Gatos no Beco - DTRL 23 #Luto#

Sempre gostei de não precisar de transporte público como muitos outros precisam para ir para casa. Mesmo depois de um dia cansativo, caminhar pela cidade com a brisa da tarde é para mim uma forma de revigorar minhas energias e de relaxar.

Obviamente que ir embora a pé, como tudo no mundo, tem seu lado negativo, e quando penso nisso o que me vem à mente é aquele beco atrás da lanchonete T.W. Lanches e Cia que fica além do centro da cidade, na segunda metade do meu trajeto.

Todas as vezes que estou indo embora, eu uso aquela ruela estreita como forma de atalho para não ter que dá a volta em todo o quarteirão. Mas se por um lado eu não preciso enfrentar o tráfego de pedestres nas calçadas e de veículos nas ruas muito intenso naquele bairro, por outro tenho que passar por alguns bêbados ou mendigos que ficavam caídos nos cantos do beco, a salvos dos vândalos e dos pés dos passantes.

As ocasiões em que eu os via eram relativamente raras, tenho que admitir, sem falar que eles dificilmente olhavam para mim. Mas nem por isso a presença deles deixava de me incomodar. Ver pessoas maltrapilhas e totalmente imundas jogadas na sarjeta não é algo que alguém colocaria na sua lista de afazeres antes de sair de casa. Naquele dia, porém, quando cheguei ao beco, não vi nenhum mendigo, nem bêbado, muito menos drogados. Só o que povoava a viela de alguma vida visível eram os gatos de rua que vasculhavam o lixo à procura dos restos de comida que sobravam da lanchonete. O que era algo do qual eu já estava acostumado. Assim, como em todos os outros dias em que eu chegava e me deparava com esses felinos de patas ágeis e olhos brilhantes, tentei passar por eles sem lhes dar a menor atenção. Mas daquela vez, tudo foi diferente.

Os gatos que antes apenas andavam de um lado para o outro, pulavam de telhados e saiam de bueiros vindos não sei de onde ou ficavam deitados em papelões, agora guinchavam e arranhavam ferozmente um tambor de lixo fechado.

A agitação deles apenas aumentou quando me aproximei. Eles começaram a se afastar e a voltar constantemente. Alguns andavam em círculos a minha volta, miando de uma forma que eu nunca tinha visto antes. Outros esfregavam as costas peludas na minha perna como se me pedissem alguma coisa.

Tentei afastá-los com o pé ou fazendo menção de que ia jogar-lhes algo, mas isso só servia para aumentar o barulho de miados e guinchos que já beirava ao insuportável. Quando eles aumentaram ao ponto de eu ter que por as mãos nos ouvidos, percebi que teria que fazer algo de mais concreto. Então, tirei minha mochila das costas com o intuito de abrir caminho por entre os gatos com ela, mas no exato momento em que afastei os primeiros, tive a nítida impressão de ouvir uma fala humana, uma voz feminina pedindo socorro.

Concentrei-me na audição e fiquei mais atento, esforçando-me para isolar os ruídos indesejáveis dos felinos e ouvir novamente.

“Socorro” eu ouvi pela segunda vez. Mas a gritaria dos gatos estava muito grande, de modo que eu não tinha certeza se realmente havia ouvido alguém pedindo ajuda ou era apenas um engano provocado pela mistura de sons na rua, somando com o estresse acumulado de um dia difícil, e essa dúvida aumentava conforme eu percebia que a tal voz, na verdade, parecia provir do tambor de lixo fechado que era, além de mim, o que mais despertava a atenção e o ódio dos gatos.

Olhei de um lado para o outro e até mesmo para cima, na esperança de ver a outra pessoa que pudesse estar falando aquilo, mas não havia ninguém no beco que, exceto por mim e pelos gatos, estava deserto. Além disso, era pouco provável que alguém estivesse pedindo socorro da rua, já que o barulho dos veículos que passavam incessantemente na pista logo sufocaria o som de sua voz e eu não ouviria nada de onde estava. Considerando tudo isso, duas possibilidades que não me eram nada agradáveis se postaram diante de mim: ou eu estava maluco, ou realmente alguém estava preso dentro do tambor de lixo. Fosse o que fosse o que estivesse acontecendo, a minha vontade era de sair dali o quanto antes e esquecer o que se passou, mas a possibilidade real de alguém estar precisando de ajuda era perturbador demais para eu ignorar. De qualquer modo, eu tinha que ir conferir, eu precisava verificar se era um engano ou se uma pessoa, provavelmente alguém frágil como uma criança, estava em perigo, enterrada por entre pilhas de lixo e sufocada dentro de um trambolho de metal.

Era até uma questão de princípios eu certificar-me de que não havia nada errado. Por isso, dei os primeiros passos na direção do tambor de lixo. Os gatos a minha volta ficaram ainda mais inquietos e alguns até me arranhavam na perna, miando com desespero como se algo muito sério os estivesse incomodando.

Quando cheguei perto do tambor, senti uma energia estranha emanando dele. Uma sensação que não consigo explicar, mas que se manifestou de forma mais clara depois que toquei na tampa que estava curiosamente fria para algo que passou a tarde inteira ao sol e um arrepio me percorreu todo o corpo.

Eu levantei a tampa e então veio o susto.

Não sei se foi porque eu já estava com os nervos à flor da pele ou se o incidente assustaria qualquer um, mas o fato foi que meu coração quase saiu pela boca quando abri o tambor de lixo e uma gatinha branca e felpuda pulou de dentro, aterrissando metros adiante. Não posso dizer exatamente qual a raça da gata, o que posso dizer é que ela era fofinha demais para ser um animal de rua, sem falar no colar com um pingente redondo dourado que ela trazia no pescoço.

Dei uma última olhada para dentro do tambor de lixo antes de fechá-lo. Não havia nada dentro dele além dos habituais resíduos da atividade diária humana, o que me fez perceber naquele momento que eu não tinha escutado uma voz humana, eram apenas os miados abafados de uma gatinha assustada.

Depois que se libertou, ela ficou recolhida em um canto, entre algumas caixas de papelão, com medo dos outros gatos que pareciam querer atacá-la. Eles não passavam de aproximadamente dez, mas faziam uma algazarra que valia por uma multidão. Afastei tantos quanto podia e peguei a gata.

Seu pelo branquinho era longo e macio. Do colar de linho finamente trançado que circundava seu pescoço, pendia uma medalha dourada em que estava escrito “Luna” em um dos seus lados. No outro lado da medalha estava o nome “Amélia Araújo Santana” que eu supus ser a dona, juntamente com um número de telefone, o que corroborou minha suspeita de que ela era o animal de estimação de alguém que estaria muito triste com a sua perda. Essa imagem de uma pessoa ou uma família inteira sentindo a falta de seu bichinho de estimação que se formou em minha mente me fez me sentir péssimo só em cogitar em deixar a gata ali mesmo, onde eu tinha encontrado, fazendo a idéia de levá-la para casa e procurar por seus donos se tornar uma vontade e depois uma meta. Com isso, acomodei confortavelmente a gata em meus braços para ela se acalmar e com passadas rápidas me desvencilhei dos gatos para sair daquele beco sujo atrás da lanchonete.

A ida para casa a partir de então foi menos difícil do que imaginei. Pelo menos nos três quarteirões seguintes nos quais a gata ficava cada vez mais tranqüila na medida em que eu andava. O comportamento dela só se complicou quando eu já estava bem perto de casa, mas não era um problema contanto que tivesse cuidado com as garras que ela insistia em tentar cravar na minha pele enquanto tentava se soltar.

Chegando à minha residência, vejo meu irmão caçula Benício como de costume trocando figurinhas do campeonato de futebol com seus amigos na calçada, resignado em completar o álbum e ganhar a bola oficial.

- Benício! – eu o chamei da porta. Ele olhou para onde eu estava rapidamente e assustado, como se não tivesse notado a minha chegada, em seguida ele recolheu algumas de suas figurinhas que ainda estavam nas mãos de seus amigos e me acompanhou para dentro de casa.

- Nossa, Diogo. Nem tinha visto você chegar. Aconteceu alguma coisa de novidade na sua escola? Aquele seu professor de matemática se engasgou com a saliva outra vez? – falava Benício enquanto se encaminhava rapidamente para seu quarto guardar o álbum de figurinhas.

- Sem enrolações, Benício. Eu quero saber se você lavou a roupa como mamãe pediu.

- Pois é, Diogo. Eu já ia falar com você sobre isso – veio ele com a cara cínica que fazia sempre que tinha alguma desculpa para dar – Acho que aquela máquina está com defeito. Não consegui lavar nada.

- De novo não, Benício. Por favor. Você sabe muito bem que quando a mãe passa o dia fora nós dois temos que dividir as tarefas. Eu já passei a manhã cuidando do almoço e da limpeza da casa, enquanto você estava na escola. Agora à tarde era para você ficar responsável pela roupa enquanto eu estaria na escola.

- Não tenho culpa. Foi aquela máquina velha que me atrapalhou.

- A máquina! Aposto que você deu um mau jeito nela de propósito.

- Você não pode dizer isso. Não viu nada. Quando a mamãe chegar, eu vou dizer que você ficou... – Benício finalmente pareceu notar o que eu trazia nos braços e faz uma cara de estar ao mesmo tempo surpreso com a gata que eu carregava e aliviado por ter algo para mudar de assunto – Mamãe não vai gostar quando souber que você trouxe animal para casa.

- Relaxa. Não é para mim. É só uma gata que eu encontrei na rua e que vou devolver para os donos.

- Eu também vou querer.

- Querer o quê?

- Ora, a recompensa. Se você receber alguma coisa por ela eu vou querer uma parte.

- Você deveria ficar grato se pelo menos escapar das broncas da mamãe por não ter feito o que ela pediu – deixei minha mochila no sofá e fui para a cozinha onde coloquei a gata no chão e abri a geladeira.

- Se ela fizer as necessidades dela por aí, você é que vai limpar.

- Nem precisa me dizer. Não sou preguiçoso como você. Aqui deve ter um pouco de mortadela que sobrou do almoço.

- Você acha mesmo que alguém vai procurar por ela? – Benício me perguntou enquanto me via cortar a mortadela em fatias.

- Acho que sim. Não viu a coleira no pescoço dela?

- Vi. Como é mesmo o nome dela?

- Luna. E atrás da medalha tem o nome de uma pessoa e um número de telefone. O que prova que ela tem dono.

- Você vai dividir a recompensa comigo, não vai?

- Vá sonhando. Pronto – falei ao terminar de picar as fatias e por os pedaços em uma vasilha – A gata deve estar com fome. Pena que não temos leite.

- E onde ela está? – perguntou Benício, olhando em volta e em baixo da mesa.

- Estranho. Ela estava aqui há um minuto – falei deixando a vasilha na mesa e me agachando para começar a procurar pela gata debaixo e atrás dos móveis – Vamos ver na sala – disse ao constatar que ela não estava mais na cozinha.

Benício e eu fomos à sala e revistamos todos os cantos.

- Nada aqui – Benício falou.

- Procure nos quartos. Eu vou ver na despensa.

Benício correu para os quartos, enquanto eu ia para a despensa. Verifiquei cada centímetro quadrado do recinto, mas não encontrei nem rastro da Luna. Voltei para a sala, decido a ajudar Benício a procurá-la nos quartos. Como ele já estava no quarto da minha mãe, eu fui para o meu e procurei a gata em meio às minhas roupas, às revistas em quadrinhos, brinquedos velhos e todas as outras coisas que costumava deixar jogadas na bagunça do meu quarto. Depois de olhar pela enésima vez debaixo da minha cama, ouvi meu irmão falar alguma coisa do corredor.

- Mãe?

No momento, pensei que fosse minha mãe que havia chegado e fui logo tratando de formular na minha mente um bom argumento para explicar a história da gata e o porquê de eu estar com ela, até abrir a porta e me deparar com o Benício.

- Algum problema? – perguntei intrigado com a expressão de medo no rosto dele.

- Você não ouviu?

- Ouvi o quê?

- Um pedido de socorro. Parecia ser de uma mulher e vinha daqui, de dentro de casa.

A sensação gélida e o arrepio que eu senti antes no beco voltaram. Não tinha como aquilo ser uma brincadeira do meu irmão, mesmo que no fundo eu desejasse que fosse. Afinal, não contei a ele o episódio dos gatos e do tambor de lixo.

- Do que você está falando?

- Eu estava saindo do quarto da mamãe quando eu ouvi algo do tipo: “Socorro! Ajuda, por favor” vindo da sala. Como era voz de mulher, pensei que fosse a nossa mãe, mas depois percebi que não era a voz dela.

- Não pode ser. Aqui também?

- Diogo, você ficou pálido.

- Nada demais – tentei disfarçar – De onde você disse que veio o som?

- Da sala.

- Não deve ser nada. Talvez viesse da rua.

- Pode ser. Mas não devemos ir lá ver o que é?

Concordei com a sugestão mais para aplacar minha curiosidade do que pelo Benício. Eu simplesmente achava improvável que o mesmo engano fosse cometido duas vezes no mesmo dia por duas pessoas que se conheciam e que ainda por cima eram irmãs. Isso era uma coincidência que despertava o meu interesse e a minha atenção. Mais cedo o que eu pensei ser o grito de socorro era na verdade a Luna e dessa vez fiquei imaginando o que poderia ser.

Passamos pela sala, onde naturalmente não havia sinal nem da gata nem de alguma mulher aflita e depois saímos para a rua.

Nada de assaltos, brigas, homicídios ou qualquer outro evento que motivasse um pedido de socorro. Somente o tédio e a monotonia que costumeiramente se instalavam nessa hora de final de tarde. Nem mesmo as senhoras que se sentavam em suas cadeiras de balanço para tricotar e falar da vida alheia davam o ar de sua graça nas calçadas.

- Deve ter sido a televisão de algum vizinho que estivesse alta – Benício falou.

- É. Deve ter sido isso mesmo – eu também tentei me convencer.

- Vamos para dentro. Se a mãe chega e nos pega aqui fora... – Benício parou petrificado, sem nem ao menos terminar o que ia falar logo que se voltou para casa. Seus olhos arregalados miravam sem pestanejar a janela com persianas entreabertas através da qual se podia ver um pouco da sala.

- Benício, o que foi?

Ele não me respondeu.

- Diogo, rápido! – foi o que falou antes de correr em disparada para a porta.

Vou atrás dele e ao entrar em casa, todos os meus músculos se contraem devido ao choque térmico. Parecia que a sala tinha sofrido uma queda de cinco graus de temperatura em menos de um minuto.

- Benício, onde você está?

- Aqui! – Benício me respondeu saindo do corredor que dava para os quartos.

- O que houve?

- Diogo, você não viu?

- Vi o quê?

- A pessoa.

- Pessoa?

- É – Benício falava indo à cozinha e voltando, como se procurasse por algo – Quando olhei para a janela vi um vulto de uma pessoa passar. Tinha alguém aqui.

- Não viaje na maionese, Benício. Você sabe que estamos somente você e eu em casa. A mãe saiu para o trabalho dela.

- Eu sei. Mas eu juro que vi o vulto de uma pessoa passar.

- Você tem certeza?

- Absoluta. Não deveríamos olhar tudo? Pode ter sido um ladrão.

- Está bem. Vamos ver se assim também encontramos a gata. E que frio é esse?

- Eu também percebi quando entrei – Benício falou – É como se um ar-condicionado estivesse ligado.

- O que é estranho. Por que não temos ar-condicionado.

- É. Mas não vamos nos preocupar com isso agora, a gente deveria... – Benício foi interrompido por um som de uma batida em algo duro seguido de outro que nenhum de nós dois soube identificar, mas parecia um sussurro. Palavras ditas por alguém distante.

- Ouviu isso?

- Ouvi. Deve ser nos vizinhos. Vamos continuar a procurar a Luna, ela ainda deve está aqui dentro. Você continua a procurar aqui na sala e na cozinha, eu vou ver de novo nos quartos.

Meu irmão e eu recomeçamos a busca pela gata de cômodo em cômodo, olhando cada pedaço da casa, chamando por ela e lhe oferecendo um pouco de carne que balançávamos no ar para espalhar o cheiro e atraí-la, mas nada de vermos uma bola de pelos com uma medalhinha dourada no pescoço vir até nós.

- Parece estar mais frio em uns lugares do que em outros – observou Benício quando estávamos os dois no corredor.

- É – concordei – Principalmente na sala.

- Não. A gente sente uma coisa estranha mais é na cozinha.

- Você acha? Por falar na cozinha, vamos ver se a carne que deixamos já atraiu a Luna.

- Nada ainda – falou Benício quando chegamos à cozinha. Ele também resmungou alguma outra coisa, mas não lhe dei atenção. Eu estava distraído com a sensação que parecia irradiar da entrada que dava para a lavanderia e para o banheiro.

- Está sentindo?

- O quê?

Caminhei quase sem perceber até a porta da lavanderia que ficava alguns metros depois da cozinha e antes do banheiro.

- Eu já olhei aí, Diogo – falou Benício ao meu lado. Ignorando-o, toquei na maçaneta gelada e abri a porta.

A lavanderia, como nós a chamávamos, era um cômodo pequeno com uma máquina de lavar e alguns cestos de roupa e produtos de limpeza. Quando entrei, os cestos estavam caídos e as roupas sujas espalhadas pelo chão.

- Quando entrei aqui, estava tudo em seu lugar. Eu juro – adiantou Benício. Mas eu não estava dando a mínima para explicações. Havia alguma coisa me puxando para um determinado ponto da bagunça onde uma blusa azul de mangas compridas se mexia.

- Achamos! Ela esteve aqui o tempo todo e eu nem a tinha visto – falou meu irmão pegando a gata presa debaixo da blusa.

- Nem eu – falei piscando os olhos como se saísse de um transe.

- E o que faremos agora?

- Algo que já teria que ter feito – peguei a Luna e a levei à sala. Quando cheguei, deixei-a numa poltrona enquanto digitava o número de sua coleira no nosso telefone fixo.

- Você vai telefonar para os donos?

- Sim. Preciso perguntar o endereço deles.

No outro lado da linha o telefone toca sem que ninguém o atenda. Digitei os números novamente e como na primeira vez, ninguém me respondeu.

- Devem ter saído. Você pode tentar mais tarde.

- Talvez você tenha razão. Vou telefonar de novo daqui há pouco.

- Telefonar para quem? – perguntou uma voz feminina que tinha acabado de entrar na sala.

- Oi, Mãe – meu irmão falou.

- Então, vocês estavam telefonando para quem?

Expliquei a situação com relação à gata sem grandes problemas, a não ser pelas interrupções de Benício que ainda se dava ao trabalho de se justificar quanto aos afazeres domésticos. Depois, minha mãe pegou a gata e a inspecionou com cuidado.

- Eu conheço essa gata – ela afirmou.

- Conhece?

- Sim. E esse nome: Amélia Araújo Santana. Acho que se trata da Dona Amélia. Uma senhora que de vez em quando vejo na feira. Se bem me lembro, eu já a vi levar uma gatinha igual a essa para o veterinário.

- Bem, e ao julgar pela coleira de crochê essa senhora deve ser a dona mesmo.

- Você sabe onde ela mora? – perguntou Benício.

- Sim. É perto da T. W. Lanches.

- Podemos ir lá agora mesmo, Diogo. Quem sabe ela nos dá um presente por devolver a gatinha dela – falou Benício, entusiasmado.

- Calma, mocinho. Já está tarde. Dona Amélia deve estar querendo descansar nessa hora.

- Agora? Mas são apenas sete da noite – meu irmão falou olhando para o relógio de parede que marcava exatamente sete e cinco da noite.

- Mas ainda podemos ligar. Ela deve estar preocupada com a gata dela – eu falei – Mesmo se ela estiver deitada, um filho ou neto que estiver com ela pode atender ao telefone.

- Não – minha mãe falou decididamente – Ela mora sozinha. Uma vez eu conversei com ela e ela me contou que é viúva e seus dois únicos filhos não moram mais na cidade.

- O que significa que vou ter que levá-la amanhã de manhã – eu disse.

- Exatamente – disse minha mãe se levantando da poltrona da sala – Hora que Benício vai estar na escola. A propósito, você não está se esquecendo de nada?

- Está bem, mãe. Já vou – falou Benício indo arrumar a lavanderia como prometeu.

Naquela noite, mais tarde, abriguei a gata em um canto do meu quarto com jornais e fui me deitar. Quando dei por mim, eu estava de volta ao beco em meio a uma atmosfera estranha. Tudo estava escuro e cinzento como se o mundo inteiro estivesse incrivelmente nublado. No sonho, eu abria o tambor de lixo e ao invés de está a gata nele como aconteceu antes, havia uma pessoa a qual por mais que eu tentasse não conseguia lembrar-me do rosto, sendo este apenas um borrão que se apagava cada vez mais.

Acordei de sobressalto às cinco e meia da manhã. No canto, a gata ainda estava aninhada entre os jornais. Fiquei sem dormir o resto da manhã, virando-me de um lado para o outro entre os lençóis, com uma palavra ecoando na minha cabeça: “Sozinha”.

Eu não sabia do porquê de esta palavra ser o único detalhe que eu me recordava do pesadelo, mas podia sentir o seu peso como se ela fosse a parte de um segredo ou remetesse a uma culpa do passado.

Depois que me levantei e tomei café, vesti a roupa mais social que possuía, não conseguindo evitar o desejo de passar a melhor impressão possível, mas tomando o devido cuidado para que parecesse algo casual. A última coisa que queria era sugerir que eu quisesse algo em troca. A gata estava deitada sobre a poltrona quando eu a peguei. Eu poderia dar um banho nela, mas optei por apenas penteá-la e retirar com a escova de cabelo qualquer traço de sujeira que tenha sobrado do lixo.

Tranquei a porta de casa e caminhei rumo ao endereço que minha mãe indicou na noite anterior. No final do trajeto que percorri através das ruas emolduradas de novos prédios e estabelecimentos comerciais de uma cidade em desenvolvimento estava a casa com todas as características que minha mãe descreveu. O portão preto se elevando da calçada de cerâmicas como uma fileira de lanças afiadas. Atrás um singelo jardim com madressilvas e uma roseira terminavam de enfeitar a fachada que era pintada com um verde espesso sobre uma parede lisa na qual se destacava a porta envernizada. Ao todo era uma casa muito bonita.

Toquei a campanhia uma, duas, três vezes e fiquei esperando alguém falar pelo interfone me perguntando quem eu era, o que queria ou me pedindo para entrar. O interfone, entretanto, permaneceu mudo.

Toquei a campanhia uma quarta vez e depois que o som se extinguiu, tive apenas o silêncio como resposta. Quinze minutos de tentativa se passaram e abri o portão cujo fato de estar destrancado era o suficiente para eu acreditar que deveria haver alguém em casa.

Bati na porta até os nós dos meus dedos doerem. Minha mão esquerda molhava o pelo da gata de suor enquanto eu a segurava e ainda senti as mechas grudadas quando a troquei de mão para continuar a bater na porta. Sem resultado, eu já me preparava para dar meia volta até que a porta se abriu com um girar de maçaneta e um leve empurrão que dou nela como uma última tentativa antes de ir embora.

- Oi. Tem alguém em casa?

A casa estava silenciosa, mas não escura. A lâmpada da sala estava ligada, lançando uma luz amarelada sobre o recinto muito limpo e decorado com jarros, quadros e retratos.

- Dona Amélia? Você está aí? – falei mal percebendo que com um passo tímido após outro eu tinha chegado ao meio da sala aonde algo veio ao meu encontro.

Não uma pessoa, ou animal, mas um cheiro. Um cheiro pútrido. Um cheiro horrível de uma coisa se decompondo. Levei minha mão livre para meu nariz e boca e como se isso não fosse suficiente soltei a gata para levar a outra também. Ela saltou e correu a pequenos galopes, visivelmente contente por estar em um ambiente familiar. Não vi aonde ela foi parar. No momento em que eu ia atrás dela, o barulho de água que comecei a ouvir prendeu minha atenção. O som era de água caindo como em uma cascata e soava tão próximo que tive a impressão de que se eu desse alguns passos para um lado sentiria a água escorrendo entre meus pés, encharcando meus tênis e molhando minha calça. Procurei pela fonte do som. O percorrer do meu olhar pela sala durou tempo o bastante para perceber a poça que escorria pelo corredor feito um riacho.

Vou me aproximando do corredor, adentrando a casa, primeiro devagar, depois mais rápido. Normalmente eu não costumava invadir residências alheias assim, mas o odor podre e uma inundação eram evidências claras de que algo estava errado. Terrivelmente errado.

Os respingos se espalhavam pelo piso encharcado enquanto eu caminhava pelo corredor até uma porta de onde a água fluía pelo vão em baixo. Abrindo a porta eu entrei em um banheiro de um branco hospitalar com uma banheira que transbordava com a água que a torneira prata despejava em um jato.

Fechei a torneira me curvando com cuidado para não escorregar. Ao lado da banheira flutuavam sabonetes e sais de banho. Recipientes de shampoos e cremes navegavam pelo assoalho. Aparentemente alguém estava preparando um banho quando deixou a torneira aberta tempo demais.

Voltei para o corredor. Seguindo ele mais adiante se podia encontrar uma entrada larga que, pelo vislumbre de um armário que captei enquanto me aproximava, deveria ser a cozinha. Bem perto, o mau cheiro me provocava ânsia de vômito e eu inutilmente tentei ignorar. Chegando à entrada de cantos arredondados vou contemplando a cozinha parte por parte. O armário de portas verdes, depois um fogão, uma pia com pratos de porcelana empilhados, uma geladeira. E em seguida quando eu já estava dentro da cozinha, vi o que pareceu ter saído de um dos meus piores pesadelos.

Meu corpo endureceu como um bloco de gelo e minha boca abriu em espanto, simulando um grito que não se realizou. Devo ter passado uma boa dose de segundos nesse estado de inércia e perplexidade antes de eu poder reunir as forças que pude para fazer mover minhas pernas que estavam como se fossem feitas de gesso e dar a volta na mesa. Um esforço necessário para eu ver o que estava do outro lado, para eu ter certeza de que aquilo era verdade. Que era real o cadáver em estágio avançado de decomposição, jogado no chão da cozinha, junto com baratas que andavam por perto e a nuvem de moscas que pairava no ar assim como o cheiro da morte.

O resto do dia foi um turbilhão de imagens e sons difícil de explicar claramente. Dos vizinhos se aproximando devido aos meus gritos até a chegada da polícia foi tudo muito rápido e angustiante. Mas passado o choque inicial, os flashes do que se seguiu depois foram se encaixando como peças de um quebra-cabeça.

Os dois filhos de Dona Amélia receberam a notícia da morte da mãe no mesmo dia ao qual eu encontrei o seu corpo. Eles foram informados do infarto fulminante que ela deve ter sofrido e como ela passou cinco dias sem que ninguém percebesse o que tinha acontecido, ficando esquecida e abandonada na casa onde ela viveu sozinha nos últimos anos. Eles vieram para a cidade para vender a casa e os móveis após o enterro. Alguns objetos pessoais da mãe eles guardaram para si, menos a gata de estimação que eles queriam que eu ficasse. Pensei em recusar, mas como minha mãe concordou, não vi porque não ficar com ela.

Levei a gata para casa comigo. Alguma coisa me dizendo que agora eu não ouviria mais vozes estranhas ou outros fenômenos sem explicação. Os gatos do beco a partir daquele dia se comportaram de forma perfeitamente normal sempre que eu passava vindo da escola, como devem se comportar os gatos de rua sem dono e jogados à própria sorte nesse mundo cheio de tristezas e alegrias, onde eles perscrutam por lugares imundos, vendo coisas que nós não vemos.

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Tema: Animais Possuídos

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 18/07/2015
Reeditado em 30/07/2015
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