal sozinho e durante à noite. Não, essa não era sua intenção. Tentava apenas observar algo que ainda não haviam observado. Já passava da meia noite, o céu estava limpo e várias estrelas brilhavam ao lado de uma lua cheia e alaranjada.

Uma leve brisa trouxe um cheiro esquisito. Um cheiro de chulé; na verdade, um cheiro de salgadinho. Aqueles que se compra em qualquer mercado. Gabriel achou estranho e se levantou. O cheiro forte vinha da borda da mata e ele se dirigiu até lá. Parou um instante e ficou olhando. Ascendeu um cigarro, deu uma tragada e ao soltar a fumaça, seus olhos fitaram uma figura em cima de uma das árvores logo à frente. Seu cérebro demorou alguns breves segundos para decifrar o que era e quando finalmente reconheceu, sentiu sua espinha gelar e os pelos dos braços se arrepiarem. Era uma criança. Um menino. Estava sentado em um galho não muito alto do chão, segurando um pacote de salgadinhos. Sua pequena mão entrou no pacote e retirou um, colocou na boca e então sorriu. Não o sorriso alegre de uma criança, mas um sorriso sarcástico e frio. Reconheceu o rosto da criança; era Bruno, um dos amigos de seu irmão que também sumira naquela manhã do dia 13.

Gabriel jogou o cigarro no chão e tentou gritar para o menino, mas sua voz não saiu. Não conseguia sequer se mexer, andar, levantar os próprios braços. Estava paralisado e não sabia se era realmente de medo. O menino não se parecia com aquela criança que outrora ele conhecera. Apesar de estar uns sete metros de distância, ele percebeu que a pele da criança estava pálida e os olhos não possuíam pálpebras, pois mantinham-se vidrados, como duas grandes bolitas escuras. O salgadinho pareceu acabar e o menino soltou o pacote, que desceu lentamente até sumir atrás do mato. Em seguida, ele pulou da árvore e também sumiu. Gabriel forçou os ouvidos para tentar escutar o baque da criança caindo ao chão, mas tudo que ouviu foi o silêncio. Sentiu seu corpo voltar ao normal e começou a correr de volta à cidade. Seus pensamentos se embaralhavam e ele percebeu que estava chorando.

Correu por alguns metros e então parou. Respirou fundo várias vezes para recuperar o fôlego e pensou consigo. "Não posso correr. Sei que isso foi assustador e que aquele não era o Bruno que eu conheci. Não sei se era humano ou um fantasma, mas se ele estava ali, talvez eu consiga encontrar meu irmão. E se ele estiver daquele jeito também? O que eu faço, meu Deus?". "Não interessa. Não posso mais continuar dessa forma. Se eu for para casa, certamente me arrependerei de não ter tentado. De ter perdido a oportunidade." Gabriel tomou um último fôlego respirando bem forte. Esse movimento pareceu lhe dar a coragem que precisava e então retornou ao local.

Com o facão que havia levado na mochila, Gabriel foi abrindo caminho pelo o mato e chegou até a árvore que Bruno estava minutos antes. Olhou ao redor e nada encontrou, nem mesmo o pacote do salgadinho. Continuou abrindo caminho mais fundo e então a temperatura do ambiente mudou. Estava fazendo calor nos últimos dias em Terenos, mas o que sentiu aquela hora foi frio, muito frio. Sua pele se arrepiou e por um momento rápido, sentiu um sopro gelado em sua nuca. Olhou para trás assustado e nada viu. Sem perceber, caminhou até uma pequena clareira entre algumas árvores e se lembrou que durante a investigação, era até ali que os rastros das crianças foram encontrados. Gabriel se ajoelhou e se apoiou com a palma da mão direita no solo.

Estava com medo, com frio e não sabia o que esperar. Ouviu uma risada de criança. Depois outra e mais outra. Ele fechou os olhos e começou a rezar. Rezou com determinação e sentiu certo alívio. Quando abriu os olhos, ao seu redor estavam as dez crianças desaparecidas. Todas pálidas de olhos sem pálpebras fitando - o. Faziam um círculo ao seu redor e não esboçavam qualquer sentimento. Estavam cantarolando algo que ele não entendia. As cabeças balançando para direita e esquerda enquanto cantavam. Gabriel olhou para cada uma e seu coração gelava cada vez mais, sua pele estava fria, sua cabeça latejava. Finalmente avistou seu irmão, em pé, ao seu lado direito. Ele tentou falar, tentou se levantar para abraçá-lo, mas seu corpo não se movia. Era como se o tempo houvesse parado naquele momento. Seu irmão também cantava, fitando Gabriel com olhos vazios e negros.

A cantoria foi cortada por um rastejar próximo. Algo se rastejava por sobre as folhas, produzindo um som agudo que foi aumentando aos poucos. Os ouvidos de Gabriel começaram a doer intensamente e ele sentiu algo escorrendo pelas orelhas. Estava sangrando, tinha certeza. Uma menina que estava à sua frente se afastou, deixando a visão de Gabriel exposta à uma figura que se aproximava. Era uma cobra. Gabriel não conseguia discernir qual espécie era, pois seus olhos estavam vidrados nos olhos do animal. Olhos vermelhos com um traço vertical no centro de cada órbita. Olhos espalhados por todo o corpo do réptil, todos eles hipnotizando o jovem. Seu cérebro dizia para correr, para se defender, mas seu corpo não obedecia. Sentiu lágrimas escorrerem pela face e o pavor da morte lhe envolveu quando o animal se levantou à sua frente e deu o bote...

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Temas: Pessoas desaparecidas e Animais possuídos.

Luiz P Medeiros
Enviado por Luiz P Medeiros em 05/07/2015
Reeditado em 17/07/2015
Código do texto: T5300803
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