Larissa, a troca- peles - DTRL23 - #Luto#

"Troca-peles é um ser humano capaz de se desprender de seu corpo e entrar na mente de diferente seres. Uma vez dentro de suas mentes, ele pode os controlar, sejam animais, plantas e em casos extremos até outros seres humanos. Essa habilidade já foi mostrada no livro O Hobbit e na saga As crônicas do gelo e do fogo. A essência da habilidade do troca-peles foi descrita pelo ganhador do Nobel da Literatura, Hermann Hesse, em sua obra Sidharta, em 1950."

***

Larissa ficava pensando que se tivesse duvidado da aproximação do pai nada disso teria ocorrido. Tudo apenas ocorreu porque ela confiou.

Tudo começou em um dia comum, há uma semana atrás. Larissa estava saindo da escola e viu o pai lhe esperando, encostado em seu carro. Antes daquele dia, o homem apenas aparecia algumas vezes ao ano. Em datas festivas e em seus aniversário. Sempre com um pouco de pressa e com a sombra de um sorriso nos lábios. Dessa vez, para espanto da menina, ele a esperava com um largo sorriso.

Nos dias seguintes, o pai sempre ia se encontrar com ela. Ele pediu para a filha não contar nada desses encontros para a mãe, ela podia não gostar. Larissa que sempre sentiu falta do pai, acabou não contando nada para a mãe. A menina achava que o pai apenas estava querendo ficar um tempo com a filha que havia ignorado por tantos anos.

A cada dia ele conquistava sua confiança. Com conversas alegres e sorvetes. Larissa passou a confiar tanto nele que quase conta o seu segredo. Foi devido a essa confiança também, que aceitou uma carona do pai. Foi essa carona que a tirou de perto dos seus.

Larissa não tem muitas lembranças do que ocorreu após sua entrada no carro. Apenas lembra de ter aceitado um refrigerante e ter apagado depois disso.

Quando acordou estava presa em um pequeno quarto desconhecido. Seus olhos demoraram a se acostumar com a escuridão. Quando isso ocorreu, a menina reparou que no pequeno ambiente apenas haviam alguns móveis. Também viu que a única janela estava fechada com madeiras pregadas.

O desespero tomou conta dela. Começou a bater nas paredes e a xingar o pai. Sabia que tudo isso era culpa dele. Ela se culpava por ter sido tão besta em acreditar nele. Quando suas mãos estavam doloridas de tanto bater, a menina se deixou cair no chão. Nesse momento, depois de passada um pouco a raiva, lembrou da mãe e de como ela devia está desesperada.

A lembrança da mãe a fez lembrar de seu avô, consequentemente também lembrou de seu dom especial. No meio da escuridão se permitiu um sorriso. Ela sabia uma forma de ver a mãe e talvez até ajudar nas buscas.

No chão, Larissa relaxou e se conectou com sua gata chamada Mya. Devido a distância demorou um pouco para que ocorresse. Mas a menina conseguiu deslizar para fora de sua pele e entrar dentro do animal.

*

O desaparecimento da filha acabou com Marina. A pobre mulher parecia ter envelhecido vinte anos em apenas algumas horas. Devido a tristeza até dores começaram a aparecer por seu corpo.

Todo esse tormento começou quando Larissa não chegou em casa no horário de costume. As horas passaram e nenhum sinal da menina. As buscas começaram logo, todos os vizinhos e amigos da família ajudaram, eles se dividiram em grupos e foram nos lugares em que a menina costumava ir. A mãe, impossibilitada de participar das buscas por causa das dores pelo corpo, ficou em casa.

Marina pensava no pior. Lembrava de histórias que o povo contava, sobre meninas que sumiram da mesma forma e encontravam somente o corpo muitos dias depois. Uma voz dentro dela dizia que nunca mais veria a filha com vida. Essa voz fazia a dor ficar mais aguda.

As vezes em que essa voz falava em sua mente, ela entrava no quarto da filha, em uma tentativa de afastar o fantasma do desespero e da saudade. As coisas da filha, todas arrumadas com carinho, lhe davam forças. E a Mya, a gatinha de estimação de Larissa, lhe fortalecia. Mas em uma das muitas visitas ao quarto, sentiu algo diferente na gata, quando olhou bem para Mya sentiu uma sensação de esperança crescer em seu peito. Correu e colocou o bicho no colo e enquanto a acariciava falava:

-Você está viva! Mas onde você está, amor?

Marina virou a gata de frente e olhou no fundo de seus olhos. Pelas pupilas dilatadas do animal, sabia que quem estava na mente de Mya era sua filha. Todas as vezes em que Larissa trocava de pele com a gata, os olhos do animal ou ficavam com as pupilas totalmente dilatadas ou ficavam somente de uma cor.

-Você quer me levar aonde você está?- perguntou colocando a gata no chão, pois o animal se mexia muito em seu colo e parecia incomodado.

Logo que ganhou o chão, Mya pareceu se dirigir para a porta, mas de repente deu um miado de profunda dor e começou a correr pelo quarto, desesperada. Quando parou de correr, estava toda arrepiada e começou a arranhar o papel rosa da parede do quarto. A gata parecia possuída.

-Larissa!- A mulher estava paralisada, não sabia o que fazer

A gata deu um miado que foi ouvido por toda casa e depois começou a andar normalmente. Marina reparou nesse momento duas coisas, primeiro que sua filha havia deixado o corpo do animal e segundo que algo estava muito errado e que Larissa devia está em perigo. O desespero voltou duas vezes pior.

*

Tales tinha uma alta dívida com um agiota muito perigoso. Ele não sabia como pagar a dívida até que a lembrança da filha Larissa veio a sua mente. A filha era bonita, a pessoa com quem ele tinha a dívida talvez aceitasse a menina como pagamento. Ele sorriu quando teve essa ideia, sorriu como alguém que encontrou um cofre que tinha o valor necessário para pagar sua dívida.

Para conquistar a confiança da menina bastou alguns papos furados e uns sorvetes. Uma semana depois a filha estava em seu poder. Trancada em um quarto em sua distante casa de campo. Tales não era burro. Sabia que buscas seriam realizadas. Se ele ficasse com a menina na cidade seria mais fácil da polícia chegar até eles.

Ele estava sentado em uma poltrona próxima do quarto em que a filha estava trancada. Ouviu quando a menina começou a o xingar e a bater nas paredes. Já esperava por isso. O que ele não esperava era pelo silêncio que se seguiu depois. Ficou preocupado. Se Larissa morresse ou se machucasse tudo estaria perdido.

Se aproximou com cuidado e abriu a porta. Gritou ao ver Larissa caída no chão. O desespero cresceu mais ainda quando, ao tirar a menina do quarto, viu que ela estava com os olhos brancos.

Ele começou a balançar a menina. Tentou até jogar água nela, mas a situação apenas piorou. Quando a água a atingiu, seu corpo começou a tremer e ele podia jurar que ouviu a filha miando. Essa situação durou algum tempo, até que Larissa abriu os olhos atordoada, como se estivesse muito longe dali.

Ela demorou um pouco para o reconhecer, mas quando fez isso, o xingou e exigiu ir para casa. Tentou bater nele e fugir, mesmo estando fraca. Ele logo a levou de volta para o quarto.

Tales ficou tranquilo de ver que a filha estava bem. Mas depois daquele susto ele resolveu abrir a janela do quarto , talvez fosse o espaço fechado que fez mal para a menina. A janela tinha grades, não tinha como fugir. Além de abrir a janela, resolveu sempre ir ver como a menina estava, para o caso de novos ataques daquele.

Seu fiador viria falar com ele apenas no fim de semana. Até lá, nos dois dias que faltavam, teria que garantir que nada ocorresse com sua filha,sua única salvação.

*

Seu pai havia estragado tudo. Quando ela abriu os olhos entendeu porque a troca de pele com a gata havia dado errado. Seu avô, pai de sua mãe, que também era troca-peles, havia dito que quando se está na mente de um animal o corpo não deve ser mexido, pois isso atrapalha a ligação.

De volta no quarto, palavras de seu avô vieram novamente em sua mente:

-Os corpos dos animais são como casacos que você usa. Só que tem um coisa, para que a troca seja tranquila, você tem que criar uma ligação com o animal antes, caso contrário, a alma que habita no corpo tentará lhe expulsar.

Larissa se lembrou dessa fala do seu avô, porque olhando pela janela, que seu pai havia aberto, viu uma floresta próxima. Toda floresta tem muitos animais. Pensou em trocar de pele com algum animal da floresta. De preferência algum selvagem, como um lobo por exemplo, para assustar seu pai e até o atacar.

Mas ao lembrar da fala do avô, pensou que não valeria a pena. O controle do animal seria tumultuado. Não conseguiria ter pleno controle com a alma que habita o corpo a expulsando. Causaria dor a ambas as partes. E ela ainda estava fraca pelo que ocorreu na troca de pele com a sua gata.

*

Tales estava pegando algo para comer na geladeira, para ele e para a filha, quando ouviu alguém bater na porta. Ficou espantado pois sabia que a única pessoa que sabia que ele estava na casa de campo era o agiota para quem devia. Com o coração batendo acelerado e o suor molhando a testa foi abrir a porta.

Ele teve que lutar para disfarçar o nervosismo, pois quando abriu a porta viu um homem de quase dois metros de altura, musculoso e com um olhar assustadoramente cruel. Mas o que mais o assustou foi o imenso cachorro que o homem trazia preso a uma corrente. O cão tinha um brilho assassino nos olhos. Não era o agiota, mas era alguém dele.

-Meu chefe me mandou.-disse o homem. Sem nem ao menos pedir licença foi entrando.

-Eu pensei que seu chefe vinha só no fim de semana...

-O chefe gosta de pegar as pessoas de surpresa. Ele não confia nelas. Chegando antes do prazo não tem chance da pessoa fugir.-o homem deu um pausa e olhou para o Tales, reparou que ele olhava assustado para o cachorro. Com um sorriso no rosto, o homem acariciou a cabeça do animal e continuou- Você sabe como esse cachorro se chama?

Tales balançou a cabeça negativamente. Assustado como nunca.

-O chefe o chama de Cumpridor de promessas, porque ele ajuda as pessoas a pagarem suas dívidas e cumprirem suas promessas. O chefe o alimenta com a carne das pessoas que não pagam o que deve. Por isso que ele olha assim para você. O cachorro sabe reconhecer comida quando ver.

-Eeu... Vou pagar... Minha filha...Vou buscar- falava Tales sem conseguir articular as frases corretamente por causa do medo

-Vá lá. Eu e o Cumpridor de promessas vamos está esperando aqui.

Tales foi ao quarto e trouxe a filha. A menina lutava e tentava fugir. Ele ficou mais calmo ao ver que o homem sorriu ao ver a menina.

*

Larissa ficou horrorizada e com mais raiva ainda do pai quando ouviu a conversa dele com o estranho homem. Pelo que havia entendido, ela era o pagamento de uma dívida. Seria dada a um agiota que faria o que quisesse com ela. Nunca mais veria sua mãe e amigos. O ódio tomou conta dela. Começou a lutar, mas o homem que segurava o cachorro a ameaçou com o animal. No desespero se esqueceu das palavras do avô, se esqueceu da fraqueza, se esqueceu de tudo, a única coisa que importava era sobreviver. Para isso teria que trocar de pele. Sentiu quando sua consciência saiu de seu corpo e foi para o corpo do cachorro.

Aconteceu exatamente o que seu avô disse que aconteceria. A alma que habitava o animal tentava a expulsar com todas as forças. O corpo não gostava de ser invadido. Mas Larissa não iria desistir tão fácil. Sua sobrevivência dependia disso, por isso lutou para assumir o controle, assim como uma pessoa luta para não cair de um touro mecânico.

Com os ouvidos do cachorro ouviu seu pai desesperado tentando a acordar. O homem misterioso havia amarrado o cachorro e carregava seu corpo desmaiado.

Ela fez o corpo do cachorro lutar contra as correntes até as rebentar. O homem dava ordens para que o cachorro parasse. A alma que habitava o corpo, que gostava do dono, queria obedecer, mas Larissa que era quem possuía o controle sobre o corpo queria atacar. O ódio fez a menina ter controle total do animal.

Sentiu o gosto de sangue na boca quando o cachorro mordeu e arrancou um pedaço da perna de seu pai. Por um momento aquele gosto pareceu doce no paladar da menina, não apenas no paladar dela, mas da alma que habita o corpo também. Foi nessa hora que o jogo virou. Larissa queria apenas machucar o pai, não queria o matar, mas alma do cão, acostumada com o gosto do sangue queria mais. A natureza do cachorro se contentou somente depois de matar o pai dela. Larissa tentou impedir, mas a alma ignorou ela, do que mesmo jeito que ela havia a ignorado segundos antes. Era uma guerra em que ninguém conseguia ficar no poder da mente por muito tempo.

Larissa se sentia suja e enjoada por causa do gosto de sangue e carne na boca. Isso a deixou desnorteada. Ela apenas despertou quando sentiu uma dor aguda e ouviu um barulho de tiro. Foi então que percebeu a presença do dono do cachorro com uma arma na mão. Ele devia ter buscado a arma enquanto o cachorro atacava o seu pai.

Uma força maior a puxou para fora do corpo, junto com a alma que habitava o corpo. Larissa não via seu corpo por perto, talvez o homem o tivesse carregado para o carro. Por isso deslizou para dentro de um gavião que voava sobre a casa.

A mente do gavião era mais fácil de controlar. Pássaros são outra história, como seu avô havia lhe dito.

*

Ryan não entendia o que havia ocorrido com o cachorro. De uma hora para outra ele parecia possuído. Infelizmente teve que o matar. Ele não fez isso para salvar a vida do pai de Larissa, fez isso para salvar a própria pele. Com toda certeza depois de terminar com o homem o cachorro iria atacar o próprio dono.

Mas o dia não foi de todo ruim. Ryan estava com a linda filha de Tales em seu carro.E já que Tales estava morto poderia levar algumas coisas de valor. Seu chefe nem precisava saber desse pequeno roubo.

Quando saia da casa carregando alguns vasos que encontrou viu a sombra de um grande gavião voando sobre ele. Ficou assustado mais seguiu a passos rápidos para o carro.

Quando o grande gavião tentou bicar sua cabeça, Ryan sentia as asas do bicho açoitando sua cabeça. No desespero deixou os vasos caírem e se quebrarem no chão. Com a mão tentou expulsar o pássaro. A ave em um movimento com o bico lhe arrancou dois dedos da mão. O homem urrou de dor e praguejou :

-Todos os bichos estão possuídos nessa p...- foi só o que conseguiu dizer antes do gavião fincar as afiadas garras em seu rosto como quem fincar os dedos em uma suave massa de pão.

*

Larissa voltou para seu corpo. Se sentia dolorida e cansada. Quando abriu os olhos reparou que estava no banco de trás do carro. Abriu a porta e saiu.

Perto do carro viu o corpo sem vida do homem que queria a levar para o agiota. As garras do gavião fizeram um bom estrago. Ela mexeu no corpo e viu o celular. Iria ligar para a sua mãe e depois para a polícia. Não queria usar o telefone de dentro de casa, pois não ia suportar olhar para o corpo do pai.

Larissa estava ansiosa para rever a mãe e seus amigos. Mas sentia que nada seria como antes. Ela havia matado duas pessoas.

-Não fui eu que os matei, foram os animais- Disse a menina para tentar se manter calma e afastar o fantasma dos assassinatos. Larissa iria repetir essa frases várias vezes, até que ela acreditasse que era verdade.

Tema: Pessoas desaparecidas e animais possuídos

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 12/07/2015
Reeditado em 16/07/2015
Código do texto: T5308249
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